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Os Direitos da Natureza e a superação do desenvolvimentismo predatório, por Verena Glass

 

opinião

 

[Repórter Brasil]  E se se reconhecesse universalmente que, assim como o ser humano, a natureza tem direitos? Se se reconhecer universalmente que a natureza, em todas as suas formas de vida, tem o direito de existir, persistir, manter e regenerar seus ciclos biológicos? Se à natureza não fosse conferida a condição de objeto, mas o status de sujeito de direitos? Se se reconhecer que, ao final das contas, a natureza não é simplesmente um item possuível, explorável, descartável e manipulável – ou simplesmente uma “propriedade” – perante a lei?

Cachoeira do Jericoá, na Volta Grande do Xingu, área afetada pela construção de Belo Monte. Foto: Verena Glass

Os Direitos da Natureza, compreendidos como o equilíbrio do que é bom para os seres humanos com o que é bom para as outras espécies do planeta, são um conceito que, juridicamente, pode ainda não ter penetrado a jurisprudência das cortes brasileiras, mas já foi aplicado em processo do Ministério Publico Federal (MPF) e tem uma sólida definição na Constituição equatoriana. Dois fatos importantes para a arrancada de um processo de consolidação da ideia na nossa região.

Durante o 1º Encontro de Pesquisadores da Panamazônia, ocorrido no final de maio na cidade de Macapá (no marco do Fórum Social Panamazônico), o procurador do MPF no Pará, Felicio Pontes Jr, o economista e Presidente da Assembleia Constituinte do Equador, Alberto Acosta, e a cientista social e doutoranda da UFRRJ, Camila Moreno, propuseram uma série de reflexões sobre o que é e como pode ser aplicado o Direito da Natureza.

Na Justiça
Em agosto de 2011, o Ministério Público Federal no Pará impetrou a 11ª Ação Civil Pública contra a hidrelétrica de Belo Monte (hoje já são 20 procedimentos, incluindo 17 ACPs, duas Ações de Improbidade, e uma Ação Cautelar Inominada). Esta Ação versou especificamente sobre os impactos irreversíveis da usina sobre o ecossistema da Volta Grande do Xingu; a morte iminente do ecossistema; risco de remoção dos índios Arara e Juruna e demais moradores da Volta Grande; vedação constitucional de remoção; e – aí destaca-se o novo elemento – a violação do direito das futuras gerações; o direito da natureza; e a Volta Grande do Xingu como sujeito de direito.

Foi uma ação ousada e, porque não dizer, de certo modo até poética, conta Felício na conversa com Acosta e Camila. O mapa da Volta Grande estampado na parede, o procurador acompanha com o dedo o traçado do rio e explica os impactos irreversíveis que Belo Monte causará a este trecho do Xingu, considerado, por decreto do Ministério do Meio Ambiente, como de importância biológica extremamente alta pela presença de uma fauna que só existe nessa área.

O procurador do MPF no Pará, Felicio Pontes Jr, a cientista social e doutoranda da UFRRJ, Camila Moreno, e o economista e Presidente da Assembleia Constituinte do Equador, Alberto Acosta, debatem no 1º Encontro de Pesquisadores da Panamazônia. Foto: Verena Glass

“A usina, de acordo com todos os documentos técnicos produzidos seja pelo Ibama e pelas empreiteiras responsáveis pelos Estudos [de Impacto Ambiental], seja pela Funai, o MPF ou os cientistas que se debruçaram sobre o projeto, vai causar a morte de parte considerável da biodiversidade na região da Volta Grande do Xingu – trecho de 100 km do rio que terá a vazão drasticamente reduzida para alimentar as turbinas da hidrelétrica”, explicou o MPF à época. “Mas o juiz, quando apreciou a ação, respondeu curto e grosso em um parágrafo que aquilo não lhe fazia sentido”, diz Felício. “Foi frustrante”. De toda forma, o fato é que o Direito da Natureza se fez presente no judiciário brasileiro. É um primeiro passo, pondera o procurador, para que a incompreensão inicial deste conceito seja passível de reversão.

Na Constituição do Equador de 2008, os Direitos da Natureza têm quatro artigos – do 71 ao 74 – que os definem e garantem. O artigo 72 reza: “O Estado aplicará medidas de precaução e restrição para as atividades que possam conduzir à extinção de espécies, a destruição de ecossistemas ou a alteração permanente dos ciclos naturais”. Já o artigo 74 afirma que “as pessoas, comunidades, povos e nações terão o direito a beneficiar-se do ambiente e das riquezas naturais que lhes permitam o bem viver”.

Yasuni
Mas como direitos constitucionais nem sempre equivalem a direitos respeitados, assim como em Belo Monte o governo equatoriano recentemente jogou no monturo o que reza a Constituição do país e uma proposta ousada – a manutenção do petróleo no subsolo no parque Yasuni, que detém uma das mais preciosas biodiversidades do planeta e é o território de inúmeros indígenas em isolamento voluntário – e se imbuiu de um antidemocratismo exemplar ao decidir que para o inferno os direitos da natureza e das populações que nela vivem, o país precisa dos recursos advindos do petróleo do Yasuni para promover seu desenvolvimento.

Mas o que é desenvolvimento? Porque, em seu nome, direitos sociais e ambientais tem sido tão amplamente violados? Na avaliação da cientista social Camila Moreno, o discurso construído em torno da ideia-força do ‘desenvolvimento’ é intrínseco e indissociável à consolidação do regime multilateral, inaugurado após a segunda guerra mundial com os acordos de Bretton Woods e a criação do sistema das Nações Unidas. Fundado em 1944, o Banco Mundial, uma das principais instituições do regime multilateral, tem entre suas instituições financeiras o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (IBDR, por sua sigla em inglês), fundado para reconstruir a Europa devastada e prover empréstimos para o desenvolvimento dos países de renda média e pobres. Desde então, como esforço comum entre as nações e como fundamento de cooperação internacional, se tornou central promover o “desenvolvimento”.

Na prática, o discurso sobre o ‘desenvolvimento’ delimita o debate e os imaginários da política em todo o mundo, justificando as decisões econômicas que consolidaram e justificaram um processo de acumulação desigual em escala global

“Na prática, o discurso sobre o ‘desenvolvimento’ vem funcionando há mais de setenta anos como uma espécie de ‘chip’, um dispositivo mental que delimita o debate e os imaginários da política em todo o mundo, justificando as decisões econômicas que consolidaram e justificaram um processo de acumulação desigual em escala global. Em que pesem décadas de crítica, como a escola do sub-desenvolvimento e as teorias de dependência, para citar alguns, a ideologia desenvolvimentista, associada à ideia de crescimento ilimitado, determina hoje o sentido da história, expropria as populações sobre decidir seu próprio destino, justificando decisões cotidianas sobre o futuro de territórios e ecossistemas e impondo um modo de vida em sociedade que se afirma na subjugação entre a diversidade de culturas, das mais às menos ‘desenvolvidas’, perpetuando equações coloniais e eurocêntricas”, explica Camila.

De acordo com a cientista social, passando pela reciclagem do desenvolvimento sustentável, e mais recentemente incorporando a dimensão climática através das propostas de desenvolvimento de baixo carbono, a ideia-força de “desenvolvimento” segue sendo um dispositivo central à manutenção do discurso hegemônico. Com o que Acosta concorda. “Quando os problemas começaram a minar a nossa fé no ‘desenvolvimento’, começamos a buscar alternativas colocando-lhe sobrenomes para sanar o que nos incomodava: desenvolvimento econômico, desenvolvimento social, desenvolvimento local, rural, sustentável, com equidade de gênero, ecodesenvolvimento, etnodesenvolvimento, etc. O ‘desenvolvimento’ como conceito, porém, nunca foi questionado”, explica o economista. Assim como não foram questionados suficientemente seus efeitos devastadores sobre ecossistemas, territórios e populações.

Buen Vivir
Por outro lado, pondera Camila, recentemente outras ideias com força para ocupar o imaginário e inaugurar novas dimensões emancipatórias vem ganhando espaço e adesão ao redor do mundo. “Surgidas em diferentes contextos, estas ideias, como o ‘Buen Vivir’ na América Latina, por exemplo, fazem frente à imposição unidirecional do desenvolvimento, questionando o sentido de futuro único, como se a direção da vida em sociedade fosse linear, partindo de um estágio inferior (sub-desenvolvido) a outro em processo (em desenvolvimento) até alcançar o patamar do pronto, acabado, perfeito (desenvolvido)” .

 A visão antropocêntrica utilitária do direito ambiental subjuga todas as outras necessidades, interesses e valores da natureza em favor daqueles relativos à humanidade

E aqui entra também a proposta de que sejam considerados, política e juridicamente, como critério mandatário na execução (ou não) de projetos e políticas desenvolvimentistas, os Direitos da Natureza. Em sua 13ª ação contra Belo Monte, o MPF adotou a postulação jurídica da pesquisadora do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB, Fernanda Andrade Mattar Furtado, para fundamentar o processo: “a visão antropocêntrica da relação do homem com a natureza nega o valor intrínseco do meio ambiente e dos recursos naturais, o que resulta na criação de uma hierarquia na qual a humanidade detém posição de superioridade, acima e separada dos demais membros da comunidade natural. Essa visão priva o meio ambiente de uma proteção direta e independente. Os direitos fundamentais à vida, à saúde e à qualidade de vida são fatores determinantes para os objetivos da proteção ambiental. Assim, o meio ambiente só é protegido como uma consequência e até o limite necessário para proteção do bem-estar humano. A visão antropocêntrica utilitária do direito ambiental subjuga todas as outras necessidades, interesses e valores da natureza em favor daqueles relativos à humanidade. As vítimas da degradação, em última instância, serão, sempre, os seres humanos, e não o meio ambiente”.

Pôr do sol no Rio Xingu. Foto: Verena Glass

Ou seja, argumenta o MPF, “é necessário impor limitações ecológicas à ação humana. Faz-se isso através da compreensão de que a natureza possui valor intrínseco, não apenas instrumental. Passa-se da doutrina antropocêntrica utilitária para o antropocentrismo alargado ou moderado. Trata-se da conciliação entre os direitos humanos e os direitos da natureza”.

A economia deve subordinar-se à ecologia sim, por uma razão muito simples: a natureza estabelece os limites e alcances da sustentabilidade e da capacidade de renovação dos sistemas das quais dependem as atividades produtivas. Ou seja, se se destrói a natureza, se destrói a base da própria economia

Direitos da Natureza
Seria, desta feita, o conceito dos Direitos da Natureza o propulsor de um novo paradigma anti-capitalista, à medida que limita os desvarios do desenvolvimento ou desenvolvimentismo capitalista no que se refere à exploração de bens naturais? De acordo com Acosta, o conceito questiona sim o capitalismo à medida que este acelerou o divórcio entre natureza e seres humanos. Nesse sentido, explica o economista, há que se desmontar o instrumental ideológico do capitalismo sustentado na acumulação permanente do capital, ancorado no crescimento econômico e na especulação.

“A economia deve subordinar-se à ecologia sim, por uma razão muito simples: a natureza estabelece os limites e alcances da sustentabilidade e da capacidade de renovação dos sistemas das quais dependem as atividades produtivas. Ou seja, se se destrói a natureza, se destrói a base da própria economia. Escrever essa mudança histórica, a passagem de uma concepção antropocêntrica à uma sócio-biocêntrica, é o maior desafio da humanidade, se não quiser por em risco a própria existência do ser humano sobre a terra”, conclui Acosta.

* Verena Glass é jornalista e coordenadora de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo.

 

Artigo socializado pela Repórter Brasil e reproduzido pelo EcoDebate, 30/06/2014


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