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Livro identifica insuficiências na formação ética dos futuros médicos e propõe mudanças

 

Um aluno do 4º ano de medicina, com 21 anos, recebeu de um professor a tarefa de comunicar um óbito aos familiares de um paciente. O aluno argumentou que nunca tinha feito isso e perguntou se não era possível alguém ir com ele. O professor, inflexível, disse: “Você pensa que medicina é só sucesso? Vai lá pra aprender a dar as más notícias”. Esta cena foi descrita por um dos estudantes que participaram da pesquisa apresentada no livro A formação ética dos médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos, de Sergio Rego, professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). O título, que acaba de ser reimpresso, analisa a qualidade da formação ética dos futuros médicos e, depois de identificar suas insuficiências, indica caminhos para reformar o ensino.

Assim como aquele aluno do 4º ano, outros estudantes contaram, na pesquisa, que, durante sua formação universitária, já haviam vivenciado ou testemunhado situações relacionadas a alguma questão ética. Eles descreveram uma série de problemáticas envolvendo casos de aborto; transfusão de sangue em pacientes testemunhas de Jeová; sigilo profissional; leitos lotados; pacientes e famílias que não podiam arcar com os custos de procedimentos indisponíveis no SUS; uso de cadáveres humanos no aprendizado; desrespeito; e preconceitos.Em vários relatos, os estudantes se mostraram incomodados com situações em que os pacientes eram tratados não como seres humanos, mas como “coisas”.

O livro traz um breve histórico da educação médica e uma síntese de alguns modelos de ensino adotados no país. Além disso, utilizando diferentes referenciais teóricos, o autor explica os processos de socialização profissional e conformação da moral do indivíduo. Por fim, apresenta e analisa os resultados da pesquisa realizada junto aos estudantes de diversas escolas de medicina brasileiras. “Não tenho a menor dúvida em afirmar que a maioria das faculdades de medicina, tal como são organizadas e buscam cumprir a função primordial que justifica a sua existência – preparar jovens para o exercício da profissão médica –, é incompetente”, diz o autor. “Da mesma maneira, peremptória, afirmo que, em qualquer lugar do mundo, a incompetência da maioria das escolas é semelhante. Se no campo do desenvolvimento das habilidades técnicas ou da competência técnica existem várias escolas no mundo que têm uma atuação satisfatória, no desenvolvimento das competências, digamos, relacionais, como as de comunicação e éticas, elas deixam muito a desejar”.

Alguns dos estudantes entrevistados, ainda que minoritários, pareciam acreditar que as respostas aos dilemas morais poderiam ou deveriam ser encontrados através do conhecimento técnico. Portanto, num cenário em que a tecnocientífica é cada vez mais incorporada e celebrada na medicina, o livro chama a atenção para o desafio de humanizar a prática médica. A proposta do autor é uma re-humanização dessa prática, fundamentada no ensino integrado das humanidades médicas e na educação bioética. “É preciso formar nossos jovens não apenas para viver no seu tempo e enfrentar os desafios que ele apresenta. É necessário desenvolver sua capacidade de pensarem criticamente e de mudarem, se não o mundo, pelo menos o seu mundo”, defende Sérgio Rego. O autor lembra, ainda, que a bioética não serve apenas para resolver conflitos, mas para proteger as pessoas envolvidas nesses conflitos, tanto pacientes como profissionais de saúde – protegê-los no sentido de evitar abusos de autoridade e de poder.

Contudo, nas entrevistas com os estudantes, alguns deles associaram a ética à proteção do médico num sentido corporativista, segundo o qual não se deve criticar outro médico, mesmo ele esteja errado. Para muitos estudantes, ser ético se resumia a obedecer ao Código de Ética da profissão. “Todavia, a realidade de uma sociedade democrática e plural não é contemplada na maioria dos códigos de ética, muito menos no médico. Acreditar que o código trará respostas a todas as dúvidas e/ou conflitos que surgirão e que surgem da prática médica é desconhecer a História”, adverte o autor, lembrando que a educação bioética não pode se limitar à apresentação aos alunos de soluções pré-fabricadas para conflitos éticos – é fundamental favorecer a capacidade dos estudantes de julgarem e decidirem autonomamente, em vez de somente reforçar um comportamento imposto.

Por outro lado, vários estudantes vinculavam a ética ao que eles próprios entendiam como sendo umaconduta moral, destinada a fazer “o bem”. Sérgio Rego diz que “é interessante que busquem a reflexão crítica sobre os fatos e acontecimentos que estão vivenciado”. Mas “é problemático acreditar que apenas sua consciência será capaz de orientá-los na escolha da decisão melhor para ‘o outro’”, pontua. Ao agir “como um pai, que, por saber o que é melhor para o filho, toma as decisões em seu lugar”, o médico acaba negando ao paciente sua condição de sujeito moral.

Os pacientes devem não só ser “tratados”, mas, sobretudo, “reconhecidos”, tanto em sua fragilidade quanto em sua dignidade e autonomia. “De fato, sem este reconhecimento do outro não existe vida ética e, menos ainda, bioética, mas somente biopoder. Este, sem aquela, só pode se transformar em instrumento de sofrimento moralmente injustificado e é esta conclusão que o belo e importante livro do amigo e colega me inspira”, destaca, no prefácio da obra, o professor Fermin Roland Schramm, também pesquisador da Ensp/Fiocruz.

Matéria de Fernanda Marques, da Agência Fiocruz de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 01/10/2012

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One thought on “Livro identifica insuficiências na formação ética dos futuros médicos e propõe mudanças

  • Nem sabia que os médicos se preocupavam com a ética. Hahahhaha… Quando em contato com eles, parece ser prática o distanciamento em relação ao paciente, e olha que nem estou me limitando ao atendimento público.
    A grandiosidade tamanha dada à medicina torna muitos de seus profissionais semideuses, acima da crítica social e do questionamento pelo paciente.
    Quem sabe com este livro, caso os novos médicos tenham interesse em serem “humanos” para além de técnicos que cortam, furam, receitam remédios e decidem sobre nossas opções morais, possam considerar o outro como seres humanos também.
    Eu não verei isso.

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