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A imperiosa necessidade de adoção de programas de gestão geológica do uso do solo

 

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A imperiosa necessidade de adoção de programas de gestão geológica do uso do solo, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos

No que se refere às nossas cidades, o descompromisso com o meio físico geológico de suporte obedeceu o mesmo traço cultural da “terra de ninguém”

Há algo como 12 mil anos iniciava-se no âmbito da espécie humana a Revolução Tecnológica Neolítica. O Homem vê-se ambientalmente forçado a progressivamente abandonar sua índole nômade e seus hábitos de caçador e coletor de alimentos. Ao Homem, agora pressionado compulsoriamente para o sedentarismo, apresentava-se uma única alternativa: a superação dos limites ecológicos de sustentabilidade de seu habitat via a alteração das potencialidades nutricionais desse habitat por meio de profundas alterações ambientais promovidas por atividades agrícolas e pastoris.

Essa é a essência revolucionária da Revolução Neolítica: o Homem passa a garantir as condições de seu desenvolvimento e multiplicação não mais pela migração, mas pela alteração orientada de seu habitat. Do ponto de vista da evolução antropológica, pode-se afirmar que o Homem vence o empenho da Natureza (por força e através das limitações ecológicas do hábitat) em equilibrar o número de indivíduos da espécie, mudando, por sua inteligência e deliberação racional, as propriedades físicas e ambientais desse próprio habitat.

Inicia-se assim, no Neolítico, através ainda de rústicas técnicas, o que viria se tornar o avassalador destino do Homem como Agente Geológico transformador do planeta. Nesta saga é equipado por sucessivas revoluções tecnológicas que lhe oferecem progressivamente conhecimentos e instrumentos que mais lhe potencializam a capacidade de intervenção no ambiente natural.

No Brasil os primeiros homens chegaram há cerca de 12 mil anos, vindos do Norte, em estágio Mesolítico. Praticamente ainda nessa condição cultural-antropológica os europeus os encontraram há pouco mais de 510 anos atrás quando, com Cabral, iniciaram a colonização da região. É a partir desse momento que, na verdade pelas mãos do homem europeu, iniciam-se as relações do Homem Agente Geológico com o meio físico natural brasileiro.

Há uma conotação geral que caracteriza a ocupação físico-econômica do território brasileiro desde os tempos coloniais: o total desprezo pelo que possa vir a, ambiental e socialmente, decorrer das técnicas escolhidas para tanto.

No início da colonização, pode-se dizer que essa grave e irresponsável atitude deveu-se à noção geral de “terra de ninguém”, do caráter predatório e quase de saque que marcou as relações da metrópole com a recém-descoberta colônia. Mais adiante, certamente, essa atitude foi também sustentada pela concepção de inesgotabilidade de território, provida pela continental dimensão do novo mundo e pela facilidade legal de se apropriar privadamente de novas áreas. Ou seja, sempre pareceu mais prático e barato avançar para novas fronteiras agrícolas, extrativistas e pecuárias do que melhor cuidar dos territórios já ocupados.

O tempo encarregou-se de apresentar à sociedade brasileira o preço dessa atitude cultural. Vastas áreas desflorestadas, submetidas a uma sobrexploração extrativista (madeira e bens minerais), agrícola e pastoril sem nenhum cuidado técnico maior, são em seguida abandonadas por ter seus solos degradados física, mineralógica e agronomicamente, rasgados e carreados pela erosão e lixiviados em seus nutrientes.

No que se refere às nossas cidades, o descompromisso com o meio físico geológico de suporte obedeceu o mesmo traço cultural da “terra de ninguém”, traço cultural que levou a expansões urbanas marcadas pela desconsideração dos fatores hidrológicos, geológicos, geotécnicos e ambientais dos terrenos que sucessivamente vão sendo incorporados ao espaço urbanizado.

As consequências são por demais conhecidas: poluição das águas superficiais e subterrâneas, comprometimento de mananciais, contaminação de solos, instalação de áreas de risco a enchentes, deslizamentos de encostas, taludes de corte e solapamento de margens de cursos d’água, acidentes em obras de engenharia, poluição atmosférica, degradação precoce da infraestrutura urbana, deterioração das condições ambientais mínimas para a vida humana saudável…

Todos esses ingredientes testemunham a imperiosa necessidade de assumirmos culturalmente o hábito tecnológico da gestão geológica do uso do solo, traduzido por uma ação técnica permanente, um Plano de Gestão Geológico-geotécnica, a se estender da primeira concepção de um empreendimento qualquer até o monitoramento de sua operação, passando pelas fases de estudos preliminares, projeto básico, projeto executivo e implantação propriamente dita.

Esse Plano de Gestão Geológico-geotécnica, a constituir como uma providência legalmente obrigatória dos empreendimentos, terá como objetivo, e assim a garantirá, prover uma relação harmônica e tecnicamente exitosa entre a intervenção de engenharia e as características estáticas e dinâmicas do meio geológico em que se dá sua implantação.

Os resultados espetaculares que uma providência dessa natureza trará à sociedade brasileira justificam plenamente a decisão pública e privada em torná-la realidade no menor espaço de tempo possível.

Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

  • Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia
  • Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para Elaboração e Uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
  • Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
  • Prêmio Ernesto Pichler da Geologia de Engenharia brasileira
  • Colaborador e Articulista do EcoDebate

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

 

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