Critérios para escolha de espécies na recomposição de matas ciliares
Artigo de Afonso Peche Filho*
Resumo
A recomposição de matas ciliares é uma ação estratégica para a conservação da biodiversidade, a proteção dos recursos hídricos e a estabilidade dos ecossistemas aquáticos e terrestres. A escolha adequada das espécies vegetais é determinante para o sucesso ecológico e funcional dessas áreas, evitando insucessos que comprometam tempo, recursos e expectativas ambientais.
Este artigo apresenta critérios técnicos e orientativos que abrangem aspectos ecológicos, hidrológicos, edáficos, fitossociológicos, faunísticos e operacionais, além de fornecer uma tabela prática de espécies indicadas para o Sudeste brasileiro, de modo a subsidiar profissionais das ciências agrárias, ambientais e gestores de projetos na definição de espécies para recomposição ciliar.
1. Introdução
As matas ciliares, formações vegetais que acompanham cursos d’água, lagos, nascentes e áreas úmidas, desempenham papel fundamental na integridade ambiental de bacias hidrográficas. Sua presença reduz processos erosivos, filtra sedimentos e poluentes, estabiliza margens, regula o microclima e serve como corredor ecológico para a fauna.
O Código Florestal Brasileiro (Lei nº 12.651/2012) define as Áreas de Preservação Permanente (APPs) como zonas de proteção obrigatória, onde as matas ciliares se inserem. No entanto, em grande parte do território brasileiro, essas áreas foram degradadas pela expansão agropecuária, urbanização e práticas de uso da terra sem manejo conservacionista.
Para que a recomposição seja eficiente, não basta plantar árvores de qualquer espécie. É imprescindível selecionar um conjunto vegetal que respeite as condições locais, favoreça a sucessão ecológica, cumpra funções hidrológicas e restabeleça as interações ecológicas perdidas.
2. Fundamentação ecológica para a escolha de espécies
2.1 Origem nativa e regional
A prioridade deve ser dada a espécies nativas do bioma e originárias da mesma região fitogeográfica onde ocorrerá a recomposição. Isso assegura maior taxa de sobrevivência e integração ecológica. Espécies exóticas, mesmo que ornamentais ou produtivas, podem apresentar comportamento invasor, deslocando espécies nativas e alterando o equilíbrio ecológico.
2.2 Diversidade estrutural
A mata ciliar é composta por múltiplos estratos vegetais:
-
Herbáceo: gramíneas, ciperáceas e plantas rasteiras;
-
Arbustivo: plantas de porte médio e ramos densos;
-
Arbóreo: árvores de copa média;
-
Emergente: árvores altas que sobressaem no dossel.
A recomposição deve contemplar representantes de todos esses estratos para restabelecer a complexidade estrutural e ecológica da mata.
2.3 Grupos sucessionais
A sucessão ecológica natural segue uma ordem de ocupação do espaço por espécies:
-
Pioneiras: rápido crescimento, alta luminosidade, ciclo de vida curto (Cecropia pachystachya, Trema micrantha);
-
Secundárias iniciais: crescimento moderado, toleram alguma sombra;
-
Secundárias tardias: crescimento mais lento, maior longevidade;
-
Climácicas: dominam ecossistemas maduros e sombreados, essenciais para estabilidade de longo prazo.
O plantio deve imitar essa lógica, iniciando com pioneiras para formar sombreamento e controlar gramíneas invasoras, enquanto as demais se desenvolvem.
3. Critérios hidrológicos e edáficos
3.1 Tolerância hídrica
As faixas próximas ao corpo d’água podem permanecer encharcadas por longos períodos, exigindo espécies tolerantes a inundação, como:
-
Inga vera (ingá-do-brejo)
-
Erythrina fusca (corticeira-do-banhado)
-
Peltophorum dubium (canafístula)
Já áreas mais afastadas ou elevadas necessitam de espécies adaptadas a solos mais secos, como:
-
Cedrela fissilis (cedro)
-
Cariniana estrellensis (jequitibá-branco)
3.2 Estabilização do solo
Espécies com sistemas radiculares profundos e robustos são fundamentais para conter erosão em taludes íngremes, enquanto raízes densas superficiais são indicadas para estabilizar margens de baixa inclinação.
3.3 Compatibilidade com características do solo
O pH, a fertilidade e a textura influenciam a escolha. Por exemplo, solos arenosos favorecem espécies tolerantes à baixa retenção hídrica, enquanto solos argilosos exigem plantas adaptadas à baixa aeração.
4. Critérios fitossociológicos
4.1 Referência na vegetação remanescente
Inventários florísticos e análises fitossociológicas de fragmentos próximos ajudam a identificar quais espécies são características da fitofisionomia local, evitando introduções inadequadas.
4.2 Planejamento sucessional
O plantio deve ser planejado para simular a sucessão natural, garantindo que, com o tempo, as pioneiras sejam substituídas por espécies de maior longevidade e estabilidade ecológica.
5. Critérios faunísticos
5.1 Oferta de alimento
Espécies frutíferas e nectaríferas, como Psidium cattleyanum (araçá) e Euterpe edulis (palmito-juçara), atraem aves, morcegos e mamíferos, auxiliando na dispersão de sementes.
5.2 Abrigo e conectividade
Árvores de copa densa e arbustos compactos fornecem abrigo para aves residentes e funcionam como pontos de conexão para deslocamento da fauna.
6. Critérios socioeconômicos e de manejo
6.1 Disponibilidade de mudas
Deve-se priorizar viveiros regionais que forneçam mudas com procedência genética local. Isso evita problemas de adaptação e garante diversidade genética.
6.2 Custos e facilidade de manejo
Espécies resistentes a pragas e doenças reduzem gastos de manutenção. Plantas com alta capacidade de rebrote facilitam a recuperação após eventos climáticos extremos.
7. Tabela prática de espécies indicadas para o Sudeste brasileiro
Faixa Ecológica |
Grupo Sucessional |
Espécie (Nome Científico) |
Nome Comum |
Função Ecológica |
Zona de Inundação |
Pioneira |
Inga vera |
Ingá-do-brejo |
Fixadora de nitrogênio, alimento para fauna |
Pioneira |
Erythrina fusca |
Corticeira-do-banhado |
Estabiliza margens, abrigo para fauna |
|
Secundária inicial |
Peltophorum dubium |
Canafístula |
Sombreamento, enriquecimento do solo |
|
Secundária inicial |
Triplaris americana |
Pau-formiga |
Estabilização de taludes úmidos |
|
Secundária tardia |
Ficus insipida |
Figueira-branca |
Frutificação para fauna, sombreamento denso |
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Zona Intermediária |
Pioneira |
Cecropia pachystachya |
Embaúba |
Rápido crescimento, atrativa para fauna |
Pioneira |
Trema micrantha |
Crindiúva |
Controle de invasoras, enriquecimento inicial |
|
Secundária inicial |
Schinus terebinthifolius |
Aroeira-vermelha |
Atrativa para polinizadores |
|
Secundária tardia |
Tabebuia roseoalba |
Ipê-branco |
Valor paisagístico, flores para polinizadores |
|
Climácica |
Cariniana estrellensis |
Jequitibá-branco |
Longa longevidade, copa emergente |
|
Zona Seca / Bordas Elevadas |
Pioneira |
Senna multijuga |
Fedegoso |
Fixadora de nitrogênio, rápido crescimento |
Pioneira |
Vernonia diffusa |
Assa-peixe |
Controle inicial de gramíneas invasoras |
|
Secundária inicial |
Psidium cattleyanum |
Araçá |
Frutificação para fauna |
|
Secundária tardia |
Cedrela fissilis |
Cedro |
Madeira nobre, alta longevidade |
|
Climácica |
Hymenaea courbaril |
Jatobá |
Copa ampla, frutos para fauna |
Observações para uso da tabela:
-
Diversidade mínima recomendada: pelo menos 40 espécies no conjunto total do projeto, distribuídas nas três faixas ecológicas.
-
Proporção sugerida:
-
40% pioneiras
-
40% secundárias iniciais
-
20% secundárias tardias e climáticas
-
-
Origem do material genético: sempre preferir mudas ou sementes coletadas em populações silvestres regionais, para garantir adaptação e variabilidade genética.
-
Integração com fauna: inserir espécies frutíferas em todas as faixas para acelerar a dispersão natural e a regeneração complementar.
8. Considerações finais
A recomposição de matas ciliares exige planejamento técnico que vá além da simples arborização. A escolha das espécies deve respeitar:
-
Diversidade funcional e estrutural;
-
Compatibilidade com condições hídricas e edáficas;
-
Referência na vegetação original;
-
Integração fauna-flora;
-
Viabilidade operacional.
Projetos que consideram esses critérios não apenas restauram a paisagem, mas reativam processos ecológicos essenciais, fortalecendo a resiliência ambiental e garantindo serviços ecossistêmicos de longo prazo.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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