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Artigo

De volta para o futuro. Marx consegue dar conta do século XXI? artigo de Joaquim Toledo Jr.

 

As recentes crises financeiras mundiais e as transformações no comércio, na produção e no mercado de trabalho põem à prova o marxismo, teoria que vicejou nos séculos XIX e XX para ter sua morte (ou crise) decretada na virada do século XXI. Livros aproximam a economia atual da era vitoriana, que inspirou “O Capital”.

A artigo é de Joaquim Toledo Jr. e publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-8-2011.

Em comentáio publicado em 8 de agosto de 1853, o correspondente internacional do “New York Tribune” Karl Marx (1818-83) concluía que o desdobramento necessário do colonialismo britânico no subcontinente indiano seria o cumprimento de duas missões: “uma destrutiva, a outra regenerativa – aniquilar a velha sociedade asiática e estabelecer os fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia”.

À luz das sensibilidades contemporâneas, a afirmação surpreende pela aparente defesa do sistema colonial do século XIX – fundado em relações comerciais impostas pelo poder de intimidação da esquadra inglesa, como o próprio Marx apontou em seus artigos sobre os britânicos na China.

Surpreende também a aparente confiança nos benefícios da presença britânica na Índia: a imposição de unidade política ao subcontinente (“a primeira condição para sua regeneração”), sua inserção no circuito comercial europeu (que o salvaria de sua “posição isolada, o motivo maior de sua estagnação”), a construção de ferrovias, linhas telegráficas e sistemas de irrigação, o estabelecimento de indústrias.

Marx saudava, ainda que sem ilusões, a incubação de um processo de modernização que, embora fosse do interesse dos colonizadores, não deixaria de beneficiar os colonizados.

Apesar de essa regeneração ainda não estar visível em meio às ruínas da sociedade indiana tradicional, para Marx, no entanto, ele “já havia começado”. Um aparente escorregão daquele que é, muito provavelmente, o maior crítico da modernidade capitalista: confiar em benefícios colaterais de uma relação desigual de exploração e apostar na força progressista da “modernização capitalista”.

FILHO REBELDE

Essa ambiguidade é prova de que a obra de Marx é manifestação do que se convencionou chamar de “dialética da modernidade”, da qual o próprio pensador e a tradição que fundou oferecem a teoria mais completa e a crítica mais incisiva.

Filho rebelde do liberalismo e do iluminismo europeus, o marxismo tem oferecido nos últimos 160 anos o instrumental teórico mais sofisticado para a compreensão da natureza contraditória da sociedade moderna.

Como lembra o sociólogo sueco Göran Therborn [“From Marxism to Post-Marxism?”, Verso Books, 208 págs., R$ 37], o marxismo sempre afirmou os traços progressistas do capitalismo, da industrialização e da urbanização, enquanto denunciava a “exploração, a alienação, a ubiquidade da forma mercadoria, a instrumentalização das relações sociais, a falsa ideologia e o imperialismo” inerentes ao processo de modernização.

Repensar o marxismo hoje pressupõe atualizar essa interpretação crítica da sociedade capitalista contemporânea em dois registros, antagônicos mas complementares: reconhecer e ampliar os avanços tecnológicos, culturais, políticos e sociais que acompanham o desenvolvimento econômico capitalista – ou sobrevivem a ele – e seus efeitos destrutivos.

ESPAÇO GLOBAL

Para Therborn, o marxismo precisa dar conta de uma dimensão tradicionalmente marginal no próprio Marx e no marxismo em geral: o espaço do processo (desigual) de acumulação capitalista. Não é de hoje que esse é um espaço global, como já notaram Marx e Engels (1820-95) em seu “Manifesto Comunista” (1848); mas a conectividade global contemporânea é de uma densidade sem precedentes.

O espaço socioeconômico, cultural e geopolítico do século XXI é “radicalmente diferente daquele do século XX”, que foi, acima de tudo, o último século eurocêntrico. O cenário geopolítico do século XXI, por sua vez, é mais aberto e descentralizado, e o poder militar norte-americano, hegemônico desde o desfecho da Segunda Guerra Mundial (1939-45), está hoje em descompasso com a emergência de potências econômicas, na Ásia mas também na América Latina, e com o surgimento de uma “nova rede de Estados nacionais” e a intensificação das relações sul-sul.

CAPITALISMO LIBERAL

Essa reconfiguração, sinal da diminuição das disparidades de influência política e força econômica entre regiões e nações, convive, no entanto, com o aumento global da desigualdade de renda e com a desarticulação da classe trabalhadora, na qual não só a teoria como a prática política marxista haviam depositado suas esperanças. Nesse sentido, o que parece que vivemos nesse começo do século XXI é um retorno ao capitalismo liberal do século XIX.

Para Fredric Jameson, a crise atual pede uma releitura de “O Capital” (1867), a grande obra teórica de Marx. Em seu trabalho mais recente, “Representing ‘Capital’ – A Reading of Volume One” [Verso Books, 176 págs., R$ 55,70], o teórico norte-americano remexe as cinzas desse que é sem dúvida um dos maiores feitos intelectuais de seu século e investiga duas de suas dimensões fundamentais. Uma é formal – entender como Marx consegue oferecer uma representação (teórica, mas que lança mão de recursos literários de figuração, a que Jameson chama “protonarrativos”) da “totalidade do sistema capitalista”.

“O Capital” resultaria de um “tour de force” de composição não muito diferente daquele que animou o projeto da “Comédia Humana” de Honoré de Balzac (1799-1850): representar, com os meios limitados da exposição teórica na forma de um quase “tratado” (e de sua prima-irmã, a narrativa realista), um sistema em que cada uma das partes remete a todas as outras, e na qual qualquer ponto pode ser tomado como início ou como fim. Da mesma forma, o escritor francês procurou retratar, com seu conjunto de romances, a totalidade da complexa sociedade francesa da Restauração.

Segundo a leitura provocativa de Jameson, “O Capital”, como forma, precisa enfrentar o desafio de oferecer uma visão total de processos que aparecem, na experiência social, fragmentados. O argumento progride segundo a resolução parcial de dilemas ou contradições específicas, de forma potencialmente mais clara, o que por sua vez resulta na expansão do próprio objeto – o capital.

DESEMPREGO

A segunda dimensão fundamental de “O Capital” é socioeconômica: para Jameson – e a afirmação, ainda que questionável, não podia ser mais atual – “O Capital” é um livro sobre o desemprego e, mais especificamente, sobre como o desemprego é “estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo”.

A constatação joga a categoria de exploração econômica no centro do palco -em prejuízo, no entanto, da categoria política de dominação: a classe trabalhadora global contemporânea, que em sua precariedade e vulnerabilidade lembra justamente a miséria dos trabalhadores da aurora da revolução industrial, são os “portadores de um novo tipo de miséria histórica e global” que comprovam o caráter estrutural do desemprego e do emprego precário no capitalismo.

Haveria uma possibilidade promissora de mudança teórica que acompanha a reinterpretação dessas “populações perdidas” em termos não de dominação política, mas de exploração econômica. Uma releitura de “O Capital” nesses termos nos força a renovar o compromisso com a “invenção de um novo tipo de política transformadora em escala global”, para além das tentativas, de mitigação dos efeitos perversos do capitalismo.

ESPAÇO CONSTRUÍDO

Para David Harvey, no entanto, em “The Enigma of Capital” [Oxford University Press, 304 págs., R$ 37,90], a crise atual do capitalismo tem raízes mais particulares e concretas, e está associada a um curto-circuito no ciclo de investimento no “espaço construído” iniciado no pós-Guerra. A urbanização, processo que acompanha desde sempre o desenvolvimento capitalista, como atestam o surgimento das cidades industriais inglesas e a reestruturação de Paris pelo barão Haussmann, se tornou, explica Harvey, “um dos grandes negócios sob o capitalismo”.

As conexões entre urbanização, acumulação de capital e formação de crises merecem, segundo o geógrafo britânico, uma análise cuidadosa. Os ganhos (e perdas) que advêm da criação de novos espaços e de novas relações espaciais seriam recorrentemente ignorados como “um dos aspectos fundamentais da reprodução do capitalismo”. Para quem conhece cidades como Pequim ou São Paulo, isso não é novidade.

No centro da crise atual, por diferentes motivos EUA e Espanha viram-se reféns de modelos em muitos aspectos parecidos, centrados na expansão do mercado imobiliário, acompanhada de uma transformação das estruturas administrativas e financeiras que viabilizou um mercado fundado principalmente no endividamento da classe trabalhadora. A aposta, no entanto, na “valorização infinita” dos bens imobiliários e na capacidade de repagamento das dívidas pelas famílias (junto com os malabarismos financeiros possibilitados pela desregulamentação do mercado de crédito) levaram ao efeito dominó que derrubou Bolsas e mercados planeta afora.

O boom imobiliário e a explosão da bolha revelam a tendência real, para Harvey, do capitalismo global desde pelo menos meados da década de 1970: queda de produtividade (e da lucratividade dos investimentos produtivos), acompanhada de um excesso (“surplus”) de capital que precisou ser reinvestido na construção de novos espaços. O esvaziamento das cidades americanas e a taxa de desocupação de imóveis novos na Espanha são o resultado dessa movimentação do capital que, como não raramente acontece, deixa em seu rastro espaços inutilizados ou devastados.

PÚBLICO E PRIVADO

A perspectiva de Therborn também conduz a uma conclusão um pouco menos abstrata e mais realista do que a de Jameson, se não exatamente otimista. A pergunta relevante, nesse caso, nos joga em um campo crucial para as análises marxistas: o jogo entre o poder público e os atores privados, entre Estados e mercado, e diz respeito à capacidade do Estado de desenhar e implementar políticas públicas, sejam elas de coordenação (políticas de desenvolvimento econômico, por exemplo), sejam políticas sociais (como programas de transferência de renda).

As décadas recentes “testemunharam sucessos surpreendentes de políticas estatais”, como o controle da inflação e a criação de organizações interestatais regionais -apesar da persistência do desemprego mesmo em regiões desenvolvidas como a União Europeia, onde as políticas de bem-estar têm sido capazes, pelo menos até esse momento, de proteger os desempregados da pobreza “ao estilo norte-americano”.
Estados nacionais, regiões e cidades diferem, naturalmente, em sua capacidade de implementar políticas públicas, mas, para Therborn, o padrão não aponta para uma diminuição geral dessa capacidade. “Certamente”, conclui, “as políticas de esquerda têm tido mais dificuldade para serem implementadas, mas isso deriva não tanto de falhas dos Estados quanto da paralisia da coordenação política resultante de governos de direita” (“conservadores acreditam que o governo é ineficiente”, diz um ditado corrente, “e se elegem apenas para provar que estão certos”).

POLÍTICA

A leitura de Jameson, totalizante e antipolítica como o marxismo filosófico corre o risco de ser, também perde de vista a multiplicidade de caminhos políticos tomados desde o pós-Guerra. O Estado de bem-estar social europeu e o Estado desenvolvimentista asiático, passando pelos “novos” movimentos sociais (as lutas por direitos civis, o feminismo, o ambientalismo etc.) aos governos latino-americanos de esquerda, indicam que, como afirma o crítico inglês Terry Eagleton, Marx “estava certo” [Why Marx Was Right, Yale University Press, 272 págs., R$ 55,80]. A denúncia e o combate à exploração, à desigualdade e à dominação são centrais hoje como eram no século 19.

Ninguém ficaria mais contente com o “fim” do marxismo do que os próprios marxistas, diz Eagleton. Isso seria sinal de que a tarefa histórica a que se propuseram -a superação da exploração e da desigualdade, ou do capitalismo- estaria cumprida. Ironicamente, no entanto, o marxismo é declarado morto, ou fora de moda, justamente pelos defensores contemporâneos de um capitalismo que rapidamente “reverte a níveis vitorianos de desigualdade.”

A suposta crise do marxismo, no entanto, é antes reflexo das transformações sociais, econômicas e políticas das últimas três ou quatro décadas. Desde o início dos anos 1970, o por assim dizer “centro” do sistema capitalista – Europa e EUA – assistiu à transição de suas economias baseadas em manufatura para uma cultura “pós-industrial” da sociedade do consumo, das novas tecnologias de comunicação e da economia de serviços.

As causas e consequências dessa mudança podem ser atribuídas ao refluxo dos anos de crescimento econômico explosivo do pós-guerra, mas também à escalada do conservadorismo político.

De Margaret Thatcher, no Reino Unido, a Ronald Reagan, nos EUA (e, para pegar um exemplo regional em versão mais explicitamente truculenta, Augusto Pinochet, no Chile), os novos conservadores tocaram o processo de desregulamentação dos mercados, submeteram os movimentos de trabalhadores a ofensivas legais e políticas e criaram um suposto consenso contra políticas sociais estatais (que, no caso dos EUA de Reagan, não deixou de ter contornos raciais e somou-se à reação conservadora contra o movimento dos direitos civis dos anos 1960). O resultado é um ambiente político que, com a destruição das lealdades de classe e o estímulo à fragmentação da sociedade civil, é cada vez mais cínico, administrado e manipulado.

O quadro atual, para Eagleton, faz ainda mais urgente a crítica marxista: em escala global, “o capital é mais concentrado e predatório do que jamais foi” e a classe trabalhadora, longe de ter desaparecido, aumentou em tamanho. Prova disso é o rápido processo de urbanização e industrialização em curso no sul global.

URGÊNCIA

Para Eagleton a crítica marxista, no entanto, não pode resultar nessa forma bem-intencionada de resignação que é o pensamento utópico. O marxismo é atual não apenas como referencial teórico para as ciências humanas ou como crítica filosófica da modernidade -ele sempre carregou consigo as exigências políticas (e morais) mais urgentes para a sociedade contemporânea.

No último século e meio, foi capaz de aglutinar os mais diversos movimentos anticapitalistas, sejam os “tradicionais” movimentos trabalhistas, sejam os novos movimentos sociais. Se as reflexões de Eagleton têm algo de pastoral, ou de evangelho de um crente já cansado demais para abandonar suas certezas, elas reafirmam um conjunto de princípios – racionalidade, autonomia, igualdade – herdados, sem dúvida, da tradição iluminista burguesa, mas radicalizados pela crítica marxista e encampados nas diversas lutas anticapitalistas dos séculos XIX e XX – e deste século XXI.

Se as desigualdades de poder e riqueza, se as guerras imperiais, a intensificação da exploração e a atuação cada vez mais repressiva dos Estados caracterizam o mundo contemporâneo, a crítica marxista – cujos temas fundamentais são exatamente esses – é tanto mais pertinente e urgente.

“O capitalismo”, diz Eagleton, “e não o marxismo, deveria estar fora de moda.” É tempo de abandonarmos o mito de que a “riqueza fabulosa” – material ou imaterial – que o capitalismo é capaz de gerar estará, no final, à disposição de todos.

(Ecodebate, 30/08/2011) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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