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Artigo

As políticas de cotas precisam avançar para políticas universais

 

“Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”
Constituição Federal do Brasil de 1988

Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

A Constituição brasileira, de 1988, é transparente e firme na afirmação de que todas as pessoas são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, religião, etc. Este é um princípio fundamental da isonomia. O objetivo do Art. 5º é mostrar que não pode haver distinção e privilégio entre as pessoas na aplicação dos direitos e deveres apresentados na legislação brasileira.

Contudo, a igualdade perante a lei não garante, de imediato, uma igualdade na prática, especialmente em uma sociedade marcada por desigualdades estruturais e discriminações persistentes que se reproduzem no longo prazo.

Assim, surgiram as políticas de ação afirmativa – ou de discriminação positiva – visando corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso aos direitos fundamentais, como educação e emprego, no sentido da conquista de uma verdadeira equidade social.

Neste sentido, as políticas afirmativas (tipo políticas de cotas) não devem contrariar o princípio geral da igualdade diante da lei e só se justificam como políticas emergenciais e de curto ou médio prazo. Por exemplo, as políticas de cotas para garantir a inclusão das camadas mais desprivilegiadas da população na educação e no mercado de trabalho podem acelerar a igualdade formal, assim como as políticas de transferência de renda (tipo Bolsa Família) podem de fato reduzir a pobreza extrema e garantir melhores condições para a mobilidade social ascendente, especialmente das novas gerações.

Portanto, as políticas de discriminação positiva são válidas como tática, mas as políticas universais são determinantes como estratégia de equidade social e respeito à igualdade perante a lei. Por exemplo, não haveria sentido ter políticas de cotas se houvesse vagas para todas as pessoas que quisessem entrar na universidade. Da mesma forma, não faria sentido ter políticas de ações afirmativas no mercado de trabalho se o país conseguisse implementar o “Pleno Emprego e Trabalho Decente” (bandeira da OIT), gerando, sem segregação e sem discriminação, emprego e renda para toda a população brasileira.

No caso da política de cotas para a educação superior no Brasil, a despeito da melhoria parcial da inclusão social, existem vários questionamentos na implantação das iniciativas de ações afirmativas. Pesquisa Datafolha, divulgada em 06 de abril de 2024, sobre a lei de cotas nas universidades federais mostra que mais da metade da população é contrária ao modelo atual da política, embora com diferentes entendimentos. Os dados mostram que 41% das pessoas acreditam que a lei deve existir para alunos de escola pública, mas sem critério racial. Outros 15% afirmam que não deveria haver nenhuma reserva de vagas.

Por outro lado, 42% opinaram que a lei deve permanecer como é hoje, com cota de 50% das vagas para alunos de escola pública, prevendo reservas específicas para pobres, pretos, pardos e indígenas. Assim, o apoio a regras de reserva de vagas nas universidades federais soma 83%, mas o critério racial divide a população. Da mesma forma que 56% indicam ser contrários ao modelo vigente (ao somar os 41% contrários a reserva por raça, mas favoráveis ao modelo social, e 15% que se opõe, a qualquer reserva), como mostra a figura abaixo.

infográfico do apoio popular à política de cotas

 

Um ponto de grande questionamento tem ocorrido em relação às decisões das bancas de heteroidentificação (chamadas pejorativamente de “tribunais raciais”). A dificuldade é que a declaração de cor envolve uma decisão individual e é uma autodeclaração que abarca vários aspectos além do tom de pele, tais como origem familiar, pertencimento comunitário, percepções subjetivas, dentre outros critérios pessoais. Mas as bancas de heteroidentificação adotam critérios fenotípicos, especialmente quando se trata da autodeclaração parda, para identificar com próprios uma autodeclaração que é uma decisão subjetiva tomada por cidadãs e cidadãos brasileiros, que desejam ser tratados com igualdade perante a lei.

As bancas de heteroidentificação foram criadas, supostamente, para “evitar fraudes”, ou seja, para reconhecer pessoas de cor branca que tentam se passar por pessoas pardas. Evidentemente, há uma contradição neste processo, pois a declaração de cor é subjetiva e as bancas de heteroidentificação buscam adotar critérios objetivos para definir, externamente, a que cor (ou “raça”) a pessoa pertence. Sem dúvida, o potencial de conflito é enorme.

Recentemente, o aluno Alison dos Santos Rodrigues obteve aprovação no curso de medicina da USP, aprovado no processo de seleção por meio das cotas de cor/”raça”. Porém teve a inscrição barrada pela banca de heteroidentificação, que argumentou que ele não seria uma pessoa parda, pois tinha “pele clara, boca e lábios afilados e cabelos raspados”. Estes foram os alegados “critérios objetivos” que negaram a autodeclaração do candidato.

Mas Alison dos Santos Rodrigues recorreu ao poder Judiciário e a Justiça determinou que a Universidade garantisse a matrícula do candidato em até 72 horas. Caso descumpra a decisão, a USP deverá pagar uma multa de R$ 500 por dia. Vários outros casos semelhantes se espalham pelo país, refletindo a insatisfação com a discricionariedade do processo e a discriminação contra as pessoas que se autodeclaram pardas.

Algumas Universidades estão reformulando as suas bancas de heteroidentificação, visando remediar o irremediável. Por outro lado, existem projetos de lei no Congresso Nacional defendendo a extinção das bancas de heteroidentificação. Porém, a melhor maneira de evitar alegadas fraudes é transformar as políticas focalizadas em políticas universais.

Como escrevi no artigo “Políticas Universais versus focalizadas” (OPS, 03/06/2008), as políticas afirmativas podem ser efetivas se forem adotadas de forma temporária e dentro de um plano de transformações estruturais da educação brasileira para garantir o acesso universal ao sistema educacional, universalizando o ensino médio e garantindo a entrada no ensino superior para todas as pessoas que queiram se comprometer com a vida universitária, sem qualquer barreira baseada na distinção de sexo, raça, religião e outros marcadores individuais.

Quando todas as pessoas tiverem acesso integral à educação de qualidade e ao pleno emprego decente, a preocupação geral deixará de ser a defesa de políticas focalizadas e passará a ser a afirmação da igualdade de oportunidade, de forma justa e isonômica, reiterando o compromisso coletivo com o bem-estar social e ambiental do Brasil e do mundo.

Referências:

ALVES, JED. O Brasil miscigenado e o reconhecimento da parditude, Ecodebate, 03/04/2024
https://www.ecodebate.com.br/2024/04/03/o-brasil-miscigenado-e-o-reconhecimento-da-parditude/

ALVES, JED. Políticas Universais versus focalizadas, OPS, 03/06/2008
https://opensadorselvagem.org/?s=pol%C3%ADticas+focalizadas

Paulo Saldaña e Mariana Brasil. Cotas no ensino superior têm apoio de 83%, mas critério racial divide população, diz Datafolha, FSP, 06/04/2024
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/04/cotas-no-ensino-superior-tem-apoio-de-83-mas-criterio-racial-divide-populacao-diz-datafolha.shtml

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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