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Artigo

A impensável condição da pesquisa paulista

 

artigo de opinião

Artigo de Afonso Peche Filho*

Resumo:

O presente texto reflete sobre a crise estrutural da pesquisa científica no Estado de São Paulo, evidenciando a contradição entre o desenvolvimento econômico e o enfraquecimento do sistema público de ciência e tecnologia.

Com base em análise crítica, aborda o esvaziamento dos institutos de pesquisa, a falta de renovação de quadros, a evasão de jovens cientistas e a desvalorização do papel social da ciência.

O artigo propõe uma leitura ética e institucional da crise, defendendo a revalorização da pesquisa pública como eixo essencial do desenvolvimento sustentável e civilizatório.

Palavras-chave: ciência pública, crise institucional, valorização científica, sustentabilidade, política

Introdução

Há momentos históricos em que o silêncio coletivo diante da destruição daquilo que sustenta o próprio futuro é, em si, um sintoma de colapso. A pesquisa científica paulista, que já foi exemplo de excelência e referência continental, encontra-se hoje em uma condição impensável, uma crise silenciosa, profunda e difusa, que ameaça os alicerces do desenvolvimento científico e tecnológico do Estado de São Paulo e, por extensão, do país.

O Estado de São Paulo, historicamente responsável por mais da metade da produção científica brasileira, consolidou-se sobre uma base sólida de instituições públicas de pesquisa, especialmente na área agrícola, como o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), o Instituto Biológico, o Instituto de Zootecnia, o Instituto de Pesca, o Instituto de Botânica e o Instituto Florestal, entre outros. Contudo, observa-se hoje o esvaziamento gradual dessa estrutura, revelando uma contradição profunda entre o discurso de desenvolvimento e o abandono efetivo da ciência.

2. Cidades sem centros de pesquisa: o apagamento territorial do conhecimento

Cada centro de pesquisa desativado representa mais do que o encerramento de uma unidade administrativa: simboliza o colapso de um núcleo de inteligência local, de uma memória técnica e de uma cultura científica construída ao longo de décadas. A extinção ou fusão de instituições, muitas vezes acompanhada da mudança arbitrária de nomes e da reorganização de estruturas sob pretextos administrativos, opera como uma forma sutil, e eficaz, de apagamento institucional.

Essas mudanças confundem a população, iludem a opinião pública e mascaram um processo mais profundo de desmonte da pesquisa científica. Ao alterar denominações tradicionais ou incorporar centros históricos a novas siglas, o Estado dilui identidades institucionais consolidadas, quebrando laços simbólicos e territoriais que associavam essas instituições às cidades onde nasceram e floresceram.

O resultado é um apagamento do patrimônio imaterial científico: laboratórios e fazendas experimentais tornam-se apenas prédios administrativos; pesquisadores perdem o sentido de pertencimento; e comunidades locais deixam de reconhecer nesses espaços o reflexo de sua própria história. Cidades como Campinas, São Paulo, Assis, Piracicaba e Jundiaí, outrora polos irradiadores de conhecimento e inovação, testemunham o esvaziamento de seus centros de pesquisa e a migração silenciosa de seus cientistas.

Ao desarticular a presença física e simbólica dessas instituições, o poder público mina a identidade territorial da ciência. E, ao fazê-lo, compromete o papel da pesquisa como mediadora entre o saber técnico e a vida cotidiana, entre o patrimônio imaterial e o desenvolvimento local. Assim, o que se apresenta como “modernização administrativa” é, em essência, uma forma de desmemória organizada, um processo que esconde a erosão do conhecimento sob o verniz da eficiência burocrática.

Em última instância, o que está em jogo não é apenas a perda de prédios, nomes ou estruturas: é o apagamento do direito das cidades à sua própria inteligência coletiva.

3. Institutos sem cientistas e jovens cientistas sem espaço.

Ser cientista em São Paulo tornou-se, paradoxalmente, um ato de resistência. A desvalorização institucional, a invisibilidade pública e o desmonte silencioso das estruturas de pesquisa corroem a motivação e o sentido de missão dos pesquisadores. O que antes era vocação e serviço público transformou-se em uma luta cotidiana por dignidade, reconhecimento e sobrevivência intelectual.

Nos institutos estaduais de pesquisa, a falta de concursos públicos, a estagnação salarial e a ausência de reposição de quadros técnicos configuram um cenário de asfixia progressiva. Laboratórios esvaziam-se; servidores aposentam-se sem substituição; e as linhas de pesquisa, muitas delas responsáveis por avanços decisivos na agricultura, na saúde e na conservação ambiental, tornam-se ruínas do conhecimento. O envelhecimento do corpo científico, sem mecanismos de renovação, rompe a transferência de saberes entre gerações, quebrando a continuidade que sustenta a qualidade e a inovação da ciência pública.

A juventude científica, por sua vez, encontra portas fechadas. Bolsas escassas, vínculos precários e promessas institucionais não cumpridas geram um êxodo silencioso de talentos. Jovens pesquisadores, formados em universidades públicas e estimulados a contribuir com o país, veem-se compelidos a buscar oportunidades fora do Estado, ou fora do Brasil, diante de um ambiente hostil ao mérito e ao conhecimento.

O sentimento dominante entre os cientistas paulistas é o de traição social. O pacto histórico que unia a sociedade e o Estado em torno da valorização da ciência foi rompido. Governos inconsequentes, sob o pretexto de “reorganizações administrativas”, desconstroem a base institucional que sustentou a pesquisa pública por mais de um século. As mudanças de nomes, fusões e extinções disfarçadas de modernização apenas mascaram o esvaziamento real das instituições.

O resultado é devastador: institutos sem cientistas e jovens cientistas sem espaço. O patrimônio técnico, acumulado em décadas de trabalho, corre o risco de se tornar memória perdida; e a ciência paulista, outrora referência nacional, passa a ser lembrada mais por suas ausências do que por suas realizações.

Em essência, o pesquisador paulista luta contra a indiferença. Sua resistência é o último elo entre a sociedade e a esperança de que o conhecimento volte a ocupar o lugar que lhe cabe, o de fundamento da soberania, da inovação e do futuro coletivo.

4. A impensável condição: o colapso silencioso.

A crise da pesquisa paulista não se anuncia em explosões súbitas, mas em silêncios prolongados. É uma erosão invisível, uma forma de violência estrutural contra o conhecimento, que corrói os fundamentos da inteligência pública. Esse colapso silencioso produz efeitos que ultrapassam os muros das instituições científicas. O retrocesso tecnológico compromete a autonomia produtiva; o empobrecimento cultural fragiliza o senso crítico da sociedade; e a dependência externa transforma o país em mero consumidor de tecnologias alheias. Pior ainda, a perda de uma base científica sólida conduz o Estado à paralisia ética e cognitiva: decisões políticas passam a ser tomadas sem evidências, guiadas por interesses imediatos ou por ideologias anticientíficas que naturalizam a ignorância como instrumento de poder.

Restabelecer o pacto social entre ciência e sociedade é condição vital para a reconstrução institucional. Isso exige vontade política, mas também visão de futuro: concursos públicos regulares, recomposição orçamentária, incentivo à iniciação científica e valorização do pesquisador como servidor do bem comum. O conhecimento precisa voltar a ser compreendido não como despesa, mas como infraestrutura essencial de soberania, inovação e justiça social.

Apesar do desmonte, a resistência persiste. Nos corredores silenciosos dos institutos, há quem continue a produzir ciência pública com recursos escassos e profunda convicção ética. Esses pesquisadores sustentam, quase anonimamente, o fio que impede o colapso total. Reconstruir a pesquisa, portanto, não é apenas um gesto administrativo: é um ato de restituição moral e simbólica, a reafirmação da dignidade da função pública e da vocação científica do Estado de São Paulo.

5. Conclusões

A impensável condição da pesquisa paulista expressa o retrato mais nítido de um tempo em que o conhecimento foi relegado ao segundo plano. O esvaziamento das instituições científicas não é apenas um problema administrativo: é um sintoma civilizatório, um reflexo da inversão de valores que transforma o saber em obstáculo e a ignorância em instrumento de gestão.

Mas a ciência não é luxo, é necessidade. Sem ela, o Estado perde a capacidade de compreender a si mesmo, de inovar, de proteger seus recursos e de planejar o futuro. A ciência pública é a linguagem da soberania e o alicerce da justiça social.

Resgatar a pesquisa é, portanto, reconstruir a dignidade do serviço público, restaurar o elo entre Estado e sociedade e reafirmar o papel da inteligência coletiva como bem comum. Mais do que uma tarefa institucional, trata-se de um compromisso ético com o futuro: o futuro de uma sociedade que só será verdadeiramente desenvolvida quando voltar a reconhecer, na ciência, a sua mais alta forma de esperança.

REFERÊNCIAS CONSULTADAS

– ASSOCIAÇÃO DOS PESQUISADORES CIENTÍFICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO (APqC). PLC 9: O golpe final na ciência paulista. São Paulo: APqC, 12 ago. 2025. Disponível em: <https://apqc.org.br/plc-9-o-golpe-final-na-ciencia-paulista/>. Acesso em: 18 out. 2025.

– BRASIL. Senado Federal. Corte de verbas da ciência prejudica reação à pandemia e desenvolvimento do País. Brasília: Senado, 25 set. 2020. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/09/corte-de-verbas-da-ciencia-prejudica-reacao-a-pandemia-e-desenvolvimento-do-pais>. Acesso em: 17 out. 2025.

– CNN BRASIL. Academia de Ciências critica cortes nas verbas das universidades federais. São Paulo, 20 maio 2025. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/academia-de-ciencias-critica-cortes-nas-verbas-das-universidades-federais/>. Acesso em: 17 out. 2025.

– HORADOPOVO. Pesquisadores criticam ataque de Tarcísio à carreira científica aprovado pela Alesp. 15 out. 2025. Disponível em: <https://horadopovo.com.br/pesquisadores-criticam-ataque-de-tarcisio-a-carreira-cientifica-aprovado-pela-alesp/>. Acesso em: 19 out. 2025.

– NEWS.AGROFY. Nova estrutura para carreira de pesquisador vai parar na Justiça em São Paulo. 16 out. 2025. Disponível em: <https://news.agrofy.com.br/noticia/208466/nova-estrutura-para-carreira-pesquisador-vai-parar-na-justica-em-sao-paulo>. Acesso em: 19 out. 2025.

– APQC. Governo Federal reforça investimento em ciência e ameniza descaso de São Paulo com pesquisa pública. 8 ago. 2025. Disponível em: <https://apqc.org.br/governo-federal-reforca-investimento-em-ciencia-e-ameniza-descaso-de-sao-paulo-com-pesquisa-publica/>. Acesso em: 17 out. 2025.

– NEXO JORNAL. Produção científica brasileira cai pelo segundo ano consecutivo. 2 ago. 2024. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/externo/2024/08/02/producao-cientifica-brasileira-cai-pelo-segundo-ano-consecutivo>. Acesso em: 19 out. 2025.

– SBPC – SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA. SBPC reprova Bolsonaro, que cortou 42% do principal fundo da ciência para 2023. 13 set. 2022. Disponível em: <https://portal.sbpcnet.org.br/noticias/sbpc-reprova-bolsonaro-que-cortou-42-do-principal-fundo-da-ciencia-para-2023/>. Acesso em: 16 out. 2025.

– ANDES – SINDICATO NACIONAL DOS DOCENTES DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR. Pesquisa nacional luta para sobreviver asfixiada por cortes orçamentários. 8 jul. 2022. Disponível em: <https://www.andes.org.br/conteudos/noticia/pesquisa-nacional-luta-para-sobreviver-asfixiada-por-cortes-orcamentarios1>. Acesso em: 19 out. 2025.

* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.

 

Citação
EcoDebate, . (2025). A impensável condição da pesquisa paulista. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/10/22/a-impensavel-condicao-da-pesquisa-paulista/ (Acessado em outubro 22, 2025 at 04:07)

 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

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