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Artigo

Nacionalismo, crise energética e desglobalização, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

“O sistema protecionista é na atualidade conservador, enquanto o sistema do comércio
livre é destrutivo. Desmorona as velhas nacionalidades e eleva ao extremo o
antagonismo entre o proletariado e a burguesia. Numa palavra, acelera
a revolução social. E é apenas neste sentido revolucionário que
eu voto a favor da liberdade de comércio”.
Karl Marx (Bruxelas, 09/01/1848)

 

valor das exportações mundiais: 1950-2016

 

[EcoDebate] Karl Marx era a favor da globalização do capital por dois motivos: primeiro, eliminava as formas arcaicas de produção e superava as antigas relações sociais retrógradas e primitivas; segundo, porque a burguesia tinha um papel “eminentemente revolucionário na história”, sendo capaz de desenvolver os meios de produção, ampliar a oferta de bens e serviços e levar ao extremo o antagonismo entre o proletariado e a classe de proprietários. Para Marx, a globalização era uma tendência intrínseca do processo da acumulação de capital e quanto mais avançada, maior seria a capacidade técnica-produtiva e maior o antagonismo entre o poder do capital e o poder do trabalho.

Ou seja, na visão marxista, o desenvolvimento do capitalismo cria as condições para a sua própria destruição e para a vitória do trabalho sobre o capital. Abre a oportunidade para uma revolução social. Por conta disto, Marx torceu pela vitória dos Estados Unidos na guerra contra o México, em meados do século XIX. Também, na mesma linha de raciocínio, Marx escreveu uma carta à Abraham Lincoln, do Partido Republicano, em janeiro de 1865, recém-reeleito presidente dos Estados Unidos, na qual elogia a luta contra a escravidão e apoia o Norte industrializado, assalariado e urbano, contra o Sul rural, escravista e latifundiário.

Para Marx: “O sistema protecionista é conservador, enquanto o sistema de livre comércio é destrutivo”. Este é o dilema que o mundo vive nos últimos 240 anos, desde que Adam Smith lançou o seu livro sobre a Riqueza das Nações, em 1776, e serviu de base para a teoria do valor trabalho. David Ricardo, mostrou, em 1817, que o comércio internacional deveria ser regido pelas vantagens comparativas relativas no sentido de aproveitar ao máximo as “Fronteiras de Possibilidades de Produção”. A globalização possibilitou a geração de muita riqueza para a humanidade, mas esta riqueza ficou concentrada nas mãos de uma classe proprietários, em um número restrito de países, além de causar grandes danos ao meio ambiente.

Portanto, podemos dizer que a globalização, no longo prazo, foi boa para desenvolver os meios de produção, para gerar mercadorias em grande quantidade, mas criou enormes desigualdades de renda e propriedade dentro e entre os países, assim como grande degradação ecológica. No passado, a globalização favoreceu os países da Europa, os Estados Unidos e a Oceania, possibilitando que os países destas regiões ficassem ricos e conseguissem criar um Estado de Bem-estar, incorporando amplos setores da população nos ganhos da globalização.

Mais recentemente, começando pelos acordos entre Richard Nixon e Mao Tse Tung, em 1972, e prosseguindo com as Reformas de Deng Xiaoping, no final dos anos de 1970, a China se tornou a grande beneficiária da globalização, tornando-se uma potência militar e tecnológica e tirando mais de um bilhão de habitantes das condições abjetas onde estavam abaixo da linha de pobreza extrema. Nunca na história um país cresceu tanto em termos econômicos e sociais e nunca houve um acúmulo tão grande de saldos na balança comercial. Somente em 2015 o superávit comercial da China foi de US$ 600 bilhões. O Gigante Asiático tinha uma participação de somente 1% no comércio internacional em 1950 e chegou a 14% em 2015.

O contrário aconteceu com os EUA, que tiveram o último saldo positivo na balança comercial em 1975, quando as exportações americanas representavam 16% do total global. No segundo governo George W. Bush, de 2005 a 2008, o déficit comercial dos EUA chegou a quase US$ 900 bilhões anuais e a participação das exportações americanas no comércio mundial caiu para 8% (metade da percentagem de 1975). Em 2015, penúltimo ano do governo Obama, o déficit comercial ficou em US$ 800 bilhões, o que deve se repetir em 2016.

Isto aumenta as pressões protecionistas e diminui as estimativas e crescimento do comércio internacional. Como mostra o gráfico acima, pela primeira vez no século XXI o comércio cai durante dois anos seguidos. O valor das exportações mundiais em 2016 deve ficar abaixo não só do valor do ano passado, mas também do valor de 2008. Uma paralisia que dura 8 anos e que é maior do que a crise do início da década de 1980, quando o comércio internacional ficou empacado, em termos de valor, por 6 anos.

A situação atual só é comparável com a desglobalização que aconteceu a partir de 1914 e que teve início com a Primeira Guerra Mundial, quando o fluxo de migrantes e de capital foi reduzido e as barreiras protecionistas prevaleceram. Como consequência, o período entre 1914 e 1945 foi marcado por recessão, desemprego, sofrimento, violência e guerras. Houve concentração da renda e aumento da pobreza e das desigualdades sociais. O nacionalismo, o nazismo, o militarismo e o estalinismo prevaleceram neste período sombrio da história.

Mas com a Nova Ordem estabelecida em Breton Woods e a criação dos organismos multilaterais – como ONU, Banco Mundial, FMI, Organização Mundial do Comércio, etc. – o período entre 1945 a 2008 foi o de maior crescimento econômico da história da humanidade. O comércio mundial disparou como mostra o gráfico acima. Em termos nominais, o valor do comércio aumentou 280 vezes neste período. Os ganhos da globalização (para o ser humano) foram maiores do que as perdas.

Mas seria um equívoco creditar todos os ganhos deste lapso de tempo ao livre comércio. Na verdade, o período 1950 a 2008 foi marcado por uma incrível conjugação de forças favoráveis: elevada disponibilidade de recursos naturais (terra, água, florestas, biodiversidade, etc.); estabilidade no clima; condições favoráveis do meio ambiente; grande aumento da esperança de vida da população e dos anos médios dedicados às atividades produtivas; estrutura etária favorável com aumento da parcela de “produtores” sobre os “consumidores”; ampliação dos níveis educacionais e do capital humano; aumento do estoque de capital fixo; elevação do progresso técnico; crescimento da produtividade dos fatores de produção; processo de descolonização da África e Ásia, fim da Guerra Fria em 1989 e, em especial, grande disponibilidade de energia fóssil a preços muito baixos.

Um dos fatores que possibilitou à globalização apresentar resultados positivos entre 1945 a 2008 foi a abundância energética e o aumento da disponibilidade per capita de energia. É bom lembrar que o preço baixo da energia significa preço baixo dos alimentos. Assim, a globalização possibilitou o enriquecimento das elites econômicas do mundo, mas também possibilitou a redução da fome e da pobreza extrema. O gráfico abaixo, do Banco Mundial, mostra que o número de pessoas na extrema pobreza caiu de 1,85 bilhão em 1990 (representando 35% da população mundial) para 767 milhões em 2013 (representando 10,7% da população mundial).

 

the global poverty headcount ratio and tha number os the extreme poor, 1990-2013

 

Contudo, já existem indícios de que este processo de ganhos se esgotou e que as perdas devem superar os benefícios. A extrema pobreza já voltou a subir na América Latina a partir de 2015 e o caso da Venezuela é apenas o exemplo mais flagrante. Existem países que estão em franco retrocesso como Iraque, Líbia, Ucrânia, Iêmen e principalmente a Síria. Mesmo na Europa, os PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha) estão estagnados e perdendo posição em relação ao norte europeu. A crise de refugiados não tem paralelo na história recente.

Neste novo quadro colocado pela crise do comércio internacional, pela crise energética, pela estagnação secular e pelo drama migratório, a partir de 2008, surgem as propostas de fechamento das fronteiras e ressurgem as medidas protecionistas que crescem com o nacionalismo (a nação em primeiro lugar).

É neste contexto que se pode entender o Brexit na Europa, o nacionalismo turco de Erdogan e a vitória de Donald Trump nos EUA, em 2016. Em ambos os casos o que tem prevalecido é o nacionalismo, o populismo, o protecionismo, a xenofobia, o racismo e o isolacionismo. Enfim, a desglobalização.

Para o cineasta Michael Moore, que previu a vitória do bilionário nova-iorquino, Trump é um “palhaço desprezível, ignorante e sociopata perigoso”. Hillary ganhou no voto popular (cada pessoa um voto). Mas ele foi eleito no colégio eleitoral com o voto majoritário dos homens brancos com baixo nível de escolaridade, a população rural, de pequenas cidades, interiorano e do fundamentalismo evangélico. Dizem que essa “maioria silenciosa” constitui os perdedores da globalização. De fato, os antigos trabalhadores da indústria tradicional dos EUA perderam os empregos para os trabalhadores chineses. Também é inconteste que os EUA estão em declínio relativo e já não são a potência econômica e militar que foram no passado.

Mas as propostas econômicas de Donald Trump não vão resolver o problema dos EUA e, com certeza, vão agravar os problemas ambientais. Levantar um muro na fronteira com o México não vai garantir emprego para estes americanos ressentidos. Colocar tarifas protecionistas contra os produtos chineses vai deixar as multinacionais descontentes e vai encarecer os produtos à disposição do povo americano. Além de a China poder retaliar e retirar suas centenas de bilhões de dólares que estão aplicados na monstruosa dívida americana. O corte dos impostos vai beneficiar somente os ricos que já são ricos e que vão ficar mais ricos. Se Trump colocar os seus planos em prática vai aumentar a inflação e os juros nos Estados Unidos e agravar a recessão mundial, em 2017.

O que a campanha eleitoral de 2016 mostrou é que os EUA não têm apenas um problema econômico, mas também uma grave crise na democracia. Nunca houve uma campanha tão polarizada e de tão baixo nível. Os ataques pessoais, os escândalos sexuais e as mentiras abundaram. Se apelou para o medo e o ódio entre os estados desunidos da América. A campanha republicana atacou o feminismo, o multiculturalismo e a diversidade. Evidentemente, houve diversos erros na campanha de Hillary Clinton e nas políticas do Partido Democrata.

Mas o sentimento geral é que houve um estelionato eleitoral. Assim, que foram divulgados os resultados eleitorais milhares de pessoas foram às ruas de inúmeras cidades para protestar contra o processo eleitoral viciado e irracional. Muitos eleitores estão envergonhados com a postura bairrista e egoísta de grande parte do povo americano. A revolta popular, especialmente nas grandes cidades, tende a aumentar quando vierem os resultados das ações do novo governo. Os manifestantes já pedem o impeachment do presidente eleito, numa versão precoce do “Fora Trump”.

Protestar contra os efeitos desastrosos da globalização é justo e necessário. Mas olhar somente para o próprio umbigo é miopia. A receita de Marx para os efeitos destrutivos da globalização não era o protecionismo, o isolacionismo e a desglobalização, mas sim a união dos proletários de todo o mundo e o fortalecimento da internacional socialista. Mas esta utopia marxista está longe da realidade atualmente, como esteve longe da realidade quando vários partidos socialistas apoiaram os interesses nacionais sobre a solidariedade internacional durante a Primeira Guerra Mundial. Isto provocou o fim da Primeira Internacional.

Hoje em dia, até as alternativas liberais estão sendo derrotadas. A governança global está em perigo. Durante a campanha, Trump prometeu retirar os EUA – o maior poluidor do planeta depois da China – do Acordo de Paris, que foi ratificado no dia 04 de novembro de 2016. Ainda que não possa sair de imediato (um país deve esperar no mínimo três anos para retirar-se do acordo), ele poderá causar imensos estragos no combate ao aquecimento global.

Enquanto isto, o ano de 2016 vai bater todos os recordes de temperatura e o aumento do nível do mar ameaça todas as áreas costeiras do mundo, inclusive grandes cidades americanas, como Nova Orleans, Miami e Nova Iorque. Até propriedades e bens imobiliários de Donald Trump estão ameaçadas de ficarem debaixo d’água. O atraso no corte de emissões de gases de efeito estufa pode ser fatal para o futuro da civilização e da sobrevivência dos ecossistemas e das espécies (as verdadeiras vítimas da globalização e do progresso antrópico). O quadro é sombrio.

 

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

 

in EcoDebate, 14/11/2016

[cite]

 

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