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Os Povos Indígenas e o Marco Temporal

 

Brasília (DF) - 31/08/2023, Manifestação de Indígenas contra o Marco Temporal na praça dos Três Poderes. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Brasília (DF) – 31/08/2023, Manifestação de Indígenas contra o Marco Temporal na praça dos Três Poderes. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Os Povos Indígenas e o Marco Temporal, artigo de Melillo Dinis do Nascimento

Para os povos indígenas, para a maioria dos especialistas, para parte dos constitucionalistas, a tese do “marco temporal” é um absurdo

Depois de muita luta sobre o “marco temporal” no Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente no julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, de Santa Catarina, encerramos o ano de 2023 com um quadro preocupante. E começamos o ano de 2024 ainda mais ocupados. Antes dos detalhes, entretanto, uma síntese da questão jurídica e socioambiental.

Na Constituição brasileira não existe um “marco temporal” para a demarcação das terras indígenas. Há uma proteção constitucional a estas terras tradicionais, anteriores e posteriores à promulgação da Constituição (outubro de 1988 – a data da alegada hipótese de um marco no tempo), tudo na forma do seu artigo 231. Essa foi a conclusão do STF, em tese fixada em 13 pontos consensuais no referido julgamento, válida para todos.

Mas o Congresso Nacional, por grande parte dos parlamentares, sequer esperou a decisão do STF assentar-se. Quase que de forma imediata aprovaram a Lei nº 14.701/2023, ressuscitando o “marco temporal”, dentre outras normas com relação às terras indígenas. Após o rito de submissão ao Poder Executivo, para sua aprovação, retornou ao Legislativo com um veto parcial (nº 30/2023) do Presidente Lula. Ainda em dezembro do ano passado, os Senadores e Deputados devolveram à lei o trecho que batizou a proposta, ao definir que as “terras indígenas tradicionalmente ocupadas” são aquelas “habitadas e utilizadas” pelos indígenas para suas atividades na data da promulgação da Constituição, sob o argumento frágil de não permitir a insegurança jurídica.

Evidente que a nova Lei viola a Constituição, pois uma Lei não pode modificar o texto constitucional, muito menos dar interpretação a uma decisão do STF, exatamente pelo fato de que o sistema jurídico brasileiro não permite. No final de dezembro de 2023, a lei foi publicada. E em janeiro de 2024, a batalha jurídica recomeçou. Até o momento, há um conjunto de ações que pedem ao STF o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o PSOL e a Rede ingressaram com a ADI nº 7582. O PV, PT e PCdoB entraram com a ADI nº 7583 e o PDT ingressou com ação semelhante (ADI nº 7586), na qual afirma que a lei impõe graves limitações ao exercício dos direitos fundamentais dos povos originários, sem o amparo de qualquer norma constitucional. Em contrapartida, PP, Republicanos e PL solicitaram ao STF a validação da mesma lei por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 87. Todas as ações foram distribuídas ao ministro Gilmar Mendes.

Para os povos indígenas, para a maioria dos especialistas, para parte dos constitucionalistas, a tese do “marco temporal” é um absurdo, criação e criatura que representam evidente retrocesso jurídico, equívoco político, deslegitimação democrática, ataques ao necessário equilíbrio socioambiental e geração de violência nos territórios. Como acontece com frequência na história brasileira, a criatura pode-se transformar num monstro. E aqui cabe uma explicação.

Há a convicção de que o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmará em 2024 os direitos à vida promulgados pela Constituição, de 1988. É necessário superar as iniciativas de estímulo à instabilidade e polarização. Normas estéreis para a demarcação de terras indígenas representam um grave retrocesso nas garantias democráticas e republicanas de um ordenamento jurídico-legal baseado na cidadania, na justiça e no reconhecimento das melhores tradições, das experiências históricas e das evidências científicas que compõem o vasto acervo de conhecimentos, saberes e práticas que nos identificam como brasileiros e brasileiras.

Mas temos que lutar. A previsão é que a nova partida do jogo democrático ainda está no começo. Até lá, há muito a ser feito. Nada foi alcançado pelos povos indígenas sem mobilização e sem profunda articulação entre o local e o nacional, o presente, o passado e o futuro, a nossa condição ancestral e nossa defesa dos povos, das culturas, da paz, dos biomas e da Criação.

Melillo Dinis do Nascimento
Assessor jurídico e de incidência política da
Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil)

 

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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6 thoughts on “Os Povos Indígenas e o Marco Temporal

  • Janete Moura rocha

    Excelente texto ! Mellilo Diniz aborda as questões com conhecimento de causa e dos institutos jurídicos ! Parabéns a luta é muito grande porque o sistema quer tudo que não é seu ! Um horror !

  • Volmar José Pivetta

    Como tudo ou quase tudo na vida são “dois lados da mesma moeda”, ou seja, vc só se ateve a um lado – indios.
    Vc sabe, mas terras que se pretendem demarcar são altamente produtivas, gerando principalmente emprego, e esse confere de forma digna o sustento de quem trabalha. Além do mais, o próprio Estado no alto de suas atribuições concedeu escritura a esses proprietários com tempo que se passou em média 100 anos. Em mais, segundo, em torno de 80% são pequenos proprietários e como tal trabalham para sua sobrevivência, voce acha isso desonesto? Hoje, dados oficiais demonstram que em torno de 13,50%do território brasileiro já são reservas indigenas, o qual passaria para em torno de 27%.
    Me responda qual o pais no mundo que aplica esse tipo de politica?
    Qual os interesses em questão? É proteger os indios?
    Obs.: Como colunista tenho certeza que independente do tema, a coerência “manda” que deve-se abordar de forma imparcial, e com isso vai aferir credibilidade.

  • Ronaldo Volpato

    Eu sou pequeno produtor. Comprei com muito suor a minha terra de 20 ha no PR. Hoje não temos mais paz. A FUNAI com documentos fraudulentos está tentando demarcar nossas áreas como tradicionalmente ocupadas por indígenas. Mas eu vou expor uma realidade o que está acontecendo aqui. Áreas ocupadas por indígenas são desmatadas e os animais silvestres são caçados e vendidos pelos próprios indígenas. Aonde está a preservação dita e defendidas por você, pelas ongs e pela FUNAI?

  • Marianne Spiller

    É de fundamental importância que o Brasil protege e valorize os seus povos indígenas. Se o Brasil não fizer isso, um dia vai se arrepender amargamente. Pode ser que um ou outro indígena promova desmatamento. Mas em geral são os povos indígenas que ainda preservam as florestas do Brasil, dos quais precisamos muito. Sem floresta não tem água e sem água não tem vida. Os povos indígenas são os nossos guardiões da natureza, da biodiversidade. Precisamos deles.

  • Saul Lima Guimarães

    Quando os portugueses chegaram no Brasil os indígenas já estavam aqui, eles não descobriram nada, devolvam a terra prós indígenas

  • O governo pode demarcar as terras indígenas desde que pague o valor da terra. As terras foram compradas na década de 50 com incentivo do governo do estado para desenvolvimento rural e tem escritura.
    Lula quer demarcar 530 mil hectares em terras indígenas.. que pague o valor delas aos agricultores que levam alimentos a mesa dos brasileiros.. 500.000 * R$ 60.000,00 o hectare = 33 bilhões de reais.
    Os índios preservam a floresta que é muito importante, mas não produzem alimentos em larga escala para abastecer os mercados nas grandes cidades.. mas os agricultores produzem os alimentos mas desmatam o meio ambiente. A tese do marco temporal é o mais correto.

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