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Covid-19 e os povos indígenas no Brasil. Entrevista com liderança indígena Alvaro Tukano

 

Covid-19 e os povos indígenas no Brasil. Entrevista com liderança indígena Alvaro Tukano

Temos que recuperar nossas tradições”

Entrevista com liderança indígena Alvaro Tukano: Covid-19 e os povos indígenas no Brasil

Márcia Gomes de Oliveira & Norbert Suchanek entrevistam Álvaro Fernandes Sampaio Tukano, de 67 anos, Líder-Geral da Terra Indígena Balaio, no Município de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro, Estado do Amazonas.

Ele é ex-diretor do Memorial dos Povos Indígenas (MPI) em Brasília, autor do livro “O Mundo de Tukano Antes dos Brancos“ e tem uma longa biografia ligada à defesa dos direitos dos povos indígenas, seus territórios e tradições no Brasil. Por décadas, Álvaro é um dos mais importantes pensadores e lideranças indígenas do país. Ele é considerado um dos cinco intelectuais indígenas que na década de 1970 fizeram o movimento indígena acontecer.

O que você pode dizer da situação do seu povo Tukano e dos povos indígenas em geral hoje no Brasil?

Álvaro Tukano: Quero agradecer essa bela comunicação que você faz comigo, para falar sobre a realidade do meu povo que vive na fronteira do Brasil com Venezuela, no Município de São Gabriel da Cachoeira. Meu nome de cerimônia é Doéthiro. Doéthiro foi o primeiro homem da nossa humanidade do povo Yepa mahsã. Nós somos descendentes do Doéthiro. Defendemos as tradições e pensamentos milenares e os nossos territórios milenares. Hoje eu estou com 67 anos, o meu pai está com 114 anos, é o último dos sobreviventes dos antigos, porque a maioria já se foi e levaram muitos conhecimentos tradicionais.

No panorama geral, o Brasil tem uma história não agradável para os povos indígenas. Isto é, nós perdemos a paz desde o dia quando o homem branco pisou nesta terra. E essa terra foi retalhada entre as pessoas mais ambiciosas e assim continua, até hoje, com muitos preconceitos contra os povos indígenas, direitos que são borrados pelas autoridades brasileiras e outras penetrações que não condizem com nossa realidade, que são as ações religiosas e suas ideologias, e isso nos deixa realmente vulneráveis a tudo o que não presta. Então, é essa a nossa realidade, começaram a nos roubar desde 1500 e até aqui continuam roubando.

Atualmente, algums territórios indígenas, como a terra dos Yanomami e dos Munduruku, estão invadidos por garimpeiros ilegais em busca de ouro.

Álvaro Tukano: Os brasileiros sabem como é que está a situação real nesse país. Para bem dizer, nós não estamos sendo contemplados, porque os nossos direitos quando não praticados pelos governantes, nos deixam numa situação lamentável de invasões de terras, grilagens, garimpeiros, falta de justiça e morte de lideranças. E tudo isso, em nome do desenvolvimento do Brasil e do mundo, que não param de fazer suas armas nucleares, trens velozes, aviões velozes, toda uma indústria bélica, capitalista, que afetam nossas comunidades. 

Seria bom que muita gente respeitasse os povos nativos desse país, para que não sejamos todo tempo manipulados, em nome do progresso. Isso é muito ruim para nós. 

E a pandemia de Covid-19 piorou a situação dos povos indígenas?

Álvaro Tukano: Nós estamos cansados de viver nesse mundo de injustiças e por aqui chega então governantes e mais coronavírus. Porque nós não tendo trabalho, não tendo uma boa formação, não estamos capacitados, não temos condições mínimas de enfrentar qualquer pandemia. 

Mesmo assim, graças aos conhecimentos tradicionais, rezas e pajelanças, muitos de nossos sábios se movimentaram para tratar a saúde coletivamente. Assim a maioria dos índios que pegaram coronavírus nas aldeias sobreviveram, escaparam da morte tomando seus remédios do mato, fazendo as suas pajelanças e continuamos defendendo esses territórios que o mundo, que nós precisamos.

Um outro fato é que o Novo Coronavírus já afetou 140 territórios indígenas e matou mais de 600 indígenas no Brasil.

Álvaro Tukano: Aquelas indígenas que foram se tratar nos hospitais de não indígenas morreram. Morreram porque eles não acreditaram em nossos medicamentos, na nossa maneira de tratar, perderam as suas tradições e quando há essa perda de tradições, nós ficamos muito dependentes do sistema e esse sistema é caro para o tratamento de nossa saúde. 

É assim que nós pensamos e estamos fazendo essa observação para os nossos filhos, para manter esses conhecimentos antigos e viver de uma maneira digna em nossos territórios, manter as tradições. É claro que esses conhecimentos não são reconhecidos nas informações oficiais. Morrem muitas pessoas, nós não estamos sendo visíveis e esses dados não entram nos dados oficiais do governo. Mas a maioria absoluta, quem teve coronavírus escapou, graças as medicinas tradicionais dos povos indígenas.

Outros povos como os Xavantes, no Mato Grosso, e os Kayapó, no Pará, já perderam importantes lideranças por causa da Covid-19, como o Cacique Paulinho Paiakan.

Álvaro Tukano: Exatamente, nós perdemos o grande Paulinho Paiakan, defensor dos povos indígenas da Amazônia. Ele foi colega meu, é um grande astro da política indigenista no mundo Kayapó. Nós também perdemos na região sul, Nelson Xangrê, que foi o primeiro líder indígena Kaingang, e que esteve ao longo de todos esses anos ao meu lado, ele também morreu. E outras lideranças do povo Xavante também morreram e tudo isso, porque o mundo indígena fica cada vez mais apertado, tem muito expansão de agronegócio. Estão torrando o Cerrado, a Amazônia e o resto do país. E esse mundo pequeno que os índios tem hoje, nos deixa numa situação delicada para viver em paz. Então a contaminação chega dia e noite e nós estamos diante desse quadro triste, infelizmente.

Como uma liderança indígena, qual é a sua avaliação do governo anterior, os 14 anos do PT no poder?

Álvaro Tukano: Tocar nesse assunto é tocar na ferida do homem colonizador. Eu vou tocar. Como eu estive durante 30 anos, como líder, levei essa bandeira do PT, do Partido dos Trabalhadores, para muitas regiões do país, apesar de sermos desempregados, nós falávamos como se fossemos trabalhadores de fábricas, homens assalariados. Eu não sou assalariado, eu sou independente, como outros tantos. Mas foi bom sonhar por um país melhor. 

Infelizmente aqui nesse país, os extremistas da direita e da esquerda, eles são muito briguentos, cada um defende a sua família, o seu dogma e nos esquece. Portanto, eu não posso dizer se esse é bom, se o Lula é bom. Não posso. 

Quando esse governo esteve no poder, ele tinha a caneta na mão, mas foi frágil diante de outros programas que interessavam às grandes empresas transfluviais, transcontinentais, hidrelétricas, transposição do Rio São Francisco e outros monumentos como grandes estádios de futebol e isso não é de nosso interesse. O nosso interesse era que o governo demarcasse, homologasse todas as terras indígenas. Aí esse outro entrou com outro tipo de pensamento e isso realmente é difícil de dizer quem é bom para nós. 

O que é necessário para melhorar a situação? 

Álvaro Tukano: Então essa mensagem que eu dou, nós estamos colocando, que nós temos medicina própria, territórios próprios, conhecimentos próprios, essas coisas que tem que ser valorizadas pelas pessoas que nos apoiam. 

Mas é preciso ter mais resistência às opressões que nós sofremos aqui nesse país, que são os agronegócios que não respeitam o futuro do Brasil, principalmente dos povos indígenas, é isso que eu quero dizer ao Estado brasileiro. 

E dizer para instância internacional também que tem que ver aonde que está a dificuldade. Muitos países do primeiro mundo têm dado apoio econômico para preservar, defender a Amazônia e seus povos, e esse dinheiro existe no banco BNDES, mais de 1 bilhão de dólares. E esse 1 bilhão de dólares não chegam nas pontas, onde realmente vivem os índios que defendem a Amazônia dia e noite, praticando seus ensinamentos aos seus filhos para defender a integridade social e territorial. Essa é a diferença que também eu tenho que colocar.

Eu viajei a Roterdã, em novembro de 1980, para condenar a ditadura militar, para condenar a ação dos missionários salesianos por crime de etnocídio e isso tem me custado muito caro. Eu estive na Europa, em abril de 1990, para assinar um acordo com as cidades europeias (conhecido como Klimabündnis) que era para defender e fazer uma campanha econômica para defender a Floresta Amazônica. Muitas ONGs se apropriaram e esse dinheiro, que deveria vir para os povos indígenas, parou em alguns escritórios das grandes ONGs e assim continua. 

Nós ficamos sem nada. Quando é assim, nós somente sustentamos a história das grandes ONGs e a minha palavra, e de outros colegas meus, fica nula, e nós não gostamos disso. Isso tem que ser dito. Então, não é somente o governo brasileiro que nos atrapalha. Tem certas pessoas das ONGs também que nos atrapalham e nos boicotam e não aprovam os nossos projetos. 

Mas isso não nos interessa, nós continuamos do jeito que somos, nós somos lideranças de fato, nós não somos lideranças de bolsos de missionários e das ONGs não. 

Nós não queremos receber de vocês, não indígenas, um bombom, uma agulha, uma faca ou um espelho, isso daí não! É respeito, o que nós querermos é igualdade, no diálogo e no direito e no plano do desenvolvimento sustentável, é isso que nós estamos buscando. Os brasileiros têm que apoiar as populações indígenas, respeitar os direitos dos povos indígenas. É por isso que eu estou aqui.

Além disso, qual o apoio que os povos indígenas precisam hoje?

Álvaro Tukano: O apoio que os povos indígenas precisam hoje é que a sociedade como um todo, a brasileira, nos respeite da forma que nós somos. Esse país tem 314 povos, eles falam 272 línguas e são 950 mil índios no Brasil, menos de 1 milhão portanto, e nós somos sobreviventes. Existe um órgão indigenista aqui no país chamado Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que tem bons funcionários e essas pessoas demarcaram as terras indígenas, aplicando as regras e os conhecimentos técnicos para demarcar as terras indígenas. Quando essa fundação não tem apoio do governo, nós ficamos tristes, assim enfrentamos muitas invasões, como lhe acabei de dizer. A invasão de madeireiros, garimpeiros e outros projetos. 

Não somente a população brasileira, mas outros povos também que dependem de nossas florestas e de nossos conhecimentos que podem ser úteis à humanidade, se os povos indígenas assim existirem. Se esses conhecimentos forem levados pelos antigos, o mundo ficará sem história. Teremos uma história muito triste para continuar vivendo com uma autodeterminação, com línguas próprias, em seus territórios, é assim que nós pensamos.

Qual é seu desejo para o futuro próximo?

Álvaro Tukano: Eu quero dizer para as novas lideranças de todo Brasil, nós nunca devemos esquecer as nossas origens, nunca devemos ter vergonha de nossas origens. Temos que recuperar nossas tradições. Nós temos que manter a ética. Manter a simplicidade que é a nobreza de nossas lideranças e não ser manipulados por ninguém.

O meu desejo, o nosso desejo para o futuro próximo é que os nossos filhos acreditem nas palavras dos antigos para serem bons curandeiros, bons mestres de cerimônias, que sejam respeitados, que haja respeito entre si. E que possamos fazer aliança com todos os povos indígenas e outros aliados para preservar a vida do Planeta Terra e nossas florestas e assim esquecer tudo o que passou nesses países, nesses continentes. E chega de guerra!

Eu não sou a única pessoa a pensar assim, o que eu expresso é o pensamento da maioria absoluta que quer a paz. Muito obrigado!

Foto: Alvaro Tukano / Norbert Suchanek
Foto: Alvaro Tukano / Norbert Suchanek

Márcia Gomes de Oliveira é educadora e socióloga. Norbert Suchanek é correspondente dos jornais Neues Deutschland e Junge Welt em Berlim e colaborador do Portal EcoDebate no Rio de Janeiro.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/08/2020

 

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