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Transposições da Serra do Mar: A Epopeia Geológica da Estrada de Ferro Santos–Jundiaí

 

Transposições da Serra do Mar: A Epopeia Geológica da Estrada de Ferro Santos–Jundiaí

Já na década de 1830 não havia mais dúvida entre os paulistas sobre a imperiosa necessidade de uma estrada de ferro que ligasse o interior do Estado com o porto de Santos.

A espetacular produção de café estava correndo o risco de ficar sufocada por falta de uma boa logística de transporte para seu escoamento.

Em 1855 o Conselheiro José Antônio Saraiva, presidente da província, calculava em dois milhões e meio de arrobas a produção do café, açúcar e outros gêneros que deviam ser transportados pela estrada projetada e em um milhão de arrobas a quantidade de gêneros importados; portanto, três milhões e quinhentas mil arrobas transportáveis pela via-férrea. Isto, sem calcular o transporte de passageiros, cujo número seria avultado, pois transitavam anualmente pela barreira do Cubatão cerca de quarenta mil cavaleiros. (“Vias de Comunicação”, in História Geral da Civilização Brasileira)

Incorporando a vontade coletiva, dois homens foram fundamentais para a conclusão desse projeto. Pela viabilização financeira e empresarial do empreendimento, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. Pela viabilização técnica do que veio a se constituir uma verdadeira epopéia da engenharia, o jovem engenheiro inglês Daniel Makinson Fox.

Mesmo com a falência da empresa com que participava no empreendimento (Robert Sharp e Filhos), foi Mauá que conseguiu em 1856 a concessão do Governo Imperial, providenciou os primeiros estudos, levantou os recursos iniciais necessários e articulou a participação dos ingleses, por intermédio do então considerado maior especialista ferroviário da Inglaterra, James Brunlees. Brunlees, por sua vez, escolheu para comandar o projeto e a implantação da obra o jovem engenheiro Daniel Makinson Fox, por sua recente experiência ferroviária nas regiões montanhosas do País de Gales e nos Pirineus.

Com a estranha falência da empresa de Mauá, os ingleses comandaram empresarialmente sozinhos a implantação do empreendimento, em negociação que lhes proporcionou cláusulas contratuais extremamente vantajosas com o governo brasileiro, entre elas o monopólio exclusivo do transporte ferroviário para o porto de Santos durante 90 anos.

Em 1858, com apenas 26 anos, Makinson Fox desembarca no Brasil para iniciar os estudos da nova ferrovia e levar seus planos à aprovação de Brunlees. Havia uma condição-limite de ordem financeira imposta pelas combinações anteriores: o empreendimento não poderia ultrapassar a soma de 2 milhões de libras esterlinas.

Ao tentar obter nas mais variadas repartições dados cartográficos e geográficos gerais sobre a Serra do Mar, Fox logo percebeu que teria de partir quase do zero no que toca a informações técnicas mais consistentes sobre a região. Mas foi de sua primeira expedição “a campo” que o jovem Fox chegou à beira do desespero. Nunca havia visto uma natureza tão hostil como aquela. Praticamente sem caminhos de acesso, com uma floresta tropical úmida tão fechada que não lhe permitia as necessárias vistas panorâmicas, com um relevo tão acidentado que tornava qualquer tentativa de exploração antes de mais nada um esforço físico sobre-humano, com enormes riscos de graves acidentes. Sem contar o inferno particular proporcionado por toda sorte de insetos, especialmente pernilongos e borrachudos.

Foi nesse ponto que a juventude, a tenacidade e o espírito explorador de Fox superaram as incertezas para a decisão de “tocar em frente o projeto, fossem quais fossem as dificuldades”. A diretriz geral do traçado ao menos já havia sido definida: o vale do Rio Mogi.

vista geral da escarpa da serra do mar separando o planalto da baixada santista

Vista geral da escarpa da Serra do Mar separando o Planalto da Baixada Santista. Imagem Google Earth.

Reunindo um grupo de técnicos e trabalhadores braçais, Fox internou-se por meses na Serra do Mar, investigando toda a região à busca da melhor rota para a futura estrada. Nessas expedições chegou a se valer de antigas trilhas indígenas das vertentes do Vale do Rio Mogi, mas, se essas lhe facilitavam em algo a locomoção, pouco lhe ajudavam a obter o que mais almejava, qual seja, uma condição de vista panorâmica sobre toda a área. Meses se passaram e o jovem engenheiro inglês não conseguia reunir informações suficientes para a definição do traçado. Foi quando o acaso lhe ajudou. Em uma de suas expedições, já exausto como todo o seu grupo, resolveu parar em uma drenagem lateral do Rio Mogi para um necessário descanso. Nessa drenagem havia uma grande cachoeira, que Fox resolveu atingir pelo seu extremo superior. E foi desse local que ele conseguiu ter sua tão cobiçada visão panorâmica de um razoável trecho do vale do Rio Mogi. Ali tomou sua decisão: a futura estrada de ferro desceria do Planalto para a Baixada pela vertente esquerda do Mogi.

vertente esquerda do vale do rio mogi

Vertente esquerda do Vale do Rio Mogi mostrando as duas pistas ferroviárias da E.F. Santos–Jundiaí: a primeira Funicular (abaixo), que hoje recebe o sistema Cremalheira, e a segunda Funicular (acima). Notar a extensa faixa desmatada, que muito contribuiu para potencializar instabilizações, e o sistema superficial de drenagens implantado pelos ingleses. Notar também a maior freqüência de túneis e viadutos no traçado da segunda Funicular, o que representou um avanço de concepção, mas não suficiente para livrar este traçado do martírio dos escorregamentos. (Foto Arquivo IPT)

Mas não se resolveram aí todos os problemas de Fox. Estava claro para ele que, pelas condições geológicas da Serra, pelo desnível de perto de 800 metros a ser vencido e pela extensão que deveria ter a futura estrada para manter rampa em torno de 2%, compatível com o sistema de simples aderência, o orçamento fixado não seria suficiente. Fox foi ousado mais uma vez, e pensou em um projeto que lhe atenderia essas duas preocupações técnicas: utilizaria a tecnologia do sistema mecânico funicular, o que lhe permitiria trabalhar com rampas em torno de 10%, encurtando em muito o trajeto necessário e vencendo o trecho da Serra o mais rápido quanto possível.

Voltando à Inglaterra, mostrou seus dados e propostas a Brunlees, que os aceitou de imediato, não sem antes, matreiramente, conseguir mais algumas facilidades do governo brasileiro.

Em 1860 são iniciadas as obras, para as quais os ingleses trouxeram ao Brasil dezenas de engenheiros e técnicos ferroviários, utilizando pela primeira vez, em substituição à mão-de-obra escrava, trabalhadores assalariados, em grande parte imigrantes italianos.

Como era de se esperar, mas ultrapassando em muito as expectativas dos ingleses, a implantação do trecho da Serra foi extremamente desgastante e traumática diante dos inúmeros e enormes problemas geológico-geotécnicos encontrados. Escorregamentos de toda a ordem punham a perder serviços já tidos como prontos, explosivos não eram utilizados por temor de desmoronamentos, sendo as escavações em rocha executadas por meio de cunhas e pregos batidos com britadores. Cortes e aterros de mais de 20 metros de altura foram comuns, exigindo dos ingleses a execução de enormes muros de contenção em alvenaria. Cuidado especial tiveram com os sistemas superficiais de drenagem, até hoje tidos como obra de “verdadeira ourivesaria”.

Mas, por fim, em 1867 era oficialmente inaugurada a São Paulo Railway que, apesar dos inúmeros e gravíssimos problemas de implantação e dos incessantes problemas de estabilidade de taludes que apresentaria no decorrer de todos os seus longos anos de operação, proporcionou as primeiras condições reais para que São Paulo, enquanto cidade e economia, rompesse efetivamente o período de franco isolamento geográfico que a escarpa da Serra do Mar lhe impôs.

Não por outro motivo, a cidade de São Paulo passava de seus 25.000 habitantes em 1870 para 47.500 em 1886 e 240.000 em 1900.

Funicular e Cremalheira

A primeira linha férrea de Santos a Jundiaí venceu os quase 800 metros de desnível da Serra através do sistema mecânico funicular, que consistia de 4 planos inclinados, com rampa média de 10% e 4 patamares onde casas de máquinas fixas tracionavam as composições por meio de um fortíssimo cabo de aço. O sistema possibilitava a composição de esforços entre trens que subiam e desciam a Serra sincronizadamente. Essa primeira linha, que ficou conhecida como “Serra Velha”, cumpria a transposição da Serra em 8km em uma confortável e segura bitola de 1,60m.

Com o constante aumento de demanda de cargas de subida e descida da Serra, em 1885 a São Paulo Railway decidiu pela implantação de uma segunda linha, também no sistema funicular, mas que proporcionasse uma maior velocidade de percurso. Essa segunda linha, inaugurada em 1901, semiparalela à primeira, instalada também na vertente esquerda do vale do Rio Mogi, consistia de 5 planos inclinados, com rampa média de 8% de inclinação. O percurso foi estendido para 10km, mas com os trens podendo carregar uma maior tonelagem e atingir velocidades de até 25km/h.

cicatrizes de escorregamentos próximas à crista do espigão

Os dois traçados implantados, com suas extensas faixas desmatadas e grande nível de interferência nas encostas. Notar as cicatrizes de escorregamentos próximas à crista do espigão. (Foto Arquivo IPT)

Com as duras lições obtidas na implantação e manutenção da infraestrutura da “Serra Velha”, que apresentava como obras-de-arte apenas dois viadutos, sendo o restante do percurso implantado por meio de cortes e aterros na encosta, a nova funicular contou com a providência de 16 viadutos e 13 túneis, procurando reduzir a necessidade de grandes cortes, cujas obras de contenção chegaram a alcançar 50 metros de altura.

aterro contido e revestido por pedras rejuntadas

Para o enfrentamento dos problemas geológico-geotécnicos do trecho Serra do Mar os ingleses se valeram dos mais variados tipos de obras, inclusive as de alvenaria. Na foto, aterro contido e revestido por pedras rejuntadas e, ao fundo, viaduto de alvenaria em arcos. (Foto Livro The Very Britsh Railway)

Certamente esses cuidados técnicos colaboraram para a redução de acidentes geotécnicos, mas não o suficiente. A segunda linha também sempre operou em condições de segurança extremamente precárias ante à frequência com que ocorriam rupturas de taludes. Com a agravante de que suas próprias instabilidades agora, em não raras situações, acabavam por atingir a primeira linha, que lhe corre em paralelo algumas dezenas de metros abaixo.

Em 1970 a Estrada de Ferro Santos–Jundiaí inicia a implantação de um novo sistema de tração ferroviária na Serra. Aproveitando a plataforma da primeira funicular, é implantado o sistema cremalheira, que consiste na instalação de uma “correia” tri-dentada de tungstênio entre os trilhos, que se acopla a uma roda dentada instalada na locomotiva. Com o sistema cremalheira a capacidade máxima de tração é aumentada para 250 toneladas, e as velocidades médias, para 28km/h em subida e 22km/h em descida. O sistema cremalheira ocupou a plataforma antes utilizada pela primeira funicular e a segunda funicular continuou em operação até 1980, quando então foi desativada.

Esse sistema é inaugurado em 1974, depois de anos de atraso devido aos grandes problemas causados por gigantesco escorregamento ocorrido em fevereiro de 1971 em um vale denominado Grota Funda, o qual comprometeu drasticamente os pilares de fundação dos viadutos aí presentes, evento que é descrito no testemunho do Eng. Antônio Augusto Gorni, em sua obra A eletrificação nas ferrovias brasileiras:

As obras desse novo sistema (cremalheira) foram grandemente prejudicadas por um forte temporal que se abateu sobre a região em fevereiro de 1971, o qual provocou gigantescos deslizamentos ao longo das encostas da Serra do Mar que, entre outros danos, provocaram a destruição do viaduto da Grota Funda. A primeira viagem de uma locomotiva elétrica de cremalheira ocorreu somente a 8 de janeiro de 1974, quando a máquina #2001 percorreu o trecho entre Raiz da Serra e Paranapiacaba.”

funiculares atravessando a famosa ravina da grota funda

Viadutos da 1ª (abaixo) e 2ª (acima) funiculares atravessando a famosa ravina da Grota Funda. Já em 1910, sinais evidentes de instabilidades nas encostas, provocados pelo extenso desmatamento e pelos serviços relacionados à construção e manutenção da ferrovia. (Foto Acervo Maria Cecília França Monteiro da Silva)

escorregamento pode ser classificado como um típico colapso em saprolito fraturado

Foto tirada em 1971 durante os trabalhos de reconstrução do viaduto que teve suas estruturas abaladas pelo grande escorregamento da Grota Funda ocorrido nesse ano. Notar o espesso manto de saprolito com blocos de rocha desestabilizado pela implantação da ferrovia. O escorregamento está associado aos diferentes graus de alteração da rocha, à posição geométrica desfavorável das estruturas geológicas da rocha e à presença de uma nítida interface entre o saprolito e o horizonte inferior da rocha sã. As interferências da construção ferroviária no terreno e o extenso desmatamento no local foram os fatores potencializadores da instabilização e as pesadas chuvas seu agente deflagrador. Esse escorregamento pode ser classificado como um típico colapso em saprolito fraturado. (Foto Paulo A. Andrade)

escorregamento da grota funda

Vista frontal nos anos 80 mostrando a continuidade remontante do fantástico escorregamento da Grota Funda, responsável pela destruição de pilares do viaduto inferior e por várias interrupções de tráfego da E. F. Santos–Jundiaí, inclusive por dois anos de atraso no início efetivo da operação do sistema cremalheira. (Foto Arquivo IPT)

Cabe, por fim, registrar que a escolha de Fox pela vertente esquerda do Vale do Rio Mogi, do ponto de vista da Geologia de Engenharia acrescentava um problema adicional, como também aconteceu com a futura Estrada de Ferro Sorocabana ao eleger para seu traçado a vertente direita do Vale do Rio Cubatão. A maior regularidade morfológica dessas encostas revela o papel desempenhado por fatores geológicos em sua conformação, no caso, pelo fato de as principais estruturas e texturas (xistosidade) das rochas locais mergulharem paralelamente ou para fora do plano do talude, coadjuvando fortemente mecanismos de escorregamentos naturais, e, especialmente, promovendo aqueles induzidos pela implantação de cortes e outras mutilações do terreno.

É importante também registrar um erro de gravíssimas consequências cometido pelos engenheiros ingleses. Erro infelizmente reproduzido mais tarde também em algumas obras da engenharia nacional em encostas serranas tropicais. Os ingleses, acostumados às florestas frias e temperadas, em que as árvores são de praticamente uma só espécie e ocorrem bastante separadas uma das outras, expondo-se isoladamente a ventos fortes que podem, por efeito de alavanca, tombá-las, e com isso ofender, pelo arranque das raízes, as camadas superficiais de solo, providenciaram um amplo desmatamento de larga faixa das encostas imediatamente acima da linha férrea. Não se deram conta de que em climas tropicais e subtropicais as florestas apresentam uma enorme diversidade florística e enorme densidade de árvores, de tal modo que as copas conformam um único corpo arbóreo que se apóia mutuamente, impedindo que os ventos produzam o efeito alavanca que lhe poderia atingir o enraizamento e, por conseguinte, as camadas superficiais de solo. Desprotegidas da fantástica proteção promovida pela floresta tropical, as encostas então desmatadas viram-se sujeitas aos mais variados tipos de escorregamentos e processos erosivos superficiais.

220114 8 deslizamentos que periodicamente colocam em risco a operação do sistema cremalheira 220114 9 deslizamentos que periodicamente colocam em risco a operação do sistema cremalheira

À esquerda, deslizamentos que periodicamente colocam em risco a operação do sistema cremalheira. Anos 80. À direita, deslizamento provavelmente associado ao lançamento de material escavado encosta abaixo na época de abertura da ferrovia, fazendo ligação direta entre a Funicular (superior) e a Cremalheira (abaixo). (Fotos Arquivo IPT)

A expectativa do corpo técnico da São Paulo Railway de que, enfim escorregada toda a camada de solos superficiais, ao menos a estabilidade dos taludes e encostas seria alcançada, não se confirmou. Assim como ocorreu com a Estrada de Ferro Sorocabana na encosta direita do Vale do Rio Cubatão, as condições geológicas estruturais e texturais das rochas nessas duas vertentes do lineamento da Falha de Cubatão e o grau de intervenção promovido pela implantação dos cortes viários proporcionaram as condições para a continuidade dos escorregamentos nos horizontes mais profundos formados por solos saprolíticos e pela rocha em seus diversos graus de alteração.

(Obs: Texto extraído do livro “A GRANDE BARREIRA DA SERRA DO MAR – da Trilha dos Tupiniquins à Rodovia dos Imigrantes”, do mesmo autor do artigo)

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

  • Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia
  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para Elaboração e Uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
  • Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
  • Articulista do EcoDebate

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

 

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