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Medidas de estímulo econômico pós COVID-19 não devem estimular futuras pandemias

 

Covid-19 e futuras pandemias
Colniza, MT, Brasil: Área degradada no município de Colniza, noroeste do Mato Grosso. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Karina Toledo | Agência FAPESP – Doenças que emergiram da relação entre animais e humanos matam no mundo cerca de 700 mil pessoas todos os anos e o risco de surgirem novas pandemias é grande. Estima-se que as aves aquáticas e os mamíferos sejam reservatório para 1,7 milhão de vírus ainda não identificados, mas com potencial para infectar humanos.

“Qualquer um desses pode ser a próxima ‘doença-X’ – potencialmente mais disruptiva e letal do que a COVID-19. Se não tomarmos muito cuidado com as escolhas que fazemos hoje, é provável que no futuro as pandemias ocorram com mais frequência, se espalhem mais rapidamente, tenham maior impacto econômico e matem mais pessoas”, alertam cientistas ligados à Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES).

O artigo, intitulado COVID-19 Stimulus Measures Must Save Lives, Protect Livelihoods, and Safeguard Nature to Reduce the Risk of Future Pandemics (Medidas de estímulo econômico para minimizar efeitos da COVID-19 devem salvar vidas, proteger meios de subsistência e salvaguardar a natureza para reduzir o risco de futuras pandemias), foi divulgado no site da entidade – criada em 2012 com a missão de sistematizar o conhecimento científico acumulado sobre biodiversidade para subsidiar decisões políticas em âmbito internacional.

O texto é assinado por Peter Daszak (EcoHealth Alliance, Estados Unidos), Josef Settele (Helmholtz-Centre for Environmental Research, Alemanha), Sandra Díaz (Universidade Nacional de Córdoba, Argentina) e o brasileiro Eduardo Brondizio (Indiana University, Estados Unidos). Os três últimos coordenaram a primeira avaliação global do estado da biodiversidade, publicada pela IPBES em 2019. O relatório indicou a existência de 1 milhão de espécies de plantas e animais em risco de extinção nas próximas décadas e já antevia a possibilidade de surgir uma epidemia em escala global (leia mais em: agencia.fapesp.br/30430).

Para os autores, a espécie humana é a única responsável pelo avanço da COVID-19. “Assim como as crises do clima e da biodiversidade, as recentes pandemias são consequência direta da atividade humana – particularmente de nossos sistemas financeiros e econômicos globais baseados em um paradigma limitado, que valoriza o crescimento econômico a qualquer custo”, afirmam.

Entre as atividades que favorecem a transmissão de doenças da vida selvagem para as pessoas, são citadas no texto o desmatamento desenfreado, a expansão descontrolada da agricultura, a agricultura intensiva, a mineração e a exploração de espécies selvagens. Segundo os cientistas, essas práticas ocorrem principalmente nas áreas em que vivem as comunidades mais vulneráveis a doenças infecciosas.

“Nossas ações impactaram significativamente mais de três quartos da superfície da Terra, destruíram mais de 85% das áreas úmidas e dedicaram mais de um terço da terra e quase 75% da água doce disponível às lavouras e à produção animal. Acrescente a esse cenário o comércio não regulamentado de animais silvestres e o crescimento explosivo das viagens aéreas globais e ficará claro como um vírus que antes circulava inofensivamente entre espécies de morcego no sudeste da Ásia conseguiu infectar mais de 2 milhões de pessoas, causar um sofrimento humano incalculável e interromper economias e sociedades em todo o mundo. Esta é a mão humana na emergência de uma pandemia”, afirmam.

Escolhas para o futuro

O principal objetivo do artigo divulgado pela IPBES é fazer um alerta aos governantes de todo o mundo para que as ações tomadas para reduzir os impactos da atual pandemia não ampliem os riscos de futuros surtos e crises. Nesse sentido, os autores apontam três questões a serem consideradas nos planos de estímulo econômico que estão sendo implementados em diversos países.

A primeira é o fortalecimento e a aplicação das regulamentações ambientais. Na avaliação dos cientistas, apenas devem ser implantados pacotes de estímulo que ofereçam incentivos para atividades mais sustentáveis e positivas à natureza. “Neste momento, pode ser politicamente conveniente relaxar os padrões ambientais e apoiar setores como agricultura intensiva, transporte de longa distância, companhias aéreas e setores de energia dependentes de combustíveis fósseis, mas se não forem exigidas mudanças urgentes e fundamentais para que essas atividades se tornem mais sustentáveis, estarão subsidiando essencialmente o surgimento de futuras pandemias”, argumentam.

Em seguida, os autores sugerem que seja adotada, em todos os níveis de tomada de decisão, a abordagem “One Health” (saúde única), que reconhece as complexas interconexões entre a saúde das pessoas, dos animais, das plantas e do ambiente que compartilham. “Os departamentos florestais, por exemplo, geralmente estabelecem políticas relacionadas ao desmatamento. Os lucros são amplamente obtidos pelo setor privado, porém, são os sistemas de saúde pública e as comunidades locais que frequentemente pagam o preço dos surtos de doenças resultantes. A abordagem ‘One Health’ garantiria que fossem tomadas as melhores decisões, levando em conta os custos e as consequências de longo prazo das ações de desenvolvimento para as pessoas e a natureza”, defendem.

Por último, o grupo aponta a necessidade de financiar adequadamente os sistemas de saúde, mobilizar financiamento internacional para estimular programas de saúde pública em áreas de doenças emergentes, de oferecer alternativas viáveis e sustentáveis às atividades econômicas de alto risco e de proteger a saúde dos mais vulneráveis. “Isso não é simples altruísmo, mas um investimento vital no interesse de todos para evitar futuros surtos globais”, afirmam.

Na contramão

Na avaliação do biólogo Carlos Alfredo Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Programa BIOTA-FAPESP, o Brasil parece seguir na direção oposta à recomendada pelos especialistas da IPBES. Números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que a extração ilegal de madeira avança em ritmo acelerado na Amazônia e que o volume do desmatamento acumulado de agosto de 2019 a março deste ano foi quase o dobro do verificado no mesmo período do ano anterior. Além disso, o governo federal exonerou recentemente agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) responsáveis pelas operações de combate ao garimpo ilegal e à grilagem de terra.

“Vem sendo desmontada toda a legislação ambiental do país. Até mesmo as regras que protegem a Mata Atlântica começaram a ser flexibilizadas. Um exemplo é o Despacho 4.410/2020 emitido pelo Ministério do Meio Ambiente em abril, que anistia, em todo o bioma, quem desmatou áreas de preservação permanente até 2008, isentando os proprietários da obrigação de restauração dessas áreas. Logo não vai sobrar nada”, lamenta Joly. Procurado pela reportagem, o Ministério do Meio Ambiente não retornou até o fechamento desta edição.

Segundo o coordenador do BIOTA, que já integrou o Painel Multidisciplinar de Especialistas da IPBES e, atualmente, coordena na entidade a força-tarefa voltada à capacitação das equipes que elaboram os relatórios, ninguém tem ideia da quantidade de vírus potencialmente patogênicos que existem nas florestas brasileiras.

“Pesquisadores do BIOTA acabam de publicar o primeiro inventário de vírus que infectam plantas no Brasil. Mas nunca foi feito um levantamento sistemático dos vírus que infectam animais. A Amazônia tem hoje uma baixa densidade populacional, mas, à medida que mais gente entra nas florestas e se expõe a esses patógenos, aumenta o risco de que cruzem a barreira das espécies”, diz.

Além do desmatamento, outro fator de risco apontado por Joly é a extinção de predadores como a onça-pintada e o decorrente desequilíbrio na cadeia alimentar. “Hoje há populações crescentes de capivara em todas as áreas urbanas do Estado de São Paulo. Por um lado não há um predador para fazer o controle dessas populações e, por outro, há alimento em abundância nas plantações de cana e milho nas margens dos rios. Esse já é um problema de saúde pública, pois as capivaras abrigam o carrapato-estrela, vetor da febre maculosa”, explica Joly.

As plantações de alimento também costumam atrair outras espécies de roedores que são reservatórios de vários hantavírus e arenavírus, patógenos que podem ser transmitidos para humanos por meio do contato com fezes e urina de animais infectados.

Se por um lado a rica biodiversidade do país abriga inúmeras espécies patogênicas desconhecidas, por outro pode ser a fonte de medicamentos capazes de combater viroses e pandemias, argumenta Joly.

“No âmbito da iniciativa BIOprospecTA, do BIOTA, os pesquisadores estão continuamente buscando nas espécies da biodiversidade brasileira moléculas que possam ser a base do desenvolvimento de novos medicamentos. Essa pesquisa envolve plantas, animais e microrganismos, terrestres, marinhos e de água doce. Moléculas obtidas de esponjas marinhas, por exemplo, resultaram em fármacos de grande importância clínica para o tratamento de infecções virais como o herpes”, conta Joly.

 

Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 18/05/2020

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