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Artigo

Desenvolvimento sustentável (1987-2005) – um oxímoro atinge a maioridade, artigo de Michael R. Redclift

 

Desenvolvimento sustentável (1987-2005) – um oxímoro atinge a maioridade

Michael R. REDCLIFT

King’s College, London – United Kingdom.

michael.r.redclift@kcl.ac.uk

Resumo

Este ensaio argumenta que o termo “desenvolvimento sustentável” tinha sido, por algum tempo, uma característica inerente de diferentes discursos. Considerado um “oxímoro”, tal termo provocou muitas interpretações discursivas de peso, relacionadas tanto ao “desenvolvimento” quanto à “sustentabilidade”. Somente expondo os pressupostos e conclusões destes discursos poderemos ter a esperança de esclarecer as escolhas e “trade-offs que envolvem a política ambiental e as ciências ambientais. Atualmente, o termo “desenvolvimento sustentável” precisa estar ligado às novas realidades materiais, produto de nossa ciência e tecnologia e mudanças associadas à consciência.

Palavras-chave: cultura, discursos, globalização, desenvolvimento sustentável

Abstract

The essay began by arguing that “sustainable development” had for some time been a property of different discourses. The term “sustainable development” was an “oxymoron”, which prompted a number of discursive interpretations of the weight to attached to both “development” and “sustainability”. Only by exposing the assumptions, and conclusions, of these discourses could we hope to clarify the choices, and “tradeoffs”, which beset environmental policy, and the environmental social sciences. Today “sustainable development” needs to be linked to new material realities, the product of our science and technology, and associated shifts in consciousness.

Keywords:culture, discourses globalisation, sustainable development.

1. Desenvolvimento sustentável

O termo “desenvolvimento sustentável” entrou para os círculos políticos em1987, após a publicação do relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento1. Este relatório ajudou a introduzir o termo “desenvolvimento sustentável” ao discurso sobre as políticas e à linguagem do dia-a-dia. Foi também a primeira visão geral do globo que considerou os aspectos ambientais do desenvolvimento sob uma perspectiva econômica, social e política; um avanço notável sobre o trabalho científico do Programa Homem e Biosfera da UNESCO (MAB)2 mais de uma década depois. Herman Daly comentou, de forma célebre, que a expressão desenvolvimento sustentável consistia em um “oxímoro”3. Agora, dezoito anos após seu surgimento, tal oxímoro atinge a maioridade. Tendo então alcançado a maioridade, este trabalho considera se há um futuro para o termo “desenvolvimento sustentável”.

Dentre as principais lacunas do Relatório Brundtland encontram-se considerações detalhadas das espécies não-humanas e de seus “direitos”, uma área que veio a receber atenção considerável durante mais ou menos os últimos dez anos. O “Relatório Brundtland” também abriu caminho para que as organizações não-governamentais (ONGs) fossem consideradas atores importantes no que concerne às questões ambientais e de desenvolvimento, um processo que culminou em 1992, como veremos, com a primeira Cúpula da Terra4 no Rio de Janeiro.

Desde as deliberações inovadoras da Comissão Brundtland, a expressão “desenvolvimento sustentável” tem sido usada de várias maneiras, dependendo do contexto onde é empregada – se no contexto acadêmico, no planejamento, nos negócios ou na política ambiental. Como consequência, durante os últimos dezoito anos, temos nos confrontado com vários discursos diferentes acerca do termo “desenvolvimento sustentável”, alguns dos quais mutuamente exclusivos. Por exemplo, militantes para uma maior igualdade global entre as nações, grandes corporações internacionais e associações de moradores locais têm frequentemente recorrido ao termo “desenvolvimento sustentável” para justificar ou “enfeitar”5 suas ações. Frequentemente, não fica claro se estas diferentes perspectivas são complementares ou mutuamente exclusivas. A exasperação com as limitações de grande parte da discussão não tem ficado confinada ao campo político.

Podemos começar nossa análise destes diferentes discursos retornando ao essencial. Retrospectivamente, pode-se constatar que cada problema científico solucionado pela intervenção humana usando combustíveis fósseis e materiais manufaturados é convencionalmente visto como um triunfo da administração e uma contribuição ao bem econômico, quando poderia também ser visto como uma ameaça futura à sustentabilidade. Nos anos 1970, havia um temor de que nossos principais problemas ambientais estariam associados à escassez de recursos (Meadows et al., 1972). No início do século XXI somos confrontados por outro desafio: o de que os meios que usávamos para superar a escassez de recursos, incluindo a substituição de alguns recursos naturais e produtos e serviços ambientais “mais limpos”, podem ter contribuído para a geração seguinte de problemas ambientais. Essa compreensão proporciona um enorme desafio para os cientistas sociais e outros que prezam a reflexão crítica e que reconhecem a centralidade do meio ambiente e da sustentabilidade para um programa radical que esteja disposto a provocar mudanças substanciais no capitalismo tardio.

A Comissão Brundtland definiu desenvolvimento sustentável da seguinte maneira:

[…] desenvolvimento que atende as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras atenderem também às suas. (Brundtland Commission, 1987).

Esta definição começou a ser empregada na ausência de um acordo sobre um processo que quase todos consideram desejável. Contudo, a simplicidade desta abordagem é enganosa e oculta complexidades e contradições fundamentais. Vale a pena fazer uma pausa aqui para examinar as confusões que ainda caracterizam a discussão em torno do termo desenvolvimento sustentável.

Em primeiro lugar, seguindo a definição do Relatório Brundtland, fica claro que as “necessidades” mudam; assim, é improvável (como a definição sugere) que as necessidades das futuras gerações serão as mesmas que as da geração atual. Obviamente, o próprio desenvolvimento contribui para a caracterização das “necessidades”, ajudando a defini-las de forma diferente para cada geração e para diferentes culturas. O desenvolvimento ou o crescimento econômico é o principal determinante nas mudanças das necessidades? Em que medida a percepção das mudanças em nossas necessidades ou “desejos” influencia o modo como são atendidas? Estas são questões que raramente são perguntadas fora dos círculos dos verdes radicais, mas trazem implicações para nós todos.

Isto levanta a segunda questão (não coberta pela definição): Como as necessidades são definidas em diferentes culturas? A maior parte do “consenso” em torno do conceito de desenvolvimento sustentável envolve um silogismo: o desenvolvimento sustentável é necessário para nós todos, mas pode ser definido de forma diferente de acordo com as diferentes culturas. Isto é superficialmente conveniente até começarmos a nos perguntar até que ponto essas diferentes definições são equivalentes. Se numa sociedade todos concordam que ar puro e áreas verdes são necessários antes que o desenvolvimento possa ser sustentável, então será cada vez mais difícil conciliar esta definição de “necessidades” com aquelas de outras sociedades que buscam mais riqueza material, mesmo correndo o risco de aumentar a poluição. É precisamente este tipo de “trade-off”, que é aparente nas nações em desenvolvimento de hoje, quando os ganhos do crescimento econômico acelerado prometem recompensas imediatas e a mitigação ambiental parece beneficiar em grande parte os países ricos. Além disso, como estabelecemos qual curso de ação é “mais” sustentável? Apelar para a visão de que as sociedades devem decidir por si próprias não é muito útil. (Quem decide? Sobre qual base as decisões são tomadas?).

Há também problemas que atingem diferentes posições ontológicas. Grande parte do debate “mainstream” acerca do desenvolvimento sustentável ignora definições culturalmente específicas acerca do que significa ser sustentável, em favor de um sistema de conhecimento excludente preferido pelo paradigma científico dominante (Noorgaard, 1988). É um paradoxo da nossa era que, apesar de mais pessoas no mundo desenvolvido buscarem soluções para os problemas fora do “circuito” convencional6, na medicina alternativa7, na racionalização dos estilos de vida8, no apoio às redes de alimentos alternativos9 e “feiras-livres”10, presume-se ainda que as sociedades civis estejam perseguindo os mesmos objetivos sociais e culturais. A fragmentação social e o descontentamento com a “modernidade” têm sido manifestados desde 1987, especialmente em resposta ao 11 de setembro e o desafio colocado pelas religiões fundamentalistas (tanto no Ocidente como no Oriente). Curiosamente, essas profundas mudanças políticas e culturais tiveram apenas um efeito marginal sobre o modo no qual o “desenvolvimento sustentável” tem sido discutido. Há ainda uma confusão considerável em torno do que é para ser sustentado, que diferentes discursos sobre o desenvolvimento sustentável às vezes falham em abordar.

2. O que é para ser sustentado?

Alguns economistas ecológicos sustentam que é necessário priorizar o estoque de recursos naturais ou o “capital natural crítico”11 sobre os fluxos de renda12, do qual estes últimos dependem (Pearce, 1991). Eles chamam atenção para o fato de que o capital manufaturado13 (ou produzido pelo homem) não pode ser um substituto eficaz para o capital natural14. Denomina-se de sustentabilidade “forte”, quando é mais difícil substituir o capital manufaturado pela natureza. Se o nosso objetivo é o rendimento sustentável dos recursos renováveis, então, desenvolvimento sustentável implica o manejo destes recursos no interesse do estoque de capital natural15. Se pudermos medir o “capital natural crítico” estaremos mais bem situados para fazer escolhas sobre o nível de substituição do capital manufaturado pelo capital natural (Ekins, 1992).

Isto levanta várias questões, que são tanto políticas como distributivas. Em primeiro lugar, não deveríamos perder de vista o fato de que o capital natural, “crítico” ou não, é geralmente propriedade de indivíduos, coletividades ou corporações. A defesa dos recursos de propriedade comum16 face às pressões implacáveis do mercado tem sido fonte de uma considerável luta política, grande parte dela intensificada desde o final dos anos 1980 com o triunfo da agenda neoliberal nos círculos da política internacional. O caráter desta resistência social tem sido reconhecido com o epíteto de “capital social”17, um termo que frequentemente não dá a devida ênfase às lutas políticas e conta ainda com o “imprimatur” do Banco Mundial. A conservação do capital natural não pode ser separada de algumas questões distributivas-chave. Quem possui e controla os materiais genéticos e faz a gestão do meio ambiente? Qual é a relação entre os “serviços ambientais” promovidos pelas populações de baixa-renda e sua participação futura na conservação dos recursos naturais? Longe de nos afastar das questões das políticas distributivas e da economia política, uma preocupação com o desenvolvimento sustentável levanta inevitavelmente tais questões mais vigorosamente do que nunca (Redclift, 1987).

A questão “do que é para ser sustentado” também pode ser respondida de outra maneira. Alguns autores argumentam que são os atuais níveis (ou futuros) de produção (ou consumo) que precisam ser sustentáveis. O argumento é baseado na constatação de que o crescimento da população global levará ao aumento das demandas sobre o meio ambiente e nossa definição de desenvolvimento sustentável deveria incorporar este fato. Ao mesmo tempo, as práticas de consumo dos indivíduos também mudarão com o aumento dos rendimentos, especialmente os das classes mais baixas. Podendo escolher, a maioria das pessoas na Índia, China ou Brasil gostaria de ter uma televisão ou um automóvel, como ocorre nos lares do Norte industrializado. O que os impede de adquirir esses bens são seus baixos rendimentos, sua inabilidade de serem consumidores efetivos e a infra-estrutura relativamente “subdesenvolvida” das nações pobres. Se países como China e Índia continuarem a apresentar altas taxas de crescimento econômico a longo-prazo, como as que tiveram durante a maior parte da última década, então as expectativas das populações desses países sobre suas necessidades mudarão de forma radical.

Não há nada de essencialmente insustentável na ampliação do mercado de aparelhos de TV ou carros. Portanto, como avaliar as implicações dessa impressionante tendência para o “desenvolvimento sustentável”? Os diferentes discursos acerca do “desenvolvimento sustentável” têm diferentes respostas para essa questão. Muitos daqueles que são favoráveis ao desenvolvimento sustentável de bens e serviços que nós recebemos via mercado e via atividades comerciais, argumentam que nós deveríamos ampliar a base de consumo. Outros sustentam que a produção atual da maioria destes bens e serviços é insustentável por natureza – que nós precisamos “enxugar”18 ou mudar nossos padrões de consumo. Tanto nas nações desenvolvidas como, cada vez mais, nas em desenvolvimento, tem-se sugerido, de forma frequente, que é impossível atuar socialmente de forma efetiva sem os recursos da tecnologia da informação ou sem os benefícios ofertados pelo acesso ao transporte privado.

As diferentes abordagens da “sustentabilidade”, então, refletem padrões subjacentes19 do comportamento diário (ou “compromissos subjacentes”20) bastante diferentes, compromissos estes que são raramente questionados. As pessoas definem suas “necessidades” de um modo que efetivamente excluem outras do atendimento às suas, e neste processo, podem aumentar os riscos de longo-prazo para a sustentabilidade do modo de vida de outras pessoas. Mais importante, contudo, o processo através do qual ampliamos nossas escolhas e reduzimos as dos outros é em grande parte invisível às pessoas em seu cotidiano, embora a compreensão deste processo seja central para a habilidade de nos comportarmos de forma mais “sustentável”.

A menos que esses processos se tornem mais visíveis, os discursos em torno do “desenvolvimento sustentável” não poderão fugir à seguinte pergunta: Como os custos ambientais são repassados de um grupo de pessoas para outro, tanto dentro das sociedades como entre elas? O Norte despeja grande parte de seus resíduos tóxicos e de sua tecnologia suja sobre o território dos países mais pobres e obtém grande parte de suas “necessidades”, como energia, alimento e minerais, importando-as dos países do Sul. Ao mesmo tempo, os elevados estilos de vida de muitos ricos e também de muitas pessoas da classe média nas nações em desenvolvimento, dependem do modo como os recursos naturais são dedicados ao atendimento de suas necessidades (Martinez-Alier, 1995). Finalmente, não resta dúvida de que as desigualdades sociais são também intergeracionais, assim como intrageracionais: nós saqueamos o presente à custa do futuro. Descontar o futuro, valorizar o presente sobre o futuro, é muito mais fácil de fazer em sociedades mais pobres do ponto de vista material, onde a própria sobrevivência pode estar em jogo para muitas pessoas.

Há outras formas de herdar o passado. A Economia desenvolveu-se historicamente em torno da idéia da escassez e o papel da tecnologia foi, principalmente, o de aumentar a produção dos recursos escassos. Dentre outros benefícios do crescimento econômico está a legitimidade política conferida – dentro de uma economia capitalista dinâmica – àqueles que podiam superar com sucesso os obstáculos com mais gastos e com a “criação” de mais “riqueza”. Esse pressuposto de recursos escassos e benefícios tecnológicos acomoda-se de forma constrangedora21 com a sustentabilidade no Norte industrial de hoje e assinala a dificuldade em se reconciliar o “desenvolvimento” com à “sustentabilidade”. Tal pressuposto legitima apenas uma forma de “valor” (embora a principal), dentro das sociedades industriais capitalistas. Este pressuposto também deixa intacto o significado que nós atribuímos à “riqueza”, embora seja evidente que grande parte da riqueza é criada de um modo que destrói a sustentabilidade. O sociólogo alemão Habermas expressou essa visão de forma vigorosa, perguntando:

[…] uma civilização pode se deixar enredar, como um todo, no turbilhão das forças de propulsão de um de seus subsistemas – ou seja, na esteira de um sistema econômico dinâmico e, como dizemos hoje, de referenciais fechados, sistema cuja capacidade de funcionamento e auto-estabilização depende de que se armazenem e processem todas as informações relevantes unicamente na linguagem do valor econômico […]22 (Habermas, 1991, p.49).

3. A sustentabilidade desde a Rio-92

Após o “Encontro de Cúpula” no Rio de Janeiro em 1992, o conceito de “sustentabilidade” era quase sempre utilizado dentro de aspas. Já foi sugerido que o poder do conceito de sustentabilidade reside mais nos “discursos” que o circundam, do que em algum valor substantivo ou heurístico em comum que possa ter (Becker; Jahn; Stiess, 1999). Faz sentido, então, examinar esses discursos mais de perto. É a opinião deste artigo que a ideia de desenvolvimento sustentável, tendo alcançado a sua maioridade, está agora sendo privada dos amplos direitos de um cidadão adulto. No lugar de novas oportunidades radicais que nos forçam a reconsiderar o que entendemos por desenvolvimento sustentável, o termo é geralmente relacionado acriticamente com as práticas e políticas existentes que poderiam se beneficiar do “re-branding”23. De que maneiras a reconsideração do desenvolvimento sustentável poderia levar a rupturas significativas?

As mudanças na comunicação global e na genética alteraram nossa relação com o meio ambiente de modo tão substancial, que seria insensato não contemplá-las como parte da “natureza” que descrevemos como “sustentável”. No século XXI faz sentido “considerar-nos” parte do discurso da sustentabilidade. Durante a maior parte do final do século XX o conceito de desenvolvimento sustentável evoluiu como um conjunto de observações sobre a natureza e nossas relações com ela; mas, tornou-se claro para muitos, que a chave para a compreensão desse conceito era as relações que existiam “dentro” das sociedades humanas e “entre” elas. A “natureza” como algo externo a nós forneceu um ponto de convergência24 para os críticos das políticas econômicas que eram claramente insustentáveis. Para outros, o descontentamento com o modo anódino no qual o “desenvolvimento sustentável” foi descrito levou a uma série de reflexões acerca das espécies humanas como “pertencentes” à natureza.

O ressurgimento da economia de mercado e das políticas neoliberais nos anos 1980, com as quais a mensuração da sustentabilidade está associada, marcou claramente um divisor de águas para as políticas ambientais. Cada vez mais a “sustentabilidade” foi separada do “meio ambiente” e a sustentabilidade ambiental passou a ser confundida com questões mais amplas como equidade, governança e justiça social, o que serviu para mudar a discussão política para diferentes direções.

A discussão anterior acerca da “sustentabilidade” e do “desenvolvimento sustentável” tinha estado preocupada com as necessidades, em particular (mas não exclusivamente) com as necessidades humanas. Nos anos 1980, o debate em torno da sustentabilidade foi se tornando “mainstream”, sendo em grande parte influenciado pela economia neoclássica, e um esforço foi feito para traduzir as escolhas ambientais em preferências de mercado, seguindo a ortodoxia neoliberal. A atenção crescente à mensuração foi um corolário necessário desta tendência. Começou-se uma busca por meios práticos no qual a sustentabilidade pudesse ser incorporada nas políticas e planejamento existentes (Rydin, 1996). Isto ampliou o uso no qual a sustentabilidade era apresentada e abriu caminho para um novo discurso em torno do desenvolvimento com apelo para aqueles que elaboram as políticas e empresários.

Talvez em resposta à incorporação da economia ecológica a uma política “mainstream”, talvez para compensar uma história de negligência, grande parte da discussão sobre a sustentabilidade como um processo político começou a acontecer em algumas disciplinas além da economia ecológica. Como consequência, a discussão sobre a sustentabilidade migrou, de forma quase imperceptível, das necessidades humanas (a preocupação original da Comissão “Brundtland”) para a questão dos “direitos”. A ênfase tanto nos direitos humanos como nos não-humanos, por sua vez, moveu a discussão da sustentabilidade em direção a outras preocupações mais “ortodoxas” das ciências sociais: questões de poder, de distribuição e de equidade (Martinez-Alier, 1995).

Deixando de lado a preocupação com a elaboração das políticas, as conexões entre meio ambiente, justiça social e governança se tornaram cada vez mais vagas nos discursos acerca do desenvolvimento sustentável; tornaram-se imprecisas também as relações estruturais entre poder, consciência e meio ambiente. Na busca por uma visão mais inclusiva da sustentabilidade, muitas vezes a retórica política substituiu a discussão sobre as questões ambientais.

O debate sobre a sustentabilidade atingiu o “mainstream”, no momento em que os ambientalistas e outros grupos de militantes buscavam se distanciar das soluções neoliberais para problemas ambientais e sociais. No entanto, os discursos ambientais que reivindicam prioridade para os “direitos” e que são dirigidos a altos níveis de abstração e agregação geográfica estão na prática, muitas vezes, frouxamente conectados com as escolhas culturais e as decisões políticas. Ao mesmo tempo, a crítica à economia de mercado, que tem caracterizado as organizações não-governamentais internacionais (ONGs), também apresenta problemas.

A oposição ao neoliberalismo é mais eficaz, quando vai além da crítica às instituições para englobar novas redes de comunicação global. Isto ficou evidente na oposição “virtual” (porém extremamente “material”) às conversações da Organização Mundial do Comércio (OMC)25 em Seattle em 1999 e mais tarde nos protestos de rua em Washington, em Praga e na Holanda no ano seguinte. Estes protestos ‘antiglobalização’ uniram-se em torno da visão de que o crescimento econômico atual é tanto socialmente retrógrado como ambientalmente insustentável.

Estes discursos “oposicionistas” sobre o meio ambiente representam a comunicabilidade de diferentes códigos, mas dependem, frequentemente, da mesma terminologia formal que envolve o conceito de desenvolvimento sustentável. Eles marcam “práticas” de comunicação, que carregam significados simbólicos e políticos por si próprios, tais como “poder democrático”, “empoderamento”26, “justiça natural” e que são vistos por seus defensores como uma alternativa à falência da democracia representativa (Esteva, 1999). Os novos discursos ambientais refletem mudanças na globalização, engenharia genética e na comunicabilidade da informação via internet; tais fenômenos eram muito menos desenvolvidos em 1987, ano em que foi publicado o Relatório da Comissão Brundtland. Eles também demonstram de modo vívido, a importância das novas desigualdades espaciais e as fraquezas de muitos laços sociais. Neste sentido eles podem ser construídos como discursos da “pós-sustentabilidade”.

A chave para compreender os novos discursos da sustentabilidade reside não apenas em seus significados simbólicos, mas também nos avanços na tecnologia e, por conseguinte, na própria comunicação. O principal exemplo é o da Internet. Podemos apontar outros exemplos induzidos pelas revoluções na genética humana e animal. Ao mesmo tempo em que a comunicação global está sendo revolucionada, mudanças radicais vêm ocorrendo na própria “natureza”, que parecem ter tornado obscuras as barreiras entre as espécies. As fronteiras entre as espécies tornaram-se subvertidas e, na visão de alguns analistas, a “nova biologia” está alterando o que entendemos por indivíduo e sua participação plena na sociedade civil (Finkler, 2000).

O desafio formal do Encontro de Cúpula no Rio de Janeiro em 1992 significou nada menos que a governança do sistema global conforme os princípios – recentemente reconhecidos – da sustentabilidade. À época, isto significava o meio ambiente global e as instituições que foram estabelecidas no primeiro Encontro de Cúpula, logo se tornaram investidas com expectativas que jamais poderiam satisfazer. Ao longo das últimas duas décadas o sistema global tem sido ampliado e reconstituído. Instituições tais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Projeto Genoma Humano27 e a World Wide Web, são imprescindíveis a este sistema (Nenhuma destas instituições existia em 1987). São tão imprescindíveis ao sistema global quanto o Fundo Global para o Meio Ambiente28 ou a Assembléia Geral das Nações Unidas.

Neste novo sistema global, a territorialidade não é mais uma qualidade necessária do meio ambiente, mas uma característica condicional dele. Não é apenas o território em comum que une as pessoas e provoca apelos para que os direitos universais sejam estendidos a todos. Apelos contínuos para que os direitos “naturais” sejam protegidos e para uma melhor governança do meio ambiente têm de ser colocados dentro de um novo contexto, no qual as escalas da justiça sejam ampliadas e a ‘sustentabilidade’ seja inerente a diferentes discursos, discursos estes que são opostos29 entre si. O primeiro destes discursos trata da “globalização” (Castells, 2000).

4. Globalização e sustentabilidade

Pode-se perceber do texto da declaração do Rio de 1992 (Agenda 21, 1993) uma preocupação crescente com as questões ambientais globais: uma preocupação que levou ao estabelecimento de vários mecanismos institucionais para tentar assegurar que os problemas ambientais pudessem ser geridos de uma forma mais eficaz. Por trás desta preocupação encontravam-se vários pressupostos. O primeiro era o de que os problemas ambientais internacionais – particularmente a mudança do clima e a perda da biodiversidade – eram “[…] anormalidades dos arranjos institucionais existentes na política e na ciência e sua capacidade para lidar com problemas” (Becker; Jahn; Stiess, 1999, p. 284). Os problemas ambientais tinham escapado ao sistema internacional, uma vez que eles não tinham sido previstos (na sua maior parte) e eram difíceis de ser controlados através dos instrumentos ortodoxos das instituições financeiras.

O segundo pressuposto, sobre o qual a própria Cúpula da Terra de 1992 foi baseada, era que tanto o Norte como o Sul tinham um interesse “comum” em assegurar que o desenvolvimento econômico futuro não fosse prejudicial ao meio ambiente. Em um nível esta estrutura normativa era muito atraente: marcava uma ruptura com as divergências do passado (especialmente após 1945) e um reconhecimento da vulnerabilidade do próprio planeta. Esta abordagem do “consenso liberal” é ainda o discurso dominante que cerca conceitos-chave como “desenvolvimento sustentável”, “segurança humana” e “mudança ambiental global”.

Contudo, a discussão sobre a globalização carregava consigo pressupostos sobre a trajetória do desenvolvimento global que as primeiras críticas ao “desenvolvimento sustentável” buscavam desafiar. Conforme Law e Barnett a globalização:

Constrói o presente como um momento, que é parte de uma transformação histórica fundamental. A globalização tornou-se a grande narrativa que justifica o fim de todas as outras principais narrativas de mudança social […] (Law; Barnett, 2000, p. 55).

A globalização adquiriu o manto da modernidade; é o nome dado tanto à jornada que as modernas sociedades estão trilhando, como ao seu destino final.

Do ponto de vista do novo século, discursos políticos deste tipo dão apoio ideológico fundamental para a ação concertada entre governos nacionais e organizações internacionais (Baumann, 1998). Eles traduzem ideias tais como “sustentabilidade” para o campo discursivo, fornecendo uma estrutura que está em grande parte ausente da diplomacia internacional tradicional. Eles também indicam oportunidades para que os diferentes atores e grupos se mobilizem em torno das políticas, conferindo-lhes legitimidade através deste processo. Diferentes atores são capazes também de elaborar e “adornar”30 estes discursos, fornecendo os meios para que possam ser redefinidos ou desviados. Essas narrativas discursivas influenciam o modo no qual a política ambiental internacional e o desenvolvimento sustentável são vistos hoje em distintos níveis espaciais (Milbrath, 1984).

Podemos tomar um exemplo comum para ilustrar essa questão. Dentro da conservação internacional a palavra “natureza” é usada de diferentes maneiras para expressar interesses sociais e econômicos sobre o meio ambiente. Os conservacionistas usam-na para denotar um “objeto”, tal como um habitat, um campo, uma floresta, um pântano ou um recife de coral. Movimentos ambientalistas, contudo, também utilizam tal termo para expressar uma identidade de base local; seu próprio ambiente natural. Finalmente, o termo “natureza” é usado ainda nos discursos sobre a elaboração das políticas para expressar um julgamento profissional sobre o tipo ou valor de um recurso – “capital natural crítico”, “hotspots da biodiversidade”31, “recursos de uso comum”32, “sumidouros naturais”33 etc. Cada uma dessas definições da natureza fornece um significado simbólico para diferentes grupos de pessoas, refletindo seus diferentes interesses.

Do mesmo modo, no caso do manejo da floresta tropical, podemos identificar vários campos discursivos contrastantes, através dos quais a natureza é caracterizada e onde são deliberados os objetivos de conservação. A proteção da “natureza” torna-se sinônimo de proteção de ambientes, sistemas ecológicos ameaçados, assim como de “populações indígenas” que habitam esses ambientes. Nem sempre fica claro onde esses interesses se sobrepõem e onde divergem.

Há outra faceta dos novos discursos em torno da natureza que recebe pouca atenção. Sob o domínio da globalização, as narrativas dos discursos ocultam, frequentemente, os processos sociais “espacializados”, removendo e redirecionando os recursos biológicos de um local para outro. A floresta tropical torna-se, literalmente, um recurso distante, a ser explorada no interesse tanto da “ciência” como do mercado. Antes que os benefícios da biodiversidade possam ser comoditizados e comercializados, devem primeiramente ser privatizados; é também essencial ter certeza de quem a possui. Esse é o importante e, altamente contestado, domínio dos direitos de propriedade intelectual. Conforme McAfee está construído sobre areia movediça34:

Contrariamente à premissa do paradigma econômico global, não pode haver uma métrica universal para comparar e trocar os valores reais da natureza entre os diferentes grupos de diferentes culturas e com graus completamente diferentes de poder político e econômico (McAfee, 1999, p. 133).

Essas mudanças trazem consequências políticas claras. Os processos através dos quais a globalização é empreendida e são elaborados os acordos ambientais, envolvem sistemas de capital e informação altamente desiguais, aos quais diferentes grupos de pessoas e governos têm acesso de forma altamente desigual. Vogler demonstra como alguns membros da comunidade internacional exercem poder desproporcional:

Na maioria […] dos regimes […] existem provas suficientes sobre o modo no qual as normas e regras provenientes das práticas e legislação dos Estados Unidos são traduzidas ao nível internacional (Vogler, 2000, p. 209).

É um paradoxo da globalização que as deliberações que acompanham as decisões para explorar o material genético da vida silvestre, por exemplo, sejam raramente propriedade pública, como eram as decisões políticas no passado. Uma inquietação básica com estas novas realidades tem, por sua vez, estimulado novas formas de protesto social e novas práticas de legitimação.

5. Futuros humanos sustentáveis?

Contudo, a importância política dos discursos da globalização não está confinada ao nível individual. O meio ambiente, visto como um recurso estratégico pode ser gerido, em grande parte, da mesma maneira que o status “não-alinhado”35 durante a Guerra Fria. Para aumentar a segurança humana, dever-se-ia esperar que as organizações supranacionais agissem conforme “o interesse global”, dado que a estabilidade ambiental é vista como um problema “comum” para o mundo desenvolvido e o menos desenvolvido. O discurso da segurança humana defende o apoio limitado para intervenções que reduzam as vulnerabilidades ambientais, na qual a natureza política desta intervenção está oculta. Ao entrar no “mainstream” da elaboração das políticas ele oferece propósitos similares aos discursos da sustentabilidade que o precederam.

Um princípio central do novo “ambientalismo” global, então, é o papel que ele confere às instituições estatais e supranacionais. Sob esta perspectiva, os sistemas ecológicos e “ambientais” deixam o domínio moral e tornam-se coisas que o Estado ou o supra-Estado têm de administrar. Isto representa uma importante mudança para além do princípio da soberania nacional, muito estimada pela tradição realista dos teóricos das relações internacionais e vista nos primeiros escritos sobre “desenvolvimento sustentável” como uma barreira ao progresso.

Ao mesmo tempo, o novo paradigma da “sustentabilidade” em torno da segurança humana e do meio ambiente, supõe uma responsabilidade compartilhada sobre o meio ambiente. As ideologias de “co-participação” enfatizam os benefícios de uma melhor gestão tanto para as “populações ameaçadas” como para os ecossistemas. Por fim, embora o discurso da segurança ambiental aparentemente se afaste da lógica do estado-nação da escola realista, ele se baseia no consenso liberal do pós-Guerra de um novo modo. Ele apresenta um tipo de neo-keynesianismo para o meio ambiente global baseado no planejamento e na intervenção internacional. Termos como “uso prudente”36, “administração prudente”37 e “direitos de propriedade soberana”38 ressoam os princípios da ecologia para públicos específicos, particularmente para aqueles da América do Norte, embora sejam empregados para ser aplicáveis no mundo todo.

6. Desenvolvimento sustentável e ciência

É um pressuposto dos acordos ambientais internacionais, pós Rio-92, de que a “avaliação científica” objetiva aumentará a visibilidade das áreas e espécies protegidas. A Agenda 21 fala do

[…] Fortalecimento da base científica para a gestão sustentável… intensificando a compreensão científica. Desenvolvendo a capacidade e a aptidão científica (Agenda 21, 2003).

Isto, por sua vez, se traduziu em maiores esforços para proteger o meio ambiente através de acordos obrigatórios39. Um exemplo é o da “Declaração Universal das Responsabilidades Humanas”40, que foi preparada pela 53ª Assembléia Geral das Nações Unidas, juntamente com a comemoração do “cinquentenário” da Declaração dos Direitos Humanos41. Dois dos dezenove princípios da Declaração Universal das Responsabilidades Humanas são particularmente relevantes ao meio ambiente:

  1. O artigo 7 declara: “todas as pessoas têm a responsabilidade de proteger o ar, a água e o solo pelo bem das atuais e futuras gerações”, e
  2. O artigo 9 declara: “… (todas as pessoas) devem promover o desenvolvimento sustentável no mundo inteiro para assegurar dignidade, liberdade, segurança e justiça para todos”.

Westing (1999) argumenta que a Declaração das Responsabilidades Humanas das Nações Unidas deveria ser um “[…] contrato obrigatório42” que não demorasse tanto para ser implementado, como foi o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (que demorou 18 anos para ser implementada, de 1948 a 1966) e que a Carta Mundial da Natureza (1982)43 deveria ser transformada num “[…] contrato internacional obrigatório que garantisse explicitamente os direitos próprios da natureza per se” (Westing, 1999, p. 157).

De fato, ambas as questões – a base científica do discurso da “sustentabilidade” e o uso deste discurso em favor dos “direitos naturais” – exigem maior atenção. A crença numa ciência “global”, implícita na Agenda 21, é altamente contestada, mesmo por muitos cientistas. O que é colocado em ação contra os problemas globais é uma combinação de diferentes tradições científicas enraizadas em diferentes tradições disciplinares.

A maioria destas distintas disciplinas científicas não tem nada a dizer sobre as questões-chave (corretamente identificadas na Agenda 21) como “[…] “as relações” […] entre os sistemas humanos e naturais […]”, não sendo elas também nem preditivas nem prescritivas. A ideia de “sustentabilidade” é invocada nos discursos políticos para falar de métodos científicos objetivos sem as complicações do julgamento humano. Na prática, é usada como um meio para guiar as ações humanas. As próprias partes da tradição científica, que levaram adiante as fronteiras do conhecimento de forma heurística, impuseram limites, taxonomias e categorias sobre a natureza e têm sido usadas para fazer julgamentos, refletindo preocupações humanas e interesses políticos. A existência dos discursos globais sobre meio ambiente e sustentabilidade é usada, portanto, para ocultar as evidências e, ofuscando nossa compreensão, tais discursos fornecem poucas pistas sobre os significados locais da degradação ambiental.

De modo similar, grande parte da retórica que acompanha a sustentabilidade não é capaz de reconhecer que os objetivos ambientais e sociais são frequentemente distintos e, às vezes, conflitantes entre si. Essas contradições são manifestadas (verbalizadas com certa frequência pelos setores do lobby das agências de cooperação internacional)44, sob a visão de que o “consumo excessivo” do Norte é responsável pela maior parte dos problemas ambientais globais (Redclift, 1996).

7. Desenvolvimento sustentável e justiça

Como alguns analistas observaram, estes problemas permeiam a crescente literatura sobre os “direitos” e o meio ambiente (Dobson, 1998; Miller, 1998). Atualmente, os “direitos naturais” são geralmente traduzidos como “direitos humanos”. A ideia de que a natureza dota-nos com direitos naturais inalienáveis, que os governos em alguns casos desejam nos privar, está profundamente incrustada na consciência política. Tal ideia pode ser encontrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, como vimos, e tem uma história que se estende retrospectivamente à Declaração dos Direitos da França de 178945, à Declaração de Independência dos Estados Unidos de 177646 e à Declaração dos Direitos de 179147.

O “problema”, contudo, é que esta percepção dos direitos, num sentido político, é derivada da lei natural e confundida, de forma rotineira, nos discursos ambientais com “as leis da natureza”.Estas leis – o cânone da ciência – incluem a ideia (cada vez mais contestada) de homeostase, tanto na biologia como na cibernética, e as leis da termodinâmica, que expressam o princípio de que os processos físicos são irreversíveis. Consideradas “naturais”, tais leis tendem a ser confundidas com as implicações políticas e sociais que resultam de sua adoção.

A sustentabilidade é um exemplo em questão. Andrew Dobson observa que as teorias da sustentabilidade “[…] às vezes ficam subordinadas à justiça, mas, muitas vezes, o caso é inverso, isto é, a justiça acaba ficando subordinada à sustentabilidade” (Dobson, 1998, p. 241 grifo nosso). Esta posição de subordinação da justiça em relação à sustentabilidade é ocultada pela linguagem da “funcionalidade” e somente vem à tona quando a relação “vencedor-vencedor”48 (geralmente encontrada nas teorias do desenvolvimento sustentável) é substituída por uma relação potencial “vencedor-perdedor”49. Ela também vem à tona quando se examinam casos “reais” de localidades e comunidades existentes.

Dobson também observa que, dado que nem a sustentabilidade nem a justiça social têm significados determinados, isto “abre caminho para legitimar uma delas em relação à outra […]” (Dobson, 1998, p. 242). Se você vê a sustentabilidade como sustentando famílias e pessoas, então a distribuição dos recursos e direitos é central para seus objetivos. Se, contudo, você vê a “sustentabilidade” como a proteção e conservação do meio ambiente, então a “justiça” consiste principalmente em assegurar que ela continue a desempenhar sua função ecológica vital. Neste momento, não podemos dizer se a justiça é uma condição necessária ou suficiente para a sustentabilidade ambiental.

Esta observação, por sua vez, leva-nos a explorar o modo como o mundo material e as construções que colocamos sobre ele são mutuamente dependentes e capazes de influenciar um ao outro.

8. A engenharia da natureza: sustentabilidade como sujeito humano50

O primeiro conjunto de mudanças encontra-se na biologia e na genética. De certo modo, as questões de “segurança” vão em direção à “natureza”, forçando-nos a reconsiderar o que entendemos tanto por “sustentabilidade” como por “segurança”. Por exemplo, a proteção da natureza é usada agora para legitimar a ação militar e, como vimos, os pressupostos sobre o alcance global da gestão da natureza foram glorificados pela “lei branca”51, recebendo o endosso das instituições governamentais.

A sustentabilidade não é mais essencialmente uma questão de manter e melhorar os recursos ambientais existentes; trata-se de construir novos (através da engenharia genética, por exemplo). A publicação dos primeiros resultados do Projeto Genoma Humano assinala um divisor de águas na biologia tradicional, cujas teorias serviram de base para a maioria das políticas ambientais: direitos individuais, cidadania e governança. A nova genética está modificando o que significa estar socialmente conectado, participar da sociedade civil. E como “governamos” um novo sistema global que não respeita território, um sistema que é, de fato, cada vez mais extraterritorial (Finkler, 2000)?

Bruno Latour aponta para fenômenos que não são nem “fatos sociais” no sentido Durkheimiano, nem objetos naturais, “[…] mas que emergem da intersecção de práticas sociais e processos naturais como formas de mediação socialmente construídas entre sociedade e natureza” (Latour, 1993, p. 11). Latour estava se referindo a fenômenos tais como a Encefalopatia Espongiforme Bovina (“doença da vaca louca”)52 ou ao aquecimento global53 (que para o autor são fenômenos “híbridos”), fenômenos estes que incorporam elementos do material e do socialmente construído. No futuro, a genética humana, juntamente com outros processos sistêmicos, pode ter o papel de nos levar ainda mais na direção da mediação entre “natureza” e “sociedade” até o ponto onde o que hibridizamos (ou tornamos híbrido) não seja mais percebido como política “pública”, como o aquecimento global ou a doença da “vaca louca”. O processo de mediação estará completo quanto menos ele for reconhecido, seja dentro de um domínio público ou de um discurso público.

Onde isso leva o “meio ambiente” e os discursos políticos que governam a sua gestão? Como o próprio “sujeito humano” está mudando, deveriam mudar também as noções de cidadania, democracia e direitos? No novo mundo, materialidade e consciência assumem uma relação cada vez mais complexa entre si. Como as fronteiras entre as espécies estão se erodindo e a escolha genética é que dita a política, o “meio ambiente” e a “sustentabilidade” podem ainda ser considerados categorias válidas?

9. Conclusão

Na introdução deste artigo começamos afirmando que, tendo o conceito de “desenvolvimento sustentável” alcançado o “mainstream” da política ambiental internacional, chegara a hora de tomar fôlego e examinar mais de perto a agenda política e intelectual que estava sendo proposta. Desde que o termo “desenvolvimento sustentável” foi popularizado pela Comissão Brundtland em 1987, o meio ambiente tem estado intimamente conectado com a satisfação das “necessidades” humanas. Subsequentemente, o deslocamento da ênfase sobre a questão das “necessidades” para a dos “direitos”, marcou uma mudança de um paradigma amplamente Keynesiano das relações econômicas internacionais (no período pós-segunda Guerra Mundial) para às certezas neoliberais dos anos 1980 e 1990.

A imposição da economia de mercado sobre o meio ambiente global teve resultados paradigmáticos e práticos. O foco sobre as “escolhas”, para os indivíduos e grupos sociais mais amplos, manifestado através das preferências de mercado, levou ao crescimento das disparidades entre as demandas sociais e políticas e as alocações do mercado. A economia política internacional, sob a égide da ortodoxia neoliberal, significou que “ajustes” econômicos tinham de ser feitos, enquanto havia pouca ou quase nenhuma provisão social. A proteção ambiental e os valores que as culturas “realmente existentes” atribuíam ao meio ambiente, eram formalmente expressos em termos monetários e de mercado. Paradoxalmente, foi esta ênfase sobre os interesses individuais e coletivos face às forças de mercado, que levou à focalização na questão dos “direitos” (especialmente pelas organizações não-governamentais) em sua oposição à globalização.

Este ensaio continuou, então, a examinar os discursos através dos quais a sustentabilidade e os direitos à natureza eram expressos. Sugeriu-se que a sustentabilidade como um conceito “mainstream” mascarou, frequentemente e sob novas vestimentas, os conflitos e agendas do passado. Como Habermas sustentou em “Theory and Practice” (1971) o modo como atualmente entendemos a “natureza” é moldado pelo passado. Os “novos” discursos da sustentabilidade eram geralmente revestidos por uma nova linguagem – deliberação, cidadania, até mesmo os direitos das espécies – mas eles ocultavam, ou marginalizavam, as desigualdades e distinções culturais que direcionavam a agenda “ambiental” a um nível internacional. Consideramos, também, o modo no qual as questões ambientais se tornaram alvo da elaboração das políticas e a forma como foram elaboradas por diferentes atores políticos ou coalizões discursivas.

Um olhar crítico sobre os atuais discursos em torno do conceito de desenvolvimento sustentável sugere que a percepção da necessidade para uma gestão global do meio ambiente deriva, em parte, da suposição de que ela fornece um caminho para corrigir as anomalias da economia e da política comercial. Duas questões específicas foram identificadas como uma evidência dos novos discursos em torno da sustentabilidade e a tentativa de incorporar dentro das preocupações ambientais questões mais amplas como justiça social, governança e equidade.

Por último, foi sugerido que a natureza cada vez mais discursiva da política ambiental internacional e as tentativas de buscar ou reivindicar sua legitimidade, apresentam outros perigos. Ignora-se o fato de que os debates entre natureza e cultura estão sendo materialmente reescritos via genética. As “escalas de justiça”, com as quais as questões ambientais estão agora necessariamente preocupadas, precisam reconhecer que o indivíduo humano (como as outras espécies) é um ser geneticamente modificado e cada vez mais visto como tal. Os sistemas de informação global, guiados pela internet, transformaram os sistemas de comunicação e a ordem simbólica, anunciando uma nova e incerta política “virtual” paralela com a do “mundo real”. É neste sentido que os novos discursos em torno da genética podem ser considerados como discursos da “pós-sustentabilidade”.

Este ensaio iniciou argumentando que o conceito de “desenvolvimento sustentável” tinha sido por algum tempo uma característica inerente de diferentes discursos. O termo “desenvolvimento sustentável” foi um “oxímoro” que induziu a várias interpretações discursivas de peso relacionadas tanto ao “desenvolvimento” quanto à “sustentabilidade”. Somente revelando os pressupostos e conclusões destes discursos poderemos ter a esperança de esclarecer as escolhas e “trade-offs” que cercam a política ambiental e as ciências sociais do meio ambiente. Atualmente, o conceito de “desenvolvimento sustentável” precisa estar ligado às novas realidades materiais, produto de nossa ciência e tecnologia e das mudanças associadas à consciência. Adentramos num mundo no qual a “sustentabilidade” é entendida em termos das novas “realidades” materiais, assim como das posições epistemológicas (Mol; Law, 1994; Touraine, 2003, Urry, 2003). O desafio para o pensamento crítico, portanto, é identificar como as mudanças materiais – no ambiente físico, nas tecnologias de informação e no corpo humano – exigirão que façamos uma revisão a respeito da ideia de desenvolvimento sustentável. Precisamos, em suma, examinar o modo no qual as novas materialidades influenciam as construções culturais que colocamos sobre o meio ambiente. Para atingir a maioridade, o desenvolvimento sustentável terá de rever muitos dos pressupostos que influenciaram sua adolescência.

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** Publicação autorizada pelo Autor e pelo Tradutor

1 Brundtland Commission’s report on the global environment and development.

2 Unesco’s Man and the Biosphere Program (MAB).

3 Oxymoron.

4 Earth Summit.

5 Embellish.

6 The conventional ‘loop’.

7 Complementary medicine.

8 Lifestyle ‘downsizing’.

9 Alternative food networks.

10 ‘Farmers markets’.

11 ‘Critical natural capital’.

12 Flows of income.

13 Human-made capital.

14 Natural capital.

15 Natural capital stock.

16 Common property resources.

17 ‘Social capital’.

18 To ‘down-size’.

19 Underlying patterns.

20 Underlying commitments.

21 Sits uneasily.

22 Esta citação foi extraída de Jürgen Habermas. Que significa socialismo hoje? Revolução recuperadora e necessidade de revisão de esquerda. In: Novos Estudos Nº30 – Julho de 1991, p.49, tradução de Márcio Suzuki. (N.T.)

23 Alteração de imagem. Segundo Antônio Melo, rebranding é “também chamado de reposicionamento (…) é o processo pelo qual um bem ou serviço de uma empresa, com uma determinada marca, é apresentado ao mercado com uma nova identidade” (“O que é o rebranding?”, António Melo). Para saber mais acessar o seguinte blog: http://letratura.blogspot.com (N.T.).

24 Rallying point.

25 World Trade Organisation (WTO).

26 ‘Empowerment’.

27 Human Genome Project.

28 Global Environment Facility.

29 Contending discourses.

30 Embroider.

31 ‘Biodiversity hotspots’.

32 ‘Common-pool resources’.

33 ‘Natural sinks’.

34 Shifting sand.

35 ‘Non-aligned’ status.

36 ‘Wise use’.

37 ‘Wise stewardship’.

38 ‘Sovereign property rights’.

39 Binding agreements.

40 Universal Declaration of Human Responsibilities.

41 Golden anniversary of the U. N. Declaration of Human Rights.

42 Binding covenant.

43 World Charter for Nature (1982).

44 ‘Aid’ lobby.

45 The French Declaration of Rights 1789.

46 The United States’ Declaration of Independency 1776.

47 The Bill of Rights 1791.

48 ‘Win-win’ relationship

49 A potential ‘win-lose’ relationship.

50 Nature engineering: sustainability as the human subject.

51 ‘Soft law’. Segundo Valério de Oliveira Mazzuoli, “pode-se afirmar que na sua moderna acepção ela compreende todas as regras cujo valor normativo é menos constringente que o das normas jurídicas tradicionais, seja porque os instrumentos que as abrigam não detêm o status de ‘norma jurídica’, seja porque os seus dispositivos, ainda que insertos no quadro dos instrumentos vinculantes, não criam obrigações de direito positivo aos Estados, ou não criam senão obrigações pouco constringentes.” Para saber mais acessar: http://www.direitonet.com.br

52 Creutzfeldt-Jakob Disease/Bovine Spongiform Encephalopathy (C.J.D./B.S.E.) ou ‘mad cow disease’.

53 Global warming.

* Artigo originalmente publicado em Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 65-84, jan./jun. 2006 sob o título ‘Sustainable development (1987-2005) – an oxymoron comes of age’. Tradução: Vicente Rosa Alves; Revisão: Júlia Spatuzzi Felmanas.

EcoDebate, 23/02/2012

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