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Queda de Lugo. Um golpe no contexto do ‘sistema-mundo’ e do ‘Império

 

A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário:

A centralidade da problemática agrária na trama do golpe
Conluio dos interesses oligárquicos e das corporações multinacionais
Reações ao golpe. A posição tímida e vacilante do Brasil
A posição de outros países e organismos regionais
Lugo. Moderado ideologicamente e isolado politicamente
Conflitos com a Igreja
Avanços do governo Lugo

Eis a análise.

Um golpe no contexto do ‘sistema-mundo’ e do ‘Império’

A foto de Fernando Lugo descendo cabisbaixo as escadas do Palacio de los López, o Palácio de Governo do Paraguai, selava o desfecho do golpe relâmpago a que foi submetido. Apeado do poder em menos de 24 horas, o ex-presidente, aparentemente resignado, dirigiu-se para sua casa em Lambaré, na Grande Assunção, de onde passou a esboçar uma tímida reação.

Colonizado pela Espanha, empurrado a pária no continente após o massacre brasileiro que dizimou milhares de paraguaios na Guerra do Paraguai e vítima da mais longa ditadura do Cone Sul, o golpe do dia 22 de junho de 2012 reabre as feridas de um país historicamente golpeado e dilacerado.

A história do Paraguai inscreve-se na dinâmica do “sistema-mundo” proposto por Immanuel Wallerstein. O sistema-mundo, segundo Wallerstein “é estruturado de tal forma que há um eixo centro-periferia, no qual algumas zonas geográficas produzem bens de alto valor agregado enquanto outras regiões produzem bens de baixo valor agregado para mercados altamente competitivos. O resultado é um constante fluxo de mais-valia de produtores de bens periféricos para produtores de bens centrais”.

No caso paraguaio, a perversidade ainda é maior. Como destaca Luciana Ballestrin, no Paraguai tem-se uma exploração sobreposta simultaneamente pela dinâmica externa (internacional), regional (Brasil) e interna (oligarquias). O novo golpismo na América Latina “se localizam na tensão, no interior do Estado, entre a soberania popular e seus vetos oligárquicos e, em escala regional, entre integração e subordinação internacional”, reafirmam o cientista político Iñigo Errejón e o economista Alfredo Serrano.

Essas dinâmicas reúnem-se no conceito “Império” de Michael Hardt e Antonio Negri. O conceito remonta ao Império romano. Diferentemente do jogo imperialista (que precisa destruir para dominar), o Império romano, ao crescer, integra, incorpora o diferente à sua rede de poderes e contrapoderes. A grandeza de Roma se fez pelo domínio, cada vez mais estendido, dos povos vizinhos. Não havia limites para a sua expansão. A experiência romana concede poder e liberdade, porém, liberdade e poder apenas na medida em que não se questione quem comanda e não interfira na lógica da acumulação do capital.

Os acontecimentos do Paraguai devem ser compreendidos nessa dinâmica de “sistema-mundo” e “império”. Lugo em algum momento foi considerado um estorvo aos interesses das grandes corporações – sobretudo do agronegócio, das oligarquias rurais e empresariais que se associam na rede do “império” mundial.

O jornalista Jânio de Freitas destaca que documento da Embaixada dos Estados Unidos em Assunção revela que o governo de Barack Obama faz tempo estava informado que um golpe era planejado sob o disfarce de “um julgamento político dentro do Parlamento”. O documento confidencial da embaixada para o Departamento de Estado foi divulgado pelo Wikileaks. Entretanto, apesar de informado sobre a conspiração, o governo dos Estados Unidos não produziu nenhum indício de defesa da democracia paraguaia. E, logo após a derrubada de Lugo, foi o primeiro a dar mais do que indícios de apoio ao empossado Federico Franco, mais simpático aos Estados Unidos do que à América do Sul, comenta o jornalista.

A conspiração contra o governo Lugo nunca cessou, pelo contrário, começou desde o início da instalação do seu governo. “A conspiração se instalou faz muito tempo atrás, pouco depois de instalar-se o governo de Lugo. Em 2009, Lugo fez um discurso muito claro no Fórum Social Mundial em Belém, onde disse que os Estados Unidos devem devolver Guantánamo a Cuba”, comenta Domingos Laino, da ala progressista do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), o mesmo partido do vice que assumiu o poder pós-golpe.

É também a partir do conceito de “império” de Negri que deve ser interpretada, a timidez dos países regionais, particularmente do Brasil, do Mercosul e da Unasul com a ausência de sanções fortes ao golpismo.

A queda de Lugo, entretanto, também está associado às suas fragilidades, a ausência clara de um projeto de nação, de um programa político e, ainda mais grave, a ausência de uma força política que lhe desse sustentação.  A passagem de Lugo pelo poder, porém, também teve suas conquistas e vitórias. A “revisão” do tratado de Itaipu, o combate à corrupção, a impostação da agenda social no debate político do país e a recusa em criminalizar o movimento social são sinais positivos numa conjuntura extremamente difícil e virulenta.

Na análise que segue e tomando como referência o que foi destacado anteriormente, procuramos desvendar as múltiplas facetas e aspectos que estão por detrás do golpe, as tramas internas, o jogo de poder, a força do agronegócio associado às oligarquias rurais e o stronismo, o isolamento de Lugo, assim como a reação dos países da comunidade latino-americana e suas organizações multilaterais.

A centralidade da problemática agrária na trama do golpe

O estopim para todo o desfecho político ocorrido no Paraguai tem fortes raízes na problemática agrária. Lugo alcançou a presidência do país prometendo cumprir uma histórica reforma agrária e iniciou o seu governo com um forte propósito de recuperar as terras concedidas ilegalmente, pelo ditador Alfredo Stroessner (1954-1989), para particulares (militares, parentes e amigos).

Segundo o jornalista César Felício, Strossner, “que morreu exilado no Brasil em 2006, estruturou seu poder distribuindo terras fiscais do Estado de maneira discricionária, gerando um caos fundiário”, com o agravante de que essa “prática continuou, em menor escala, nos governos seguintes, até 2003”. É neste cenário que a vitória de Fernando Lugo, em 2008, derrotando o Partido Colorado – um dos esteios estruturantes da classe agrária dominante -, representou uma novidade na conjuntura das relações políticas e de poder no Paraguai.

Ao romper com os anos de hegemonia colorada, no Executivo, em grande medida, Lugo passou a representar uma esperança para os pobres do campo, que nunca puderam contar com uma política de reforma agrária efetiva e popular. Como destacado por Felício, sem contar com uma “estrutura partidária, [Lugo] ganhou ao catalisar as esperanças de desenvolvimento social e reforma agrária, tema de não pouca relevância em um país com 40% da população no campo”. Assim, para que mantivesse o apoio dos movimentos campesinos, durante seu governo, seria fundamental transformar a estrutura agrária.

Numa entrevista concedida ao jornal Página/12, ainda em 2008, Alberto Romero, integrante do Movimento Popular Tekojoja, lembrava que, diariamente, 55 famílias eram expulsas do campo por pressão das multinacionais e do agronegócio.

Nesta ocasião, a respeito do que seria o governo de Lugo, Romero pressagiou: “Não esperamos mudanças estruturais, mas pequenas mudanças. Para fazer mudanças estruturais necessitamos de mais gente, porque os pilares do governo, os mais poderosos, continuam sendo dos partidos tradicionais”. O que deixava claro que os desafios seriam grandes, embora houvesse a expectativa de um melhor manejo político das contradições internas, provenientes do escancaramento de interesses antagônicos que passariam a fazer parte do cotidiano do governo de Lugo.

Assim, durante todo o tempo em que Lugo esteve no poder, a tensão agrária, com a disputa entre as forças concentradoras de terras e os movimentos campesinos, tornou sua governabilidade uma árdua e ingrata tarefa, exaurida no esforço em resolver conflitos, num Paraguai permeado por uma realidade tremendamente desigual.

Como indagou Clóvis Rossi: “Alguma surpresa que haja conflitos pela terra, um deles exatamente o que acabou sendo o pretexto para a deposição de Lugo, com a morte de 17 pessoas, policiais e sem-terra?” De fato, nada surpreendente num país em que “350 mil famílias sem terra se tornaram “carperas” (vivem em “carpas”, barracas de lona em espanhol)” e em que “351 proprietários são donos de 9,7 milhões de hectares”. Realidade que ficou praticamente intocada pelo ex-presidente, que no início de seu governo previa retomar para o Estado um total de 8 milhões de hectares, com a finalidade de redemocratizar o acesso à terra.

Nessa queda de braço entre o poder econômico das oligarquias paraguaias e os espoliados trabalhadores do campo, para Carlos Aznárez, “Lugo viu-se pressionado a aceitar as receitas do Império, patrocinadas pela oligarquia latifundiária colorada. Foi assim que foram aprovadas a lei antiterrorista e a militarização do norte paraguaio, com a consequente detenção arbitrária de centenas de camponeses, ou a criminalização permanente daqueles dirigentes históricos que exigiam que fosse detida a repressão”.

A matança de Curuguaty, ocorrida no dia 15 de junho, na fazenda do latifundiário colorado Blas Riquelme, com a morte de onze trabalhadores sem-terra e sete policiais, foi apenas a espetacularização da forte violência sofrida pelos movimentos campesinos, além de uma cartada final sobre o fragilizado governo de Fernando Lugo.

Conluio dos interesses oligárquicos e das corporações multinacionais

Após 23 tentativas de golpe de Estado, o conluio dos interesses oligárquicos e das corporações multinacionais, representados pelo Legislativo paraguaio, fez da matança de Curuguaty a justificativa apropriada para que, em seguida, Fernando Lugo fosse destituído do poder. Na opinião de Idilio Méndez Grimaldi, três interesses convergiram para a queda do ex-presidente: “os interesses das transnacionais do agronegócio e do setor financeiro; os da oligarquia fazendeira, aliada ao capital transnacional, e os dos partidos políticos de direita. Todos apadrinhados pelos Estados Unidos”.

Sobre o episódio da matança, Grimaldi destaca que “um grupo de policiais que ia cumprir uma ordem de despejo no departamento de Canindeyú, na fronteira com o Brasil, foi emboscado por franco-atiradores, misturados com camponeses que pediam terras para sobreviver”. A “emboscada” trouxe, como consequência imediata, a desestabilização do governo de Lugo, marcado por uma inglória diplomacia interna, diante de grupos econômicos que nunca estiveram muito interessados em dialogar.

Nessa mesma linha de raciocínio, para Atilio Boron, “a matança de Curuguaty foi uma armação montada por uma direita que desde que Lugo assumiu o poder estava esperando o momento propício para acabar com o regime que, apesar de não haver afetado seus interesses, abria um espaço para o protesto social e a organização popular incompatível com sua dominação de classe”.

Uma armação que na opinião de Idilio Méndez Grimaldi busca “criminalizar, levar até ao ódio extremo todas as organizações campesinas, para fazer os camponeses abandonarem o campo, deixando-o para uso exclusivo do agrotóxico. É um processo doloroso, “descampenização” do campo paraguaio, que atenta diretamente contra a soberania alimentar, a cultura alimentar do povo paraguaio, por serem os camponeses produtores e recriadores ancestrais de toda a cultura guarani”. O que só faz aumentar o poder e o avanço do agronegócio extrativista, muito bem representado pelos interesses da multinacional Monsanto, principalmente em seu afã de garantir a livre comercialização de todas as sementes transgênicas, além de satisfazer os propósitos da União de Grêmios de Produção (UGP), fortes opositores da luta camponesa por reforma agrária.

A Monsanto, a Syngenta e a Cargill aliadas à UGP, estreitamente ligada ao grupo Zuccolillo, que publica o jornal ABC Color, fizeram forte lobby para transformar o Paraguai em território livre para os transgênicos. Esses grupos encontravam, entretanto, resistência no Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave), instituição do Estado dirigida por Miguel Lovera. Derrubar Lovera se tornou questão de honra para esses grupos. Há fortes indícios que essas transnacionais, todas sócias da UGP – a ponta de lança dos interesses do agronegócio no país – tem parte de responsabilidade pelos acontecimentos de Curuguaty. Oligarquias rurais, transnacionais do agronegócio, imprensa e o Partido Colorado, remanescente do stronismo, estão por detrás da trama que derrubou Lugo. O golpe foi local, mas suas articulações transcendem o território paraguaio.

Cabe destacar tendo presente o contexto anterior que o Paraguai tornou-se um dos maiores produtores de soja do mundo. Segundo César Felício, “a soja e o gado empurraram o Paraguai adiante, e o país chegou a registrar taxas chinesas de crescimento, como os 15,4% de expansão do PIB em 2010. Os dólares entraram no país, mas não nos cofres públicos: o Paraguai é o paraíso do Estado mínimo”. Em tal dinâmica, a homogeneização do cultivo e a falta de condições para que o Estado possa garantir os direitos básicos para a população, torna grande parte do povo paraguaio vítima da pobreza, ao mesmo tempo em que transforma uma pequena porcentagem de proprietários de terras em grandes lideranças econômicas da América Latina.

Tranquilo Favero, um “brasiguaio” que se tornou grande latifundiário graças aos favores de Strossner, é um destes grandes beneficiários do Estado mínimo, no qual pouco importa as condições em que vivem os demais cidadãos. Ele é visto como um dos suspeitos de estar envolvido na matança de Curuguaty. A reportagem de Dario Pignotti, reproduz um de seus cerrados discursos contra a negociação com os movimentos campesinos: “Diplomacia você pode usar com pessoas cultas… só que… você sabe o dito popular que diz: a mulher do malandro obedece só com pau… tamos lidando com pessoas de tamanha ignorância que com diplomacia você não soluciona”. Uma fala padrão da forma como a direita procura lidar com aqueles que se insurgem diante da realidade em que vivem.

O conflito de Curuguaty também contou com uma campanha midiática deturpadora dos fatos, além de uma falsa acusação, feita pela Associação Rural do Paraguai, vinculando os camponeses aos guerrilheiros do Exército Popular Paraguaio (EPP). Algo completamente negado pelos camponeses, ainda que, num comunicado da Coordenação Nacional pela Recuperação das Terras Irregulares, se reconheça que a matança do dia 15 de junho “foi consequência de um conflito de classes histórico na sociedade paraguaia, produto da sustentação por parte dos três poderes do Estado de um sistema de acumulação e concentração das terras em mãos de uns poucos”. O que faz essa Coordenação acreditar que “a violência prosseguirá se não se iniciar de uma vez por todas a devolução das terras que pertencem ao povo paraguaio e que hoje estão nas mãos de algumas pessoas e não sujeitas à Reforma Agrária”.

Reações ao golpe. A posição tímida e vacilante do Brasil

Com as informações à disposição, é possível afirmar que a posição brasileira frente ao golpe de 22 de junho passado é marcada pela hesitação e pela timidez. Mas também por contradições.

Formalmente, o governo brasileiro condenou o “rito sumário de destituição” do presidente Fernando Lugo e convocou o embaixador no Paraguai para consultas. E acenou com eventuais sanções ao Paraguai.

Ato contínuo, o governo brasileiro enviou um representante a Assunção ainda antes da conclusão do impeachment. O ministro Antonio Patriota, entretanto, parecia mais um ator coadjuvante de um país qualquer e mais preocupado com seus negócios particulares do que um país vizinho de peso (político) regional e com uma sinergia em termos de manutenção da ordem democrática na região, constantemente ameaçada.

O governo brasileiro, informado pela Embaixada do Brasil no Paraguai, já sabia semanas antes da gravidade do problema. Entretanto, não tomou nenhuma atitude. Vale recordar a este respeito, um episódio similar, mas que teve outro desfecho. Foi em 1996, quando o então presidente do Paraguai, Juan Carlos Wasmosy soube que o comandante do Exército, Lino Oviedo, pretendia derrubá-lo. Acionou o presidente do Brasil, na época Fernando Henrique Cardoso, que por sua vez colocou na roda o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. O fato é que o golpe não se consumou.

Outro sinal da falta de uma postura mais contundente foi dado pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. Carvalho disse que causou “estranheza” e “perplexidade” ao governo brasileiro a destituição do cargo do presidente Lugo e que aguardava por uma posição definida pela Unasul.

O que realmente causa “estranheza” e “perplexidade” são alguns gestos emitidos por personalidades brasileiras. O ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, sequer telefonou ao presidente Lugo. Fato, aliás, seguido por Dilma, ao contrário do presidente Mujica, do Uruguai, que encontrou uma brecha na agenda para tal gesto. São sinais da frágil e titubeante solidariedade ao presidente Lugo.

Se, mesmo assim, a posição brasileira pode ser considerada branda, a do diretor-geral brasileiro da Itaipu Binacional Jorge Samek é aparentemente favorável ao governo golpista. Tanto é assim que o novo diretor paraguaio da Itaipu, Franklin Boccia, disse ter ótimas relações com Samek, que poderia, segundo Boccia, influenciar a posição brasileira e convencer a presidente Dilma.

Mas há também quem seja mais crítico ao que aconteceu no Paraguai. “Foi golpe. Há um neogolpismo na América do Sul, promovido pelas classes tradicionais hegemônicas que enfrentam governos populares”, disse o diplomata brasileiro Samuel Pinheiro Guimarães Neto, que está deixando o cargo de Alto Representante do Mercosul por “falta de apoio”, segundo ele. Samuel Pinheiro criticava a falta de atenção à dissimetria entre os países membros do Mercosul e a falta de apoio do governo brasileiro. Embora, a justificativa para sua demissão esteja (aparentemente) restrita ao âmbito do Mercosul, é possível ler por trás da sua renúncia discordâncias em relação ao tratamento dado pelo Brasil ao golpe no Paraguai. Samuel Pinheiro defendia medidas mais drásticas de retaliação ao país vizinho, o que incluía sua suspensão do bloco e sanções econômicas.

Em suas manifestações, a presidente Dilma Rousseff parece seguir o caminho do meio, ou seja, mostrar que o Brasil está insatisfeito com o que aconteceu no país vizinho, mas evitar sanções econômicas que poderiam prejudicar interesses econômicos brasileiros. Uma atitude mais preocupada em contemporizar o tempo todo. Países como a Argentina, Venezuela (Chávez suspendeu o envio de petróleo ao Paraguai, atitude, por exemplo, não seguida pela Petrobras), Equador e Bolívia são mais decididos em suas críticas ao golpe.

A posição de outros países e organismos regionais

A reação mais firme e crítica ao golpe no Paraguai veio da Argentina. Em entrevista, o chanceler da Argentina, Héctor Timerman, revela bastidores da queda do presidente. A oposição a Lugo se recusou a prorrogar o processo e a fazer qualquer acordo. Mandou os chanceleres da Unasul irem embora e disse que, caso não viesse o “impeachment“, a violência começaria no dia seguinte. “No fim, eu e o Patriota saímos, dizendo por fim que o Paraguai estava prestes a concretizar um golpe de Estado”, afirma Héctor Timerman.

Enquanto Brasil, Uruguai e países extra-bloco, como a Colômbia, retiraram seus embaixadores para consulta, a Argentina decidiu remover seu representante em Assunção “até que se restabeleça a ordem democrática no país”, segundo o comunicado da chancelaria. A mesma decisão tomou o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que também anunciou ontem a interrupção das exportações de petróleo ao Paraguai, em repúdio ao “golpe de Estado”.

Timerman fez parte da missão de chanceleres da Unasul enviados ao Paraguai para negociar uma saída não golpista para o impasse. Da missão fizeram parte também o secretário-geral da Unasul, o venezuelano Ali Rodriguez Araque, e o ministro brasileiro Antonio Patriota.

A missão de chanceleres da Unasul se reuniu com senadores do Partido Colorado, com a Presidência do Congresso do Paraguai e com o vice-presidente Federico Franco, do PLRA (Partido Liberal Radical Autêntico). Após os encontros, o secretário-geral da Unasul admitiu que a missão diplomática “não pôde dar um rumo diferente aos acontecimentos” e classificou o fato como “golpe”.

Em reunião realizada na semana passada em Mendoza, na Argentina, o Mercosul decidiu suspender o Paraguai do bloco, mas decidiu pela não aplicação de sanções econômicas. Com essa decisão, o Paraguai ficará suspenso do Mercosul até as próximas eleições presidenciais, que devem ocorrer em abril do ano que vem.

O Paraguai já não participou da reunião da semana passada. Com a ausência do Paraguai, cujo Senado ainda não havia decidido sobre a incorporação ou não da Venezuela ao bloco, os demais membros do Mercosul ficaram livres para, finalmente, admitir a Venezuela como membro pleno, situação longamente desejada pelo presidente Hugo Chávez, ausente da reunião. O ingresso da Venezuela será selado em reunião extraordinária do Mercosul no Rio de Janeiro, no final de julho. Uma medida, no mínimo, controversa.

Entre os países da Unasul ainda não há consenso para aplicar sanções políticas ao Paraguai, sem castigos econômicos propriamente ditos. A Organização dos Estados Americanos (OEA) decidiu enviar uma missão ao Paraguai para se informar sobre a situação antes de tomar uma decisão, informações que servirão para uma tomada de posição também dos Estados Unidos.

Lugo. Moderado ideologicamente e isolado politicamente

Em maio de 2007, numa breve passagem pelo Brasil, Fernando Lugo concedeu uma entrevista exclusiva ao IHU e o Brasil de Fato. Na oportunidade, o ex-bispo, desconhecido da grande mídia e até mesmo dos movimentos sociais brasileiros, buscava apoio no Brasil – agenda organizada pela Via Campesina – e procurava consolidar sua candidatura à presidência do Paraguai.

Um ano depois (2008) após uma campanha surpreendente elegia-se presidente do Paraguai. Apoiado pelo movimento popular Tekojoja e ancorado por uma coalizão de partidos com espectro ideológico amplo, a Aliança Patriótica para a Mudança (APC em espanhol), o ex-bispo de uma das dioceses mais pobres do Paraguai, San Pedro, colocava fim a 61 anos ininterruptos de governo do Partido Colorado, ao derrotar a candidata oficial Blanca Ovelar e o general da reserva Lino Oviedo, por quem o governo brasileiro nutria, na oportunidade, maior simpatia.

A vitória de Lugo significou a derrocada de um dos últimos bastiões da América Latina que ainda sobrevivia à sombra de um regime arquitetado por uma longa ditadura militar.  O regime no caso foi um Estado instrumentalizado pelo Partido Colorado que montou uma azeitada máquina corrupta e clientelista que por décadas favoreceu uma pequena elite. Por outro lado, a vitória de Lugo confirmava um movimento que tomou conta do mapa político latino-americano no início desse século, a eleição de candidatos progressistas que assumiram uma agenda política de forte contestação ao neoliberalismo.

À época, a imagem de Lugo – veiculada pela grande impressa – foi a de um presidente assemelhado a Hugo Chávez e Evo Morales. Imagem equivocada. Desde o início de sua caminhada até a vitória, Lugo deixou claro que nada tinha a ver com o ‘socialismo’ defendido por esses presidentes. Na entrevista exclusiva, concedida ao IHU e ao Brasil de Fato ainda em 2007, Lugo afirmava: “Carrego elementos da identidade socialista, mas de maneira alguma sou socialista, assumo elementos do socialismo moderno, sobretudo, aquele que busca a equidade, a igualdade, a não discriminação, a participação social de todos os grupos sociais”.

Na oportunidade e posteriormente, Lugo procurava tranquilizar os setores empresariais do país que temiam confiscos, nacionalizações de empresas ou ocupações de propriedades privadas. Lugo indicava que o seu governo seria similar ao do presidente uruguaio, Tabaré Vazquez, de longe entre os progressistas na América Latina, um dos mais conservadores.

Cuidadoso no uso das palavras, Lugo parecia convicto da possibilidade de juntar todos em uma mesa de reconciliação nacional. Lugo é “um político que fala como bispo”, definia o jornal El País logo após a sua vitória. “Eu não subscrevo nenhuma ideologia de esquerda”, dizia ele na entrevista ao El País. Segundo o jornal, Lugo não deixa claro nem se gosta mais do futebol ou do basquetebol: “Pratiquei os dois”, responde. E qual é o segredo para que interesses opostos não se choquem? “Administrar conflitos”, afirmou ao jornal.

Na oportunidade, logo após as eleições o cientista político Alfredo Boccia Paz disse que Lugo pode ser considerado um “socialista moderado”. “Ele é tão de esquerda quanto pode ser um bispo da Igreja Católica”, ironizava.

Lugo em reiteradas entrevistas quando solicitado sobre o seu programa de governo indicava que a sua matriz teórica apoiava-se nos princípios do Ensino Social da Igreja. A formação política de Lugo remonta ao tempo em que viveu e trabalhou no Equador. Ali teve contato com um dos expoentes da Teologia da Libertação, Monsenhor Leónidas Proaño, conhecido como o “bispo dos pobres”. Na sua volta ao Paraguai, nunca perdeu essas raízes. Pelo contrário, destinado, já como bispo, à diocese de San Pedro, região mais pobre do Paraguai, desenvolveu ali os princípios da Teologia da Libertação. Mais de uma vez afirmou que o seu programa tinha como base “a opção pelos pobres”.

A teologia da libertação, entretanto, não basta para a transformação social. Como diz, Daniel Goldman, analisando o governo Lugo, “a tradicional dupla religião-Estado adquiriu com Lugo, em um princípio, uma forma e uma variante de ilusão libertadora, própria de uma cosmovisão religiosa levada a cabo por um bispo ativo e comprometido com os pobres e os mais necessitados”.

Desde o início, Lugo apostava na conciliação. O tom cordato e a ausência de um claro projeto político aparecem reiteradamente em suas falas, como na entrevista que deu à revista espanhola Vida Nueva logo no início do seu mandato: “Um desafio é poder colocar em consenso vontades, inquietudes, desejos, dentro desses jogos de poder. É o maior desafio para alguém que se torna líder e assume uma liderança diferente, já que a tradição cultural aqui é muito forte com relação ao que é um líder político, a quem assume uma liderança de poder. Mas eu assumi uma liderança de serviço, que tem que ser compaginada com um caráter de participação das bases políticas e sociais, com a busca de consensos e colaboração”.

“Como prega sua formação católica, Lugo parece não ter mesmo vocação para o conflito”, dizia o jornalista Daniel Cassol correspondente em Assunção do Brasil de Fato, analisando o primeiro ano de governo de Lugo, no qual ficava evidente a dificuldade do ex-bispo em assumir posições.

A postura conciliadora, de alguém que se coloca acima dos conflitos, típico de certa postura eclesial, é manifesta por Lugo após sua deposição: “Este presidente não esteve contra ninguém. Sempre estive a favor de todos, tratando de buscar soluções pacíficas, tratando de desenvolvimento do país com harmonia”. Sentindo-se injustiçado, Lugo resigna-se ao impeachment: “Nos submetemos ao julgamento político parlamentar e aceitamos o veredicto para evitar derramamento de sangue”.

O tom conciliador, a falta clara de um programa político associado à ausência de uma força política contribuiu para o isolamento do presidente. Lugo nunca teve um partido político. O mais próximo disso foi o Movimento Popular Tekojoja, um frente de movimentos sociais com pouca organicidade. Ao mesmo tempo, Lugo nunca apostou decisivamente na construção de uma força política, de um partido político como o fizeram os presidentes Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales.

A sustentação de Lugo no poder sempre dependeu do conservador Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), um dos partidos políticos majoritários do Paraguai, junto com o Partido Colorado. Federico Franco, o vice-presidente indicado pelo PLRA em todos esses anos em que Lugo esteve no poder nunca deixou de conspirar.

Ao longo dos seus quase quatro anos no poder, Lugo sofreu reiteradas e várias ameaças de impeachment. A cada crise – casos da paternidade, crise com os militares, crise do câncer, com o Exército do Povo ParaguaioEPP – Lugo era ameaçado de deposição.

“Temos os votos para tirá-lo”, não se cansava de dizer o influente senador paraguaio Alfredo Jaeggli, do partido situacionista Liberal, sobre a maioria cômoda no Congresso do Paraguai para defenestrar o presidente via juízo político “por inépcia” – o argumento que utilizava e que foi utilizado no dia 22 de junho.

As ameaças de golpe constantes têm a ver com o crescente isolamento de Lugo que não conseguiu constituir uma força política de sustentação. Lugo não tinha uma linha política clara de atuação. “Existem problemas complexos que impedem que ele tenha uma linha de ação mais concreta. O que estamos vendo é uma situação em que, ideologicamente, há sinais à esquerda, sem deixar de dar uma mão à direita”, afirmava o sociólogo José Nicolás Morinigo, logo após o primeiro ano de governo de Lugo. O seu governo sempre foi cercado de ambiguidades.

Sem organicidade com o movimento social, sem partido, sem base no parlamento e criticado pela Igreja, Lugo tornou-se uma presa fácil da direita. “Apesar das múltiplas advertências de numerosos aliados dentro e fora do Paraguai, Lugo não assumiu a tarefa de consolidar a grande, porém heterogênea, força social que com enorme entusiasmo o levou à presidência em agosto de 2008”, destaca o sociólogo argentino Atilio Boron.

Segundo ele, “sua influência no Congresso era absolutamente mínima, um ou dois senadores no máximo, e somente a capacidade de mobilização que pudesse demonstrar nas ruas era o único fator que poderia dar governabilidade à sua gestão. Mas não o entendeu assim e durante seu mandato se sucederam múltiplas concessões à direita, ignorando que por mais que a favorecesse ela jamais iria aceitar sua presidência como legítima”.

De acordo com Boron, fica “uma lição para o povo paraguaio e para todos os povos da América Latina e do Caribe: só a mobilização e a organização popular sustentam governos que querem impulsionar um projeto de transformação social, por mais moderado que seja, como tem sido o caso de Lugo”.

Conflitos com a Igreja

Até mesmo a Igreja Católica – ao menos a Igreja hierárquica – lugar do qual saiu Lugo, o abandonou. Um dia após a sua deposição, a Igreja Católica paraguaia já considerava Lugo uma página virada.

O Vaticano foi o primeiro Estado a reconhecer o novo governo. No dia seguinte após a sua posse o novo presidente, Federico Franco, foi a uma missa campal na Praça das Armas, na capital Assunção, e recebeu a comunhão.

A Igreja Paraguai nunca digeriu bem o fato de Lugo ter se afastado da Igreja para assumir a candidatura à presidência e depois os sucessivos casos de paternidade de Lugo o afastaram ainda mais da Igreja.

Houve, porém, vozes que saíram em defesa de Lugo. Na Igreja católica, o bispo dom Melanio Medina disse que a destituição havia sido “um golpe do Parlamento” e que Lugo foi tirado por “querer lutar a favor dos pobres”. A Conferência dos Religiosos e Religiosas do Paraguai, por sua vez, afirmou que “chama-nos fortemente a atenção a rápida reação dos partidos políticos e seus representantes que se colocaram de acordo para impulsionar o julgamento político do presidente nas duas câmaras do Congresso Nacional, que mesmo sendo um procedimento constitucional, se aplica e procede de tal forma que cria fundadas suspeitas de manipulação, afetando gravemente o processo legitimamente instaurado por eleição popular, como se esta fosse a saída para os nossos problemas e como se houvesse uma responsabilidade unilateral dos graves fatos que atentam contra a nossa convivência”.

“Trata-se de um golpe parlamentar”, sublinhou o sacerdote paraguaio Francisco ‘Paco’ Oliva, uma das principais referências sociais do país. Segundo ele o que se viu no Paraguai foi um golpe de Estado parlamentar: “Os partidos tradicionais encontraram os 30 votos que necessitavam e deram a sentença. Em seguida, o que aconteceu, foi puro circo. O veredito teria sido o mesmo com defesa ou não de Lugo. As acusações não foram apresentadas por escrito. E as provas eram simples fotocópias de recortes dos jornais. A sanção contra Lugo havia sido decretada antes do julgamento começar”, disse ele.

Avanços do governo Lugo

Mesmo considerando-se todas as dificuldades descritas anteriormente enfrentadas por Lugo, que culminaram com sua queda, registraram-se avanços no seu governo. Entre eles, destacam-se a revisão dos acordos com Itaipu, o combate à corrupção e a impostação de uma agenda social para o país. Como uma das maiores derrotas, a dificuldade em implementar a reforma agrária.

Entre as maiores conquistas do governo Lugo destaca-se o tema da revisão do tratado de Itaipu. Ainda quando candidato, Lugo já pautava esse tema como uma das principais agendas a ser assumida num possível governo.

Quando de sua entrevista exclusiva ao IHU e o Brasil de Fato, Lugo comentava que “o Paraguai subsidia as indústrias de São Paulo”. A reação brasileira através do diretor brasileiro da Itaipu binacional, Jorge Samek, foi imediata. Segundo ele, a possibilidade de mudar o Tratado era zero.

A persistência, entretanto, de Lugo em articulação com o movimento social paraguaio e apoio do movimento social brasileiro levaram o Brasil a revisão do acordo tarifário da energia excedente utilizado pelo Paraguai que aumentou o repasse dos valores percebidos pelo país vizinho.

Ao cumprir três anos do seu mandato, Lugo destacou a revisão dos valores do acordo tarifário como uma das mais importantes conquistas do seu governo: “Também se colocou em questão nossa capacidade negociadora para que o Brasil aprovasse a nota de reversão para aumentar de 120 a 360 milhões de dólares norte-americanos o pagamento anual pela energia que cedemos ao país vizinho. Hoje, isso é uma realidade que deve transformar-se em maiores investimentos públicos que combatam a pobreza e gerem riquezas para nosso povo”.

Na área social, apesar da oposição permanente e dura que sofreu por parte do Congresso, conseguiu alguns avanços como na área da saúde, como a gratuidade no atendimento dos hospitais estatais. Além da gratuidade do atendimento nos hospitais públicos, lançou uma campanha de vacinação infantil garantindo o acesso à saúde de 42% dos paraguaios que encontram abaixo da linha de pobreza. Aumentou ainda a assistência a famílias em situação de extrema pobreza de quatorze mil para cento e vinte mil famílias, porém, não conseguiu a instituição de uma espécie de Bolsa Família em função da oposição do Congresso.

O governo Lugo combateu ainda a corrupção, uma prática institucionalizada nas décadas de governo do Partido Colorado. Segundo, o religioso jesuíta Bartomeu Melià, profundo conhecedor do Paraguai e falando do governo Lugo, destaque que “a corrupção continua no Paraguai, mas, pelo menos, não é mais acobertada pelo governo”. “A corrupção – diz ele – está instalada na Corte Suprema da Justiça e no Congresso”.

(Ecodebate, 04/07/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

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