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Emergência climática no Brasil: Qual é a obrigação do Estado?

 

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A crise climática é considerada o problema mais urgente da humanidade e a maior ameaça aos direitos humanos. Nesse contexto, que obrigações os Estados têm de proteger as pessoas, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade, dos impactos da crise climática?

Artigo de Marcella Ribeiro Torres

O processo do Parecer Consultivo sobre Emergência Climática e Direitos Humanos, da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), está construindo uma resposta para essa pergunta. A Corte busca, através de um longo processo de consulta pública e participação de mais de 300 organizações e comunidades, esclarecer o conteúdo e o escopo das obrigações de proteger os direitos humanos que os Estados do continente possuem em relação às comunidades e povos latinoamericanos.

Um processo similar está em curso também na Corte Internacional de Justiça, e no Tribunal Internacional do Direito do Mar. Em conjunto, essas três Cortes vão proferir decisões vinculantes que estabelecerão as novas regras do jogo para Estados e empresas no contexto da crise climática. 

As interpretações e conclusões  desses processos fortalecerão os argumentos usados por organizações, comunidades e outros atores em litígios climáticos que buscam responsabilizar governos pelas omissões e ações que contribuem para os graves impactos da crise climática. Mais ainda, o resultado desse processo abrirá os caminhos para a reparação adequada de comunidades, famílias e grupos impactados pelos efeitos da crise climática — oferecendo um caminho para a justiça climática.

O QUE SÃO OS PARECERES CONSULTIVOS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E QUAL SUA RELEVÂNCIA PARA O BRASIL?

Os pareceres consultivos da Corte Interamericana são pronunciamentos feitos por esse tribunal internacional, a pedido de países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), a fim de esclarecer o alcance e  interpretar tratados internacionais em relação a temas ainda não decididos pelo procedimento contencioso da Corte. Em outras palavras, na falta de um entendimento claro sobre os limites das obrigações dos Estados em relação a determinado tema, a Corte pode emitir uma decisão aplicável a todos os Estados-parte do tratado sob interpretação, esclarecendo as obrigações específicas que se impõem. 

Um exemplo claro é o Parecer Consultivo 23 de 2017, no qual a Corte estabeleceu um precedente histórico ao reconhecer o direito a um ambiente saudável como fundamental para a existência humana e se pronunciou pela primeira vez sobre o conteúdo desse direito. Esses pronunciamentos, portanto, são tão relevantes quanto sentenças internacionais, e determinam os parâmetros da responsabilidade de Estados que, no futuro, estarão suscetíveis à condenação por desrespeitar essas obrigações.

Em janeiro de 2023,  Colômbia e Chile solicitaram um parecer consultivo da Corte Interamericana para esclarecer o escopo das obrigações estatais em matéria de direitos humanos no contexto da emergência climática. Ambos Estados declararam que suas populações, e outras no continente, são particularmente vulneráveis e estão sofrendo as consequências da tríplice crise planetária, o que se vê através das secas, inundações e incêndios, entre outros. Portanto, consideram necessário que a Corte determine a maneira apropriada de interpretar a Convenção Americana e os direitos nela reconhecidos “no que for relevante para abordar as situações geradas pela emergência climática, suas causas e consequências”.

Uma vez emitido, o parecer consultivo esclarecerá as obrigações legais dos Estados latino-americanos para combater a crise climática como uma questão de direitos humanos. O parecer da Corte poderia forçar os Estados a reconhecer sua competência para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, apoiar medidas de adaptação e estabelecer mecanismos para lidar com perdas e danos causados por desastres.

No caso do Brasil, as enchentes no Rio Grande do Sul transformaram 500.000 pessoas em refugiados climáticos, desalojados pela inundação de suas casas e cidades. Além da perda de vidas e danos materiais e imateriais irreversíveis, os afetados pelas enchentes também estão enfrentando riscos em razão da falta de preparação do governo na resposta a esta emergência. Abrigos insuficientes, sem segurança, sem condições sanitárias adequadas, com acesso limitado à comida, água e atenção médica são apenas alguns dos problemas que se somam ao trauma dos refugiados.

Situações de crise humanitária semelhantes vêm ocorrendo por todo o país nos últimos anos, basta recordar das secas na Amazônia, que isolaram dezenas de povos e levaram milhares à situação de insegurança alimentar e escassez hídrica. O nordeste do país não é diferente, que além das secas prolongadas se depara com o avanço incessante do mar. Recife é a 16ª cidade mais vulnerável aos efeitos da mudança do clima segundo o Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC).

O Parecer Consultivo da Corte será vinculante para o Brasil, e isso significará que o estado brasileiro deverá adequar suas leis e políticas internas para cumprir com suas obrigações de direitos humanos no marco da crise climática. Desde à sociedade civil, existe uma alta expectativa de que a Corte anuncie que os Estados devem, a partir de agora, tomar decisões políticas com base na informação científica disponível, além de abrir a possibilidade de que esses sejam responsabilizados por perdas e danos evitáveis —o que seria o caso do Rio Grande do Sul caso as autoridades houvessem projetado planos de prevenção e adaptação segundo o relatório Brasil 2040, publicado em 2015.

É no espírito de justiça climática, social e ambiental que centenas de brasileiros e estrangeiros estarão em Manaus nos próximos dias 27, 28 e 29, a fim de serem ouvidos diretamente pelos juízes da Corte em audiências públicas. O movimento pela justiça climática na América Latina e no mundo está se fortalecendo e se tornando mais eficaz, impulsionado pelos sucessos dos litígios climáticos e por precedentes importantes, como os que emergem dos pareceres consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Esperamos que o reconhecimento contundente das fronteiras da responsabilidade dos estados ante os riscos da crise climática evite mais tragédias, e promova uma justiça reparatória para os grupos que historicamente foram sacrificados em nome do capitalismo predatório. 

*Marcella Ribeiro Torres é brasileira e advogada sênior do Programa de Direitos Humanos e Meio Ambiente da Associação Interamericana para Defesa do Ambiente – AIDA.

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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