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O que o Brasil jogou fora durante a pandemia da Covid-19?

 

O que o Brasil jogou fora durante a pandemia da Covid-19? artigo de Diogo Loretto

Enquanto a ciência e a medicina responsáveis estão tentando tirar a “cabeça do país” da água, para respirar, temos uma política nacional de não combate à pandemia

Diogo Loretto
Doutor em Ecologia
Analista Ambiental
Bicho do Mato Meio Ambiente Ltda.
diogoloretto@gmail.com

No dia 29 de abril de 2021 o Brasil atingiu a triste marca de 400 mil mortos pela Covid-19. Em apenas 51 dias foram mais 100.000 mortes (média de 1961 por dia), nos deixando com a triste marca de meio milhão de pessoas mortas em menos de 18 meses de pandemia.

Mais uma vez, não houve qualquer menção ou comportamento positivo do executivo nacional em relação a isto. Ao contrário, quanto mais mortes ocorrem, mais reforça o discurso obscurantista e anticiência do presidente, mostrando um nível de irresponsabilidade sem limites.

Mas o que teria acontecido se tivéssemos um governo federal que estimulasse:

  • distanciamento físico das pessoas;

  • higiene das mãos;

  • uso de máscaras;

  • processos controlados de lockdown

  • auxílio financeiro ininterrupto para a população carente e empresas de pequeno porte;

  • além de campanha unificada de conscientização e programa nacional responsável para prospecção e compra de vacinas.

A partir dos dados disponíveis no Worldometer do dia 18 de junho de 2021, um dia antes de atingirmos essa triste marca, separei os dados dos 91 países com mais de 10 milhões de habitantes, com casos e mortes confirmadas causadas pela Covid-19. Usando a simples Regra de Sturges ordenei os países em um histograma que representasse a amplitude de mortes por milhão de habitantes (variação de 0,3 – 2.822) observados em cada um dos países (Figura 1).

histograma países x mortes por milhão de habitantes

Figura 1. Histograma representando a distribuição do número de países com mais de 10 milhões de habitantes por classes de mortes por milhão de habitantes. Fonte: Worldometer, dia 18 de junho de 2021. Número de classes definidas usando a Regra de Sturges.

Como a distribuição dos dados está longe de seguir a distribuição normal, não é adequado que usemos medidas de tendência central, como média e desvio padrão, para representar as tendências desses dados. É mais adequado que olhemos a mediana, por se tratar de uma distribuição não paramétrica. Fazendo isso, obtemos uma mediana de 114 mortes por milhão de habitantes. Isto quer dizer que se estivéssemos nos desempenhando como o a maio parte dos 91 países dentro dessa amostra, estaríamos registrando em torno de 25 mil mortes “apenas” (temos 214.013.244 de habitantes, logo 115*214,013).

É evidente que alguém pode questionar a amostra de 91 países, dizendo que 10 milhões de habitantes é um corte muito raso e não representa a complexidade de um país grande. Por isso, fiz os cálculos com duas restrições: retirei os países que são ilhas e separei apenas os que possuíam mais de 50 milhões de pessoas em sua população. Os primeiros foram retirados porque sua condição de ilha e sua condição de entradas e saídas de pessoas apenas por estruturas portuárias ou aeroportuárias teve um papel essencial na contenção da pandemia. Demonstrei isso em um ensaio passado, usando a teoria de Biogeografia de Ilhas para prever o avanço da pandemia.

Ao fazer essa restrição, resta uma amostra de 26 países*, para a qual obtemos uma mediana de 214 mortes por milhão de habitantes, o que representaria cerca de 46 mil mortes no total, 10,9 vezes menos do que temos agora.

Não está convencida(o)? Podemos calcular a média, apenas para ter uma noção habitual para o senso comum. A média desse grupo de países é de 726 mortes por milhão de habitantes (com um desvio padrão de 827**), ou cerca de 155 a 332 mil mortos.

Portanto, até o dia de 29 de abril perdemos para a Covid-19, no mínimo, de 167 a 344 mil pessoas (~256 mil) a mais que o esperado ao acaso, isto é, se o comportamento da doença aqui no país estivesse próximo do desempenho médio do combate à doença no restante dos grandes países do mundo. Se o comportamento estivesse próximo da mediana, o resultado é mais assustador ainda. Isto é, de qualquer forma que calculemos, mostraremos que nosso resultado está sempre aquém do esperado.

Alguma coisa, portanto, nos tirou dessas medianas ou dessa média de desempenho que não o acaso. Isto é, algo é responsável pela diferença entre o esperado e o observado, que na vida real representa milhares de mortes a mais. Nem seriam necessários todos os cálculos acima para perceber que agimos mal e nosso desempenho no controle da doença é pífio: temos 2,71% da população mundial, mas concentramos 9,97% dos casos e 12,92% das mortes. A diferença entre o esperado ao acaso e o observado, em casos e mortes, respectivamente 7,26% e 10,21%, é o resultado de fatores intrínsecos a nossa população e como ela lidou com a pandemia.

Não é preciso lembrar a vocês dos infinitos maus exemplos que o presidente dá ao país e ao mundo durante todo o período da pandemia, além de trocar ministros da saúde três vezes.

O Brasil, por meio da gestão irresponsável da pandemia, jogou fora a vida de ao menos 270 mil pessoas. A grosso modo, matamos ao menos o dobro das pessoas que o esperado apenas pelo avanço e dinâmica da doença. Sem uma mudança estrutural no combate à pandemia se afundará mais ainda na crise social e econômica decorrentes desta “não-gestão”.

O Brasil, que sempre foi referência mundial em programas vacinais, combate à doenças infecciosas, um exemplo no atendimento de saúde por meio do SUS, joga fora não somente a oportunidade de ensinar ao mundo como lidar com uma situação gravíssima, mas também joga fora a vida de dezenas de milhares de pessoas, e com elas, suas histórias, suas relevâncias sociais, locais, regionais ou nacionais. Perdemos uma janela da história para superar um grande desafio, e nosso comportamento leva o país ao afundamento cada vez maior em uma crise sanitária que transbordará em forma de bola de neve, resultando em desemprego recorde e crise econômica igualmente preocupante.

Enquanto a ciência e a medicina responsáveis estão tentando tirar a “cabeça do país” da água, para respirar, temos uma política nacional de não combate à pandemia, que está como uma âncora amarrada a nossos pés, nos puxando para o inevitável afogamento.

*China, India, EUA, Paquistão, Brasil, Nigéria, Bangladesh, Rússia, México, Etiópia, Egito, Vietnã, República Democrática do Congo, Turquia, Irã, Alemanha, Tailândia, Reino Unido, França, Tanzânia, Itália, África do Sul, Quênia, Mianmar, Colômbia e Korea do Sul.

** Por isso não é adequado usar a média para uma distribuição de dados como a analisada aqui, pois grosso modo, o desvio da média é maior que a própria média, o que implicaria na possibilidade de valores negativos (nesse caso impossível).

 

Diogo Loretto – Graduado em Ciências Biológicas (UFRJ-2003), Mestrado (2006) e Doutorado (2012) em Ecologia-UFRJ. Foi professor temporário do mesmo departamento de ecologia da UFRJ em 2013. Pós doutorado de 2014 a 2018 no IOC/Fiocruz. Atualmente, é Analista Ambiental na Bicho do Mato Meio Ambiente Ltda., atuando na Gestão Técnica de Projetos, e coordena o estudo de Impactos Ambientais decorrentes do desastre de Mariana. Estuda mamíferos desde 2000 e atua no setor ambiental desde 2003. Meus maiores interesses atuais são (1) testes e experimentos de amostragem; (2) distribuição e ecologia de mamíferos; (3) estudos de impacto ambiental.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/06/2021

 

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