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Artigo

Estupra mas paga – equívocos da relativização da violência sexual, artigo de Daniel de Barros

 

“Estupra mas paga”, parece ter sido a decisão do Superior Tribunal de Justiça quando decidiu relativizar a violência de se fazer sexo com meninas de doze anos, desde que elas sejam prostitutas.

[Psiquiatria e Sociedade] Antes de explicar porque discordo da decisão, devo dizer que compreendo o raciocínio que levou a ela. A ministra do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, entendeu que não foi “violado, verdadeiramente, o bem jurídico tutelado – a liberdade sexual –, haja vista constar dos autos que as menores já se prostituíam havia algum tempo”. A lei do estupro dizia, até 2009, que quando a relação sexual se dava com menor de 14 anos, mesmo que não houvesse sinais de agressão presumia-se ter existido violência.

Por quê? Porque no início da adolescência a pessoa não tem ainda maturidade suficiente para consentir com o ato sexual, e portanto deveria ter sido induzida de alguma forma a isso – ou por ameaças, promessas ou mesmo sedução. A violência não era física, mas o próprio fato de fazer sexo com alguém não preparado para decidir de forma plenamente consciente, mesmo que não impusesse resistência. A ministra acha que, já que as meninas em questão eram prostitutas, elas sabiam bem o que era o sexo e portanto não foram ludibriadas, enganadas ou forçadas ao ato; logo, sua liberdade sexual não fora violada. Eu entendo o que ela pensou. Mas discordo com muita veemência.

Discordo porque a violência prevista na lei não desaparece se uma menina faz do sexo sua profissão. Mesmo que ela não tenha sido levada a praticar sexo contra sua vontade explícita, se ela tem apenas 12 anos seu cérebro e seu aparelho psicológico não adquiriram habilidades especiais pelo fato de ser prostituída, por isso sua “vontade explícita” não pode ser invocada como álibi.

A lei considerava haver violência, e ainda hoje considera estupro ter relação com alguém com menos de 14 anos, porque a decisão de engajar-se em qualquer comportamento, sobretudo um tão complexo como o sexual, depende de uma série de competências e habilidades ainda não plenamente desenvolvidas nessa idade. Nossas decisões se dão em função de nossas intenções. A inteção, por sua vez, depende de dois fatores: da postura/opinião do sujeito sobre o comportamento (quão desejável ele é), e também da percepção sobre as normas gerais referentes àquele comportamento (o que os outros pensam que eu devo fazer). As consequências das decisões (por exemplo, engravidar) são levadas em conta nesse raciocínio, e se baseiam nas crenças sobre a probabilidade de elas ocorrerem (quais as chances de engravidar?) e no valor que elas terão (quão ruim é ficar grávida?). As considerações normativas, por fim, dependem não só de saber o que os outros acham, mas também do valor que se dá para a opinião do meio e do quanto a pessoa quer se conformar a ele.

Sim, é complicado mesmo. E é por isso que a sociedade entende que uma pessoa de 12 anos não é capaz de decidir fazer sexo. Mesmo que queira. Mesmo que já o faça. Minha principal discordância da ministra é que, para mim, a violência está implícita no próprio ato de ter relação sexual com um pré-adolescente, não em como se chegou a esse ponto. A lei, afinal, não existe para impedir os menores de fazer sexo com adultos. É justamente o contrário.

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Gillmore, M., Archibald, M., Morrison, D., Wilsdon, A., Wells, E., Hoppe, M., Nahom, D., & Murowchick, E. (2002). Teen Sexual Behavior: Applicability of the Theory of Reasoned Action Journal of Marriage and Family, 64 (4), 885-897 DOI: 10.1111/j.1741-3737.2002.00885.x

Daniel de Barros é psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC), onde atua como coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor). Doutor em ciências e bacharel em filosofia, ambos pela USP.

Artigo originalmente publicado no blogue Psiquiatria e Sociedade

EcoDebate, 13/04/2012

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