EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

ESG em disputa: retrocessos globais, resistências locais e o desafio da justiça socioambiental

 

Análise revela como corporações e pressões políticas transformam práticas ESG em marketing vazio

Análise revela como corporações e pressões políticas transformam práticas ESG em marketing vazio enquanto o Brasil se prepara para a COP30

Contraofensiva anti-ESG nos EUA, recuos corporativos na transição energética e a corrida pela bioeconomia amazônica expõem a distância entre discurso e prática sustentável. Especialistas alertam para riscos de captura corporativa antes da COP30 em Belém.

Reinaldo Dias

Articulista do EcoDebate, é Doutor em Ciências Sociais -Unicamp

Pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK

Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil

http://lattes.cnpq.br/5937396816014363

reinaldias@gmail.com

Num planeta marcado pela escalada de crises ambientais e sociais, a promessa de um capitalismo verde se apresenta em campanhas de marketing sofisticadas e relatórios corporativos que tentam transmitir credibilidade. Mas por trás dessa fachada bem construída, cresce uma ameaça silenciosa: a transformação do ESG em um artifício retórico, incapaz de enfrentar as raízes da degradação e da desigualdade.

Por trás da estética de responsabilidade corporativa, avançam práticas que expropriam territórios, fragilizam direitos trabalhistas e invisibilizam comunidades atingidas. Corporações globais, fundos financeiros e lobbies empresariais continuam ditando as regras, convertendo compromissos de sustentabilidade em contratos que perpetuam injustiças. Nos palcos internacionais, o que se apresenta como inovação muitas vezes é apenas uma reciclagem das velhas formas de exploração, agora cobertas por etiquetas verdes.

Assim, o ESG, vendido como linguagem universal da sustentabilidade, ameaça se consolidar como espetáculo publicitário enquanto comunidades, povos tradicionais e trabalhadores pagam o preço mais alto. É essa contradição, entre aparência e realidade, que expõe o caráter insustentável de um modelo que, em vez de corrigir injustiças históricas, pode aprofundá-las sob um novo rótulo.

1. Introdução

O ESG — Environmental, Social and Governance — foi apresentado ao mundo corporativo como um novo paradigma capaz de alinhar economia, meio ambiente e direitos humanos. Mas, na prática, tornou-se um campo de batalha entre forças que defendem a transformação das estruturas produtivas e grupos econômicos e políticos que se beneficiam do status quo. A disputa não é abstrata: envolve decisões de investimento, lobby legislativo, campanhas de desinformação e, em alguns casos, ataques diretos a políticas ambientais e sociais que ameaçam lucros imediatos.

Estudos indicam que a adoção consistente de práticas sustentáveis poderia gerar até 10 trilhões de dólares em negócios na próxima década, com milhões de novos empregos e avanço de setores como energia renovável, bioeconomia e eficiência energética (Julião, 2025). Essa perspectiva, no entanto, desafia interesses consolidados em cadeias de alto impacto, como combustíveis fósseis, mineração e agronegócio exportador, que ainda operam com base em exploração intensiva de recursos e mão de obra precária.

Nos Estados Unidos, a chamada “guerra ao ESG” mobiliza políticos, associações empresariais e grupos de influência política (think tanks) conservadores para enfraquecer regulações socioambientais e reduzir a transparência corporativa (Forthomme, 2025). Esse movimento já provoca efeitos concretos: grandes companhias retiram compromissos de diversidade e inclusão, escondem dados climáticos de seus relatórios e flexibilizam metas ambientais (Mooney & Savagem 2025; Goldberg, Krolik, & Boyce, 2025).

Em outra ofensiva contra as energias renováveis, a British Petroleum (BP) anunciou que reduzirá drasticamente seus aportes na transição energética — incluindo energias renováveis, hidrogênio, biogás, biocombustíveis, carregamento de veículos elétricos e captura e armazenamento de carbono — de mais de US$ 5 bilhões para apenas US$ 1,5 a 2 bilhões anuais. Em contrapartida, concentrará esforços em ampliar a produção de petróleo e gás. Segundo seu presidente, a companhia teria avançado “rápido demais” na transição e depositado “fé equivocada” na energia verde (Igini, 2025). O recado é claro — para uma parte do setor privado, ESG só é aceitável enquanto não ameaça práticas nocivas ou margens de lucro.

Se, por um lado, esse recuo global abre espaço para oportunismo e retrocesso, por outro, cria brechas estratégicas. Investidores e empresas brasileiras veem uma janela para reposicionar o país como referência em economia verde, aproveitando sua biodiversidade e potencial de transição energética (Quesada, 2025). Autoridades econômicas ressaltam que, mesmo com turbulências, não há mais espaço para retroceder: a crise climática, as desigualdades e a pressão regulatória tornam o ESG uma exigência inadiável, com um modelo ainda mais rigoroso e verificável (Temóteo & Ozório, 2025).

Este artigo examina como essa disputa se manifesta no Brasil e no mundo, analisando exemplos concretos de avanço e de sabotagem da agenda socioambiental. Ao longo do texto, veremos que a sigla ESG não está em risco apenas por inércia ou falta de recursos, mas por uma contraofensiva organizada que envolve poder político, econômico e ideológico — e que exige resposta proporcional da sociedade civil, de educadores, movimentos sociais e instituições democráticas.

2. A contraofensiva anti-ESG e seus efeitos

O avanço da agenda ESG despertou uma reação organizada de setores que veem na regulação socioambiental uma ameaça direta aos seus interesses. Essa contraofensiva ganhou força sobretudo nos Estados Unidos, liderada pelo presidente Donald Trump, que desde sua posse adota postura abertamente contrária às políticas ambientais, sociais e de direitos humanos. Sua influência consolidou uma corrente ideológica que ultrapassa fronteiras e inspira outras lideranças identificadas com o trumpismo, oferecendo base política para enfraquecer regulações, deslegitimar práticas de diversidade e dificultar a transparência corporativa.

Um dos alvos prioritários dessa contraofensiva é o componente social do ESG. Programas de diversidade, equidade e inclusão — que vinham crescendo em corporações norte-americanas — estão sendo cortados ou esvaziados. Não se trata de ajustes pontuais, mas de uma guinada ideológica que associa tais políticas a agendas identitárias supostamente prejudiciais à meritocracia, quando na verdade representam conquistas históricas contra discriminações estruturais (Goldberg, Krolik, & Boyce, 2025). A reversão dessas políticas fragiliza conquistas trabalhistas e mina a participação de grupos historicamente marginalizados.

O ataque também atinge a transparência ambiental. Relatórios corporativos deixam de mencionar metas de carbono, sites institucionais retiram compromissos climáticos e informações sobre impactos ambientais desaparecem de páginas públicas. Essa prática, conhecida como greenhushing, consiste em ocultar compromissos e resultados ambientais em relatórios e sites institucionais. Ao contrário do greenwashing, que exagera virtudes ambientais inexistentes, o greenhushing busca silenciar avanços ou metas já anunciadas, reduzindo a exposição pública para evitar críticas, litígios ou cobranças por resultados. Trata-se, portanto, de uma estratégia deliberada de ocultar informações, que mina a transparência e dificulta a responsabilização social (Mooney & Savage, 2025). Ao ocultar dados, empresas protegem-se de ações judiciais e de campanhas de consumidores, mas comprometem qualquer possibilidade de avaliação séria de desempenho ambiental.

No campo jurídico, a pressão política busca restringir ou eliminar dispositivos que obriguem empresas a adotar critérios ESG em contratos, investimentos públicos e operações financeiras (Gelis Filho & Betiol, 2025). Trata-se de uma tentativa explícita de blindar setores poluentes contra exigências de devida diligência socioambiental. Paralelamente, alguns articulistas e lideranças corporativas tentam dissociar a pauta climática da sigla ESG (Leite, 2025), abrindo espaço para manter políticas ambientais isoladas, sem vínculo obrigatório com direitos humanos ou governança — um retrocesso que fragmenta o enfrentamento integrado da crise.

Essa contraofensiva não é espontânea nem desorganizada. Ela combina lobby legislativo, litígios estratégicos, campanhas de desinformação e pressão sobre conselhos administrativos. O objetivo final é preservar modelos de negócio baseados na exploração predatória de recursos e na exclusão social, reduzindo o ESG a um rótulo vazio, tolerado apenas enquanto não interfere no lucro imediato. Reconhecer essa estratégia é o primeiro passo para enfrentá-la com a mesma articulação e intensidade.

3. Bioeconomia e a vitrine brasileira

Enquanto a contraofensiva anti-ESG se intensifica em várias partes do mundo, o Brasil se prepara para projetar outra narrativa: a da bioeconomia como vetor de desenvolvimento e conservação. A COP30, marcada para Belém, será uma vitrine global para mostrar que é possível gerar riqueza a partir da sociobiodiversidade, sem repetir a lógica predatória que historicamente marcou a exploração da Amazônia (Schuck,2024). No entanto, essa vitrine será também um campo de disputa, onde grandes grupos econômicos tentarão se apropriar do discurso e dos benefícios, deixando de fora justamente as comunidades que mantiveram a floresta em pé.

O potencial da bioeconomia brasileira não se limita à Amazônia. Projetos como o reflorestamento da Caatinga, fruto de parceria entre o BNDES e a Heineken (Schuck,2025), demonstram que outros biomas também podem ser protagonistas dessa transição. Esses exemplos mostram que, quando bem estruturadas, parcerias público-privadas podem impulsionar cadeias produtivas locais, gerar empregos e promover restauração ecológica em larga escala.

Mas há riscos evidentes. Sem garantias de participação social e repartição justa dos benefícios, a bioeconomia pode se tornar apenas mais uma frente de exploração extrativista, com empresas se apropriando de recursos genéticos, conhecimentos tradicionais e territórios, deixando às comunidades apenas uma fração dos lucros (Schuck, 2024; Schwartzkopff & Nussbaum,2025). Já há sinais de que corporações enxergam na COP30 uma oportunidade para ampliar portfólios verdes e atrair investimentos, sem necessariamente mudar suas práticas de base. Embora algumas empresas brasileiras, como a Natura, mantenham compromissos explícitos de alinhar suas estratégias à conservação e à justiça socioambiental (Brandão, 2025), muitas outras buscam apenas associar sua marca ao evento e ao discurso de sustentabilidade, sem enfrentar a lógica predatória que sustentam.

Transformar a vitrine da bioeconomia em um legado duradouro exige enfrentar essas ameaças de captura corporativa, blindar direitos territoriais e colocar as populações locais no centro das decisões. Caso contrário, o Brasil corre o risco de apresentar ao mundo um modelo de negócios pintado de verde, mas construído sobre as mesmas desigualdades e injustiças que o ESG deveria combater.

4. ESG e as empresas brasileiras

O debate sobre ESG no Brasil costuma ser dominado por grandes corporações, mas a sua efetividade depende também de como micro, pequenas e médias empresas incorporam essa agenda. Há iniciativas relevantes de capacitação e guias práticos que adaptam os critérios ambientais, sociais e de governança à realidade desses empreendimentos, provando que sustentabilidade não é privilégio de quem tem grandes orçamentos (Sander, 2025). Ao contrário, integrar práticas responsáveis desde cedo pode ser um diferencial competitivo e um escudo contra pressões de mercado.

A transparência é outro pilar fundamental. Relatórios de sustentabilidade, como o publicado pela Cocamar (Cocamar, 2024), oferecem uma radiografia das práticas corporativas, permitindo que consumidores, investidores e sociedade civil acompanhem não apenas metas, mas também resultados concretos. No entanto, esse tipo de prática ainda é exceção. A maioria das empresas brasileiras não divulga dados socioambientais auditados, e parte das que o fazem seleciona informações de forma a projetar uma imagem mais positiva do que a realidade.

Há também um choque evidente entre posturas. Enquanto algumas empresas nacionais reforçam publicamente compromissos e admitem que retrocessos não são aceitáveis, caso da Natura (Brandão, 2025), outras tratam o ESG como ferramenta cosmética, buscando apenas atestar responsabilidade corporativa para ganhar contratos ou atrair investimentos. O discurso de que empresas que ignoram critérios ESG estão com os dias contados (SINISCEP, 2025) só será verdadeiro se houver mecanismos de fiscalização e punição para quem viola regras ambientais e direitos humanos. Sem isso, a competitividade continuará sendo distorcida em favor de quem degrada, explora e oculta informações.

Levar o ESG para um maior envolvimento das empresas brasileiras, em todas as escalas, significa não só criar instrumentos para implementação, mas também assegurar que não haja espaço para falsas credenciais. Isso exige uma aliança entre consumidores, movimentos sociais, sindicatos e órgãos reguladores para estabelecer padrões claros, auditar práticas e penalizar a fraude socioambiental com o mesmo rigor aplicado a outros crimes corporativos.

5. Finanças, fundos e o problema do greenwashing

O setor financeiro é um dos principais termômetros da sinceridade ou da hipocrisia em torno do ESG. São bancos, fundos e gestoras que decidem quais projetos recebem capital e quais ficam à margem. Quando esses agentes falham em adotar critérios rigorosos e verificáveis, acabam alimentando um mercado de fachada. Uma pesquisa recente mostrou que 98% dos investidores identificam greenwashing em relatórios corporativos e produtos financeiros rotulados como sustentáveis (Capirazi,2024). Esse índice revela que a confiança, pilar essencial para qualquer política ESG, está gravemente comprometida.

As contradições não faltam. Fundos classificados como sustentáveis direcionaram milhões de euros para uma mineradora com histórico de violações ambientais e de direitos humanos na África do Sul (Molds et al,2025). Enquanto isso, a pesquisa “Greenwashing no Brasil: Um estudo das alegações ambientais nos produtos” realizada pela Marketing Analisys publicada em 2024, revelou que 81% dos produtos trazem em suas embalagens algum tipo de maquiagem verde. Isto significa que, oito em cada dez produtos que possuem rótulos ambientais fazem alegações que não se sustentam (Safatle,2024). Na prática, isso significa que parte significativa do capital que deveria acelerar a transição socioambiental está sendo usado para sustentar atividades que perpetuam degradação e injustiça.

O greenwashing não é um acidente, é uma estratégia deliberada para capturar investidores preocupados com sustentabilidade, sem alterar modelos de negócio nocivos. Enquanto relatórios e selos se multiplicam, comunidades afetadas continuam expostas a poluição, perda de território e precarização do trabalho. O sistema financeiro, quando se limita a repaginar carteiras com rótulos verdes sem aplicar due diligence, ou seja, o processo de devida diligência, que implica investigar profundamente riscos ambientais, sociais e de governança antes de investir, age como cúmplice de crimes socioambientais.

A saída exige transparência radical: auditorias independentes, padronização internacional de métricas e penalidades reais para quem falseia informações. Mais do que vender produtos financeiros verdes, o setor precisa assumir a responsabilidade de cortar o fluxo de recursos para empresas e projetos que violem direitos humanos e comprometam ecossistemas. Sem isso, o ESG continuará a ser, para o mercado financeiro, um negócio de marketing e não de transformação.

6. Cadeias de suprimentos e conduta corporativa

As cadeias globais de suprimento são um dos pontos mais vulneráveis e reveladores, do verdadeiro compromisso de uma empresa com o ESG. É nelas que se evidenciam, com nitidez, as contradições entre discurso e prática. No setor de embalagens e resíduos, o impasse nas negociações do Tratado Global dos Plásticos expôs a resistência das grandes corporações a adotar metas obrigatórias. Empresas como a Coca-Cola, uma das maiores poluidoras de plástico do planeta, recuaram em compromissos de reciclagem (Gama, 2024), reforçando que, sem regulação forte, o voluntarismo corporativo é incapaz de enfrentar crises ambientais sistêmicas.

Na mineração, as pressões por responsabilidade socioambiental já provocam impactos comerciais concretos. O boicote de uma multinacional europeia à Vale, motivado pela contaminação de um rio no Brasil (Pajolla, 2024), é exemplo claro de que empresas poluidoras podem perder mercados estratégicos quando não implementam medidas de reparação e prevenção. Esse tipo de reação do mercado internacional tende a se intensificar à medida que legislações de devida diligência socioambiental se fortalecem na Europa e em outros países.

O agronegócio brasileiro enfrenta dilemas semelhantes. A Cargill, gigante global de commodities, indicou que pode abandonar a Moratória da Soja (ClimaInfo,2025), acordo que há quase duas décadas ajuda a conter o desmatamento na Amazônia. Um recuo dessa magnitude não só ameaça ganhos ambientais conquistados a duras penas, como também coloca em risco a reputação de toda a cadeia de exportação de soja do país. Trata-se de um movimento alinhado a setores que resistem à rastreabilidade e ao controle socioambiental, e que atuam ativamente para reduzir as exigências de conformidade.

Esses casos deixam claro que cadeias de suprimento responsáveis não surgem por boa vontade. Elas dependem de mecanismos de governança robustos, fiscalização independente e penalidades proporcionais para descumprimentos. Enquanto empresas puderem lucrar ignorando a origem de suas matérias-primas, explorando trabalho precário e degradando ecossistemas, o ESG será apenas uma vitrine polida para esconder práticas nocivas profundamente enraizadas.

7. Frigoríficos, desmatamento e integridade das metas climáticas

O setor de proteína animal é um dos principais nós críticos para a credibilidade do ESG no Brasil. Grandes frigoríficos operam em cadeias de fornecimento que ainda incorporam gado proveniente de áreas desmatadas ilegalmente e territórios indígenas invadidos, apesar de promessas públicas de rastreabilidade e emissões zero. A JBS, por exemplo, anunciou metas de neutralidade climática, mas recuou, alegando que nunca fez uma promessa formal (Salvador, 2025; Reuters, 2025). Essa postura, além de minar a confiança pública, demonstra como compromissos corporativos podem ser facilmente desfeitos quando não há instrumentos jurídicos que os tornem vinculantes.

As contradições não param aí. Investigações mostram que grandes frigoríficos lucram na bolsa enquanto mantêm vínculos com a lavagem de gado e práticas associadas ao desmatamento ilegal (Bronoski,2025). Essa lógica de operar no limite da legalidade, confiando na falta de fiscalização e na fragilidade das punições, garante ganhos imediatos às empresas, mas impõe custos ambientais e sociais devastadores, e irreversíveis às comunidades afetadas.

O problema central não é apenas a ineficácia dos compromissos voluntários, mas a ausência de responsabilização proporcional ao dano causado. Sem penalidades significativas — financeiras, operacionais e reputacionais —, o custo de descumprir metas socioambientais continua sendo menor do que o custo de cumpri-las. Nesse cenário, “emissões zero” e “desmatamento zero” permanecem como slogans de marketing, usados para garantir acesso a mercados e investimentos, enquanto a prática cotidiana mantém o ciclo de destruição.

Proteger a integridade das metas climáticas exige mudar essa equação: tornar a violação de compromissos ESG um risco maior do que a sua implementação. Isso implica adotar legislações que obriguem a rastreabilidade completa da cadeia de fornecimento, prever sanções exemplares e criar canais de denúncia acessíveis às comunidades afetadas. Sem isso, o setor continuará a ser um dos principais símbolos da distância entre discurso e realidade no ESG brasileiro.

8. Regulação, burocracia e competitividade

O debate sobre regulação ambiental e ESG no Brasil ganhou um capítulo emblemático com a aprovação, no Congresso, de um projeto apelidado por ambientalistas e especialistas como “lei da devastação”. O texto, apresentado como medida para desburocratizar o licenciamento ambiental, abria brechas para dispensar estudos de impacto em atividades potencialmente poluidoras e enfraquecia a proteção de ecossistemas e comunidades. Sob forte pressão de movimentos socioambientais, pesquisadores e organismos internacionais, o governo vetou mais de 60 pontos da proposta, mas o embate está longe de terminar.

A retórica da excessiva burocracia tem sido usada de forma sistemática por setores que lucram com a flexibilização das regras: parte do agronegócio exportador, a mineração de grande escala e empreendimentos de infraestrutura de alto impacto. Esse discurso não é exclusividade brasileira: na União Europeia, pressões semelhantes vêm sendo exercidas por governos e empresas que consideram as exigências ESG um inferno regulatório (Schwartzkopff & Nussbaum,2025). No Brasil, o mesmo argumento é usado para fragilizar salvaguardas socioambientais, com apoio de parlamentares e de grupos empresariais que resistem a qualquer forma de controle externo.

Essa ofensiva contra a regulação ambiental está conectada a estratégias mais amplas que buscam separar artificialmente a pauta climática do ESG, esvaziando sua dimensão social e de direitos humanos. (Leite, 2025). No campo jurídico, movimentos anti-ESG buscam limitar dispositivos que obriguem empresas a adotar critérios socioambientais, o que fragiliza o marco legal e abre caminho para retrocessos (Gelis Filho & Betiol, 2025).

Manter marcos regulatórios fortes não é um capricho de ambientalistas, mas condição mínima para a credibilidade do país em negociações comerciais e investimentos internacionais. A disputa em torno da “lei da devastação” mostrou que, no Brasil, as regras de proteção ambiental continuam sob constante ameaça e que resistir a esse desmonte é fundamental para que o ESG não seja esvaziado de seu conteúdo transformador.

9. Convergências possíveis: experiências e caminhos em construção

O debate sobre ESG, no Brasil e no mundo, não precisa se reduzir ao confronto entre marketing corporativo e denúncia de retrocessos. Há experiências que mostram que é possível avançar de forma consistente quando diferentes atores — empresas, comunidades, movimentos sociais, instituições de ensino e governos — constroem agendas em comum. Esses pontos de convergência não surgem espontaneamente: exigem diálogo, reconhecimento de assimetrias e compromisso com mudanças estruturais.

Projetos de bioeconomia na Amazônia e na Caatinga, que unem conhecimento tradicional, inovação tecnológica e financiamento público-privado (Schuck,2024, 2025), indicam que é possível gerar renda e conservar ecossistemas ao mesmo tempo. Guias e metodologias para a implementação de práticas ESG em micro e pequenas empresas (Sander, 2025) demonstram que a sustentabilidade pode ser incorporada à gestão desde o início da trajetória de um negócio. Relatórios de sustentabilidade que adotam métricas transparentes e verificáveis (Cocamar, 2024) ajudam a estabelecer padrões que podem inspirar e pressionar outras organizações a seguir o mesmo caminho.

Mas essas experiências também revelam os desafios de tornar o ESG um instrumento de transformação real. É necessário enfrentar a desigualdade de acesso a recursos, a captura corporativa de agendas socioambientais e a resistência política à regulação. Nenhuma dessas barreiras será superada por um único setor ou ator social. Professores, movimentos sociais, ONGs e empresas comprometidas têm papéis distintos e complementares: educar, mobilizar, monitorar e implementar.

Reconhecer essas convergências e trabalhar a partir delas não significa ignorar as contradições. Significa entender que, diante de um cenário de retrocessos e ameaças organizadas à agenda socioambiental, cada espaço de diálogo e cada prática coerente se tornam oportunidades estratégicas para manter vivo e fortalecer o sentido original do ESG: integrar a proteção ambiental, a justiça social e a governança responsável em um mesmo compromisso.

10. Conclusão

O ESG não é apenas um conjunto de boas práticas corporativas, mas um campo de disputa marcado por interesses econômicos, pressões políticas e batalhas narrativas. De um lado, há experiências que comprovam que é possível gerar valor econômico com inclusão social e responsabilidade ambiental. De outro, existe uma ofensiva organizada para esvaziar regulações, enfraquecer direitos e transformar o ESG em mera peça de marketing.

A fragilidade de compromissos voluntários, a captura corporativa de agendas e a resistência sistemática à transparência revelam que, sem mecanismos de fiscalização robustos e participação social efetiva, a sigla corre o risco de perder relevância e credibilidade. O desmonte de marcos regulatórios, como tentado recentemente no Brasil, evidencia que o retrocesso pode ser rápido e profundo quando os setores beneficiados pela ausência de regras estão no controle do processo político.

Para que o ESG cumpra o que promete, é necessário combinar padrões claros e auditáveis com proteção legal contra retrocessos e mecanismos que garantam a participação de comunidades e trabalhadores nas decisões que os afetam. Isso implica enfrentar diretamente aqueles que lucram com a degradação ambiental, a violação de direitos e a opacidade nos negócios.

Mais do que salvar uma sigla, o desafio é enfrentar os retrocessos e fortalecer compromissos que unam justiça social, integridade ambiental e governança democrática. Só assim o ESG poderá deixar de ser um rótulo de mercado e tornar-se um instrumento concreto de transformação. O futuro não pode ser construído sobre discursos vazios: exige coerência, fiscalização e participação social. Se conseguir se reconectar a esses princípios, o ESG terá condições de contribuir para uma sociedade mais sustentável, justa e inclusiva.

REFERÊNCIAS

Brandão, R. (2025, jan 21). Em meio a onda anti ESG, Natura reforça compromissos: “Não há mais tempo para retrocessos”. Exame. https://shorturl.at/pAm8m

Bronoski, B. (2025, jan 27) Segundo maior frigorífico brasileiro lucra na Bolsa com lavagem de gado, desmatamento ilegal e pressão sobre terra indígena. O joio e o trigo. https://shorturl.at/In8Zm

Capirazi, B. (2024, jan 23) Relatórios ESG têm informações falsas para 98% dos investidores; entenda o motivo da desconfiança. O Estado de São Paulo. https://shre.ink/te2s

ClimaInfo (2025, fev 10) Desmatamento: Cargill indica que abandonará Moratória da Soja. https://shorturl.at/tZAV2

Cocamar (2024) Relatório de Sustentabilidade 2024. https://www.cocamar.com.br/downloads/relatorio-sustentabilidade-2024.pdf

Forthomme, C. (2025, mar 14) Trump’s War on ESG: How the Finance Industry Is Holding Up. Impakter-Business of Sustainability. https://impakter.com/trumps-war-esg-how-finance-industry-holding-up/

Gama, M. (2024, dez 16) Tratado dos plásticos não sai e Coca-Cola recua na reciclagem. Poder 360. Disponível em: https://shorturl.at/kE7fx

Gelis Filho, A. & Betiol, L.S. (2025, jan 05) O movimento anti-ESG nos EUA: implicações para o direito. Consultor Jurídico. https://shorturl.at/xMCEI

Goldberg, E., Krolik, A. & Boyce, L. (2025, mar 16) Como empresas dos EUA estão recuando em políticas de diversidade e inclusão. Folha de São Paulo. https://shre.ink/tMmP

Igini, M. (2025, feb 27) BP Increases Oil and Gas Investments, Drops Renewable Targets. Earth.Org. https://earth.org/bp-increases-oil-and-gas-investments-drops-renewable-targets/

Julião, A. (2025, jan 2) Ações sustentáveis imediatas podem gerar dez trilhões de dólares em negócios. Veja. https://shre.ink/tMmN

Leite, H. (2025, fev 12). A pauta climática precisa se divorciar da sigla ESG. Poder 360. https://www.poder360.com.br/opiniao/a-pauta-climatica-precisa-se-divorciar-da-sigla-esg/

Molds, J., Valentino, S., Michalopoulos, G. & Evans, J. (2025, mar 01) JP Morgan’s ‘sustainable’ funds invested £200m in mining giant Glencore. The Guardian. https://www.theguardian.com/environment/2025/mar/01/jp-morgan-sustainable-funds-mining-giant-glencore

Mooney, A. & Savage,S. (2025, mar 14) US multinationals purge website references to climate change. Financial Times. https://www.ft.com/content/f100bedb-16cb-4f5e-8f64-9a10d5c43a51

Pajolla, M. (2024, dez 18) Multinacional europeia deixa de comprar da Vale por caso de contaminação de rio. ICL Notícias. https://iclnoticias.com.br/multinacional-europeia-deixa-de-comprar-da-vale/

Quesada, B. (2025, jan 23) Recuo em agenda ESG nos EUA cria oportunidade ao Brasil, vê maior gestora na área. Bloomberg Línea. https://shre.ink/tofa

Reuters (2025, jan 15) JBS diz que plano de zerar balanço de emissões de gases estufa nunca foi uma promessa. InfoMoney. https://search.app/skmBFKLFzAFSNKLh8

Safatle, A. (2024, nov 15) Greenwashing no Brasil mantém taxas alarmantes, mostra estudo. Página22. https://shre.ink/teQ4

Salvador, R. (2025, jan 16) JBS desfaz promessa de zerar emissões de suas operações. Revista Fórum. https://shre.ink/teQV

Sander, I. (2025, mar 19) Práticas ESG chegam a micro e pequenas empresas; saiba como implementar. Gauchazh. https://shre.ink/te2l

Schuck, S. (2024, dez 19) COP30 será vitrine para negócios de bioeconomia na Amazônia”, diz fundador da Manioca. Exame. https://tinyurl.com/bdhwkd5s

Schuck, S. (2025, jan 08) BNDES e Heineken investem R$ 10 milhões no reflorestamento da Caatinga. Exame. https://short-link.me/1bKQY

Schwartzkopff, F. & Nussbaum, A. (2025, jan 22) França chama regras ESG de ‘inferno’ enquanto UE é pressionada a reduzir burocracia. Folha de São Paulo. https://tinyurl.com/2kf63kwh

SINICESP (2025, FEV 21) Empresas que ignoram o ESG podem estar com os dias contados. Sindicato da Indústria da Construção Pesada do Estado de São Paulo. https://shre.ink/togu

Temóteo, A. & Ozório, L. (2025, jan 13) Hype do ESG não passou e debate é se transição evitará mudança climática catastrófica. Exame. https://search.app/p66ymh9brXheo7hx5

 

Citação
EcoDebate, . (2025). ESG em disputa: retrocessos globais, resistências locais e o desafio da justiça socioambiental. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/08/27/esg-em-disputa-retrocessos-globais-resistencias-locais-e-o-desafio-da-justica-socioambiental/ (Acessado em agosto 27, 2025 at 02:23)

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

[ Se você gostou desse artigo, deixe um comentário. Além disso, compartilhe esse post em suas redes sociais, assim você ajuda a socializar a informação socioambiental ]

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O conteúdo do EcoDebate está sob licença Creative Commons, podendo ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao EcoDebate (link original) e, se for o caso, à fonte primária da informação