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Artigo

Ascensão da China como protagonista no cenário mundial é uma realidade

 

artigo de opinião

Ascensão da China como protagonista no cenário mundial é uma realidade, artigo de Douglas de Castro

À medida em que a China continua a crescer em poder material, tem cada vez mais a capacidade de colocar seu próprio projeto na ordem mundial

O título do livro publicado por Kishore Mahbubani é uma provocação que está associada ao título deste artigo: Has the West Lost it? (o ocidente se perdeu? — tradução do autor).

A despeito dos grandes temas que dominam a pauta da agenda mundial nas últimas décadas, alguns muito urgentes e existências como, por exemplo, as mudanças climáticas, observamos uma apatia desconcertante das nações em promover esforços de cooperação que possam trazer resultados concretos. Ainda para ficar no tema das mudanças climáticas, as Conferências das Partes (COPs) são realizadas e de concreto pouca coisa avança.

O sistema internacional é composto por 195 países (dependendo da fonte e de sua ideologia pode ser mais ou menos), todos dotados de soberania, ou seja, o direito de não haver a intervenção externa em assuntos internos daquele país.

A soberania coloca todos os países em situação de igualdade jurídica, o que vale dizer em uma estrutura marcada pela horizontalidade (note que não faço menção a critérios econômicos, posse de recursos naturais, posição geográfica ou qualquer outra dimensão que aponta para desigualdades entre eles). Neste sentido, a estrutura do sistema é marcada pela anarquia, ou seja, a ausência de um governo supremo aos países que pudesse impor a ordem e, portanto, cada país tem o interesse supremo de sobreviver (é aquilo que Tomas Hobbes designou como estado de natureza em que o “homem é o lobo do homem”).

A ordem no sistema internacional é mantida, em linhas gerais, por dois grandes mecanismos: a balança de poder e o Direito Internacional. Na balança de poder há um equilíbrio de forças entre um país ou grupo de países que estabiliza o sistema internacional. Um exemplo clássico deste mecanismo foi a Guerra Fria, em que o mundo era dividido entre dois países que representavam suas ideologias, cabendo à maioria dos países se alinhar ou não aos Estados Unidos e a ex-URSS. Este foi um período de grande estabilidade no mundo em relação à conflitos entre países, o que mudou com o final da Guerra Fria com o momento histórico da queda do muro de Berlim, oportunidade em que vários conflitos começaram a eclodir pelo mundo, especialmente no continente africano.

A balança de poder é instável por natureza, pois depende das forças políticas internas dos países e das pressões que o próprio sistema coloca sobre eles, fazendo-os sentir-se mais ou menos seguros. A ascensão dos Estados Unidos como potência hegemônica na década de 1990 não confirmou o fim da história profetizado por Francis Fukuyama. A tragédia do 11 de setembro ressuscitou o choque das civilizações de Samuel Huntington, mas que logo arrefece novamente a partir de outras demandas internacionais que dependem muito mais da cooperação do que a busca pela maximização do poder e das vantagens em jogos de soma-zero.

De outro lado e complementar à balança de poder está o Direito Internacional, uma abordagem liberal no sentido de manutenção da ordem internacional. Neste sentido, a formação de um conjunto de regras de abrangência global pela via da vontade dos países e pela prática de valores fundamentais a que todos estão sujeitos.

Ademais, para além do Direito Internacional, a formação de instituições multilaterais passa a ser reconhecidamente, especialmente após a Segunda Guerra, como foros de grande relevância em que os países podem debater temas da agenda internacional com a intenção principal de tornar a informação mais fluída e disponível, inclusive com a formação de bolsões de resistência e alinhamento de países contra avanços de nações mais poderosas.

Em algumas oportunidades apontamos a deficiência do Direito Internacional no sentido de que incorpora uma visão Eurocêntrica imbricada na sua formação e desenvolvimento. Na fundação, a justificação doutrinária das grandes navegações e dominação de povos originais (a chamada missão civilizadora) por sacerdotes. Na evolução, a missão civilizadora continua, agora com a “salvação” dos países em desenvolvimento a partir dos pressupostos universais do liberalismo (econômico e político) que as nações desenvolvidas representam.

É deste último ponto que gostaria de retornar à pergunta feita por Kishore, pois me parece que não está dando certo ou que os resultados estão aquém da importância dos temas globais. Excluídos os efeitos exacerbadores da pandemia da Covid-19, o mundo já estava enfrentando crises migratórias, conflitos intraestatais, aumento de eventos naturais extremos e fome, somente para citar algumas. Não pensem que estou sugerindo que uma postura niilista, mas, questiono se não há como incorporar outros ideais e valores à agenda mundial que possam calibrar a eficiência regulatória dos mecanismos de ordem, em especial, o Direito Internacional, tornando-o mais inclusivo.

A resposta está na ascensão da China como grande potência mundial, que ao mesmo tempo que causa desconfortos e falsas percepções, aponta para uma visão de mundo que vale a pena ser mais bem compreendida.

Protagonismo da China – À medida em que a China continua a crescer em poder material, tem cada vez mais a capacidade de colocar seu próprio projeto na ordem mundial. De fato, nos últimos anos, a China abandonou sua abordagem anteriormente cautelosa e insular dos assuntos internacionais e adotou uma abordagem mais política externa “assertiva” ao ingressar em instituições internacionais na tentativa de aportar outras visões quanto às normas globais.

Para explicar este fenômeno, alguns estudiosos olham para fatores mais abrangentes, como a mudança de posição da China no sistema internacional e o aumento de suas capacidades materiais. Outros olharam para fatores de nível doméstico, como grupos de interesse concorrentes, elites com forte poder econômico e nacionalismo crescente. Ainda nos fatores internos, a legitimidade do Partido Comunista Chinês lastreado nos ganhos econômicos nos últimos anos, acrescenta mais robustez neste nível de análise.

O que a maioria dos analistas deixa escapar é justamente a construção de relações internacionais baseadas nas experiências construídas pela China e outros países do Sul Global em seu encontro com as grandes potências Ocidentais. Este fator não pode ser destacado e é amplamente demonstrado empiricamente em grande parte dos estudos sobre as relações entre a China e a América Latina, por exemplo. Tenho insistido que há uma relação de acoplamento entre China e os países latino-americanos em que, aquela precisa das commodities e estes por escolha de um modelo desenvolvimentista extrativista, estão dispostos a vender (aliás, muito países, como o Brasil dependem do agro para sustentar seu PIB — como diz a propaganda, o Agro é Pop, é tudo).

Há pouca dúvida de que a China usa seu poder para inserir na ordem global atual percepções que aportem uma abordagem construtivista conforme argumentamos no parágrafo anterior, em que ideias e experiências compartilhadas possuem um grande peso nos rumos da política externa. O problema é que esta postura causa um grande desconforto e desconfiança no ocidente, mas, trata-se de um processo inevitável e necessário.

A abordagem da China não é de um jogo de soma-zero em que um deve perder para o outro ganhar, mas, a busca de processos de cooperação que possam refletir o modelo ganha-ganha que está associada aos preceitos do Confucionismo e de outros pensadores na milenar filosofia chinesa. Ressalte-se que esta postura encontra respaldo empírico quando examinamos os acordos celebrados com o Brasil, em que há uma série de dispositivos que importam na transferência de tecnologia, investimentos e treinamento, pontos que os países desenvolvidos possuem grandes restrições, especialmente se levamos em consideração os lobbies de empresas detentoras destas tecnologias.

A ascensão da China como protagonista no cenário mundial é uma realidade. O Brasil está junto com ela no BRICS, o Brasil vai reconhecer esta oportunidade de crescer com as experiências da China ou vai continuar com as picuinhas por se tratar de um país “comunista” (faltam “ideólogos” para explicar que comunismo é uma aspiração que nenhum país atingiu na realidade?). A história não acabou e ainda trouxe uma alternativa ao liberalismo e socialismo: o socialismo com características chineses, que até que provem o contrário, está indo bem.

Douglas de Castro é professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade de Lanzhou

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

 

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