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Para além do ‘desenvolvimento sustentável’, artigo de Israel Souza

[Insurgente] O Projeto de Lei Complementar 30/2011, a partir do qual se forja o Novo Código Florestal brasileiro, mobilizou poderosas forças políticas, dividiu opiniões, suscitou violência e resistências. Do lado dos que dirigem criticas ao projeto, destaca-se a atuação do Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, responsável pela elaboração do Manifesto em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, já assinado por quase uma centena de organizações. Algumas delas de grande peso, como CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa), CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil), CTA (Centro dos Trabalhadores da Amazônia), CUT (Central Única dos Trabalhadores) etc.

Trata-se de uma atitude corajosa, a do Comitê. Sobretudo nesse momento em que aqueles que alertam para os riscos do projeto de crescimento econômico do governo brasileiro são tratados como “agentes” a serviço de interesses estrangeiros. Alguns são “demonizados”, até. Mas em nome de quê a resistência? Qual o alicerce? É realmente uma alternativa?

A primeira pergunta é de fácil resposta. A resistência é em nome da defesa das florestas e do “desenvolvimento sustentável”, como denota o nome do comitê. Por isso, consta no Manifesto: “É mais do que hora de o País atualizar sua visão de desenvolvimento para incorporar essa atitude e essa visão sustentável em todas as suas dimensões”. E ainda: “Devemos aproveitar a discussão do Código Florestal para avançar na construção do desenvolvimento sustentável”.

Salta aos olhos o fetiche de que é objeto o “desenvolvimento sustentável”, que, antes de ser “sustentável”, é “desenvolvimento” e é capitalista. Remendo novo em pano velho. Expressão de um sistema expansionista e de uma classe que, por paradoxal que seja, se guia pela perspectiva de curto prazo mas projeta seus interesses no infinito. Assim o “desenvolvimento”, uma das variantes que o capitalismo assumiu no pós-Segunda Guerra. Quando, na década de 1970, as mudanças climáticas e a depredação ambiental do “desenvolvimentismo” mostraram-se insofismáveis, foi posta em marcha uma “operação salvamento”.

Naquele momento, em que aflorava a “consciência ambiental”, a saída foi agregar o “sustentável” ao “desenvolvimento”. Dessa forma, o capitalismo ganhou uma ideologia poderosíssima, passando a operar encoberto pelo manto da “sustentabilidade”. Seguido pelo “sustentável”, o “desenvolvimento” passou a ser encarado não apenas como “ambientalmente correto”, mas como uma (para muitos, a única) força-projeto capaz de salvar a vida no planeta. Como que por força de uma “alquimia dos avessos”, o capital já não era a ameaça, e sim a salvação.

Empunhando a mesma bandeira clorofilada, os países centrais passaram a ditar aos países periféricos, por vias diversas, as políticas a serem adotadas no sentido de preservar a natureza. Lograram, assim, embotar a soberania destes sobre seus territórios e bens naturais. Em paralelo, intensificaram o processo de mercadificação da natureza e de espoliação das populações locais.

De maneira um tanto controversa, o Comitê aqui em foco reproduz e alimenta esse estado de coisas. Cala sobre a natureza intrinsecamente predatória do sistema do capital e trata a tudo como se fosse, basicamente, uma questão de escolha entre “boas” e “más” “opções desenvolvimentistas”. Todavia, é mister dizer que o “desenvolvimento sustentável” não é senão capitalismo. Como tal, ele está voltado para a produção de “valores de troca” e, portanto, para as necessidades do sistema e não das pessoas.

Como se pouco fosse postular a eternização do sistema, o Manifesto aqui citado chega a fazer apologia à competição intercapitalista: “o grande trunfo do Brasil para chegar a ser potência é a sua condição ambiental diferenciada”. Ora, e a competição não é, em larga medida, responsável pelos problemas ambientais que hoje nos ameaçam? Não é por causa dela que os diversos países lançam mão de todos os meios a seu alcance para se afirmar diante dos outros? E não é pelo mesmo motivo que os maiores poluidores do mundo se negam a assinar acordos que limitem a atuação de suas indústrias?

Parece tratar-se, como se vê, de deixar as questões de fundo, as que realmente interessam, intocáveis, impronunciáveis. Toma-se como quadro inelutável o atual sistema econômico. E a natureza é, ainda que de forma sutil, tratada como lenha a ser queimada no forno da locomotiva da acumulação capitalista.

Outra coisa digna de atenção no Manifesto é a crença no poder da ciência e da técnica. Em verdade, essa é a base em que ele se alicerça. Diz-se ali: “Tudo o que aqui foi dito pode ser resumido numa frase: vamos usar, sim, nossos recursos naturais, mas de maneira sustentável. Ou seja, com o conhecimento, os cuidados e as técnicas que evitam sua destruição pura e simples”.

É prova de ingenuidade depositar no “conhecimento” as esperanças de preservação das florestas. Não é preciso ir muito fundo para saber que o papel que ele desempenha em nossa sociedade é mais que ambíguo. Com efeito, alguns chegam mesmo a atribuir ao progresso técnico-científico parte considerável – senão a totalidade – dos problemas ambientais. No entanto, importa ter presente que é temerário atribuir à ciência e à tecnologia, isolando-as do contexto social em que são produzidas e apropriadas, a culpa pelo problema e/ou a responsabilidade pela solução esperada e necessária. Nem Adão nem Cristo. Sozinhas, elas não geraram a queda (problema) e, da mesma maneira, sozinhas elas não serão capazes de trazer a redenção (solução).

É louvável a resistência que, na defesa das florestas, o Comitê opõe ao Novo Código Florestal, congregando em torno de si dezenas de organizações. É lamentável, porém, que tal seja feito em nome do “desenvolvimento sustentável”. Isso atesta, eloquentemente, a fragilidade e a confusão que se abateram sobre as forças populares nos últimos anos.

A manutenção de qualquer forma de “desenvolvimento” (neo, sub, pós, sustentável etc.) é a manutenção do próprio capitalismo. Ou seja: é a manutenção de um sistema que, por natureza, gera desequilíbrio nas mais variadas esferas da vida: política, social, econômica, ecológica etc. A crise que hoje assombra a Europa e os EUA (e o mundo) bem mostra que os senhores do dinheiro preferem sacrificar nações inteiras a abrir mão do lucro. Nada indica que a natureza receberia tratamento diferenciado.

Muitos são os que têm alertado para a imprevisibilidade da crise em curso. O capitalismo parece realmente ferido de morte. Mas ameaça levar-nos a todos de roldão. Esse momento deve ser aproveitado não “para avançar na construção do desenvolvimento sustentável”, mas para buscar alternativas civilizacionais ao sistema econômico vigente. Nesse sentido, é imperativo ir para além do “desenvolvimento sustentável”. Ou, para dizer com István Mészáros, é preciso ir “para além do capital”.

Israel Souza é cientista Social, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental – NUPESDAO.

Artigo originalmente publicado no Blog Insurgente.

Colaboração de Sara Lima para o EcoDebate, 18/08/2011

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Alexa

4 thoughts on “Para além do ‘desenvolvimento sustentável’, artigo de Israel Souza

  • Marcio Fonseca

    Carissimos,

    Nao sei porque, mas cada vez mais eu responsabilizo os “Cientistas Sociais”por toda esta confusao na construcao do significado de cada objeto neste universo onde esta inserida a humanidade “social”, confusao porque nao vejo “como cientistas” usarem de uma estrutura logica minima com a qual todas as Engenharias do conhecimento utilizam para serem bem sucedidas.
    A ausencia dessa Inteligencia estruturada e logica nos enunciados de Ciencia Social, resultam em fantasias totalmente alienadas da realidade de cada objeto deste universo “social”.
    Por que nao criam um curso de “Engenharia Social”, so ela podera conduzir os “Cientistas Socias” a serem uma classe produtiva para a humanidade.
    O Capital ou “capitalismo” nao pode ser considerado o vilao de tudo, quando falta engenharia social ele se torna predador naturalmente.
    O Desenvolvimento sem engenharia social para conduzi-lo vai ser dominado pelo capital predador naturalmente.
    O termo autosustentavel nada mais eh que a conjugacao de recursos naturais, tecnologia e o capital, todos submissos a uma engenharia social.
    A Engenharia Social que nao existe, da lugar aos “Cientistas Sociais alienados de todos os parametros e recursos gerados pelas outras Engenharias do conhecimento humano”, ou seja incompetentes na sua missao de compreender este conhecimento, nao fazem uso dessas ferramentas, imperativo para lideranca das outras ( Tecnologia Financeira, Ambiental, Recursos Naturais, Industrial, Civil, Mecanica, Eletronica, Informatica, etc) .
    Ora, se nao temos uma “Engenharia Social” para conduzir a Engenharia do Conhecimento, o “Predador” anda solto pelo mundo em meio aos seus instintos pelo Lucro a qualquer preco, porisso ainda pagam os salarios dos “Cientista Social” que acabam sendo seus grandes aliados.
    Solucao ?? Engenharia Social
    Como ?? Cientistas Sociais devem deixar as expressoes eruditas e intangiveis e estudar “Engenharia Social” e trabalhar liderando todo movimento da “Engenharia do Conhecimento”.
    Proposta ?? Parametros historicos analisados por uma simples Rede Neural Artificial ja quebraria muitos paradigmas dos cientistas sociais.
    Lamento mas eh a verdade sobre esta confusao de intencoes e de honestidade de propositos.
    Aguardo ansiosamente por uma resposta honesta de todos.

  • O desenvolvimento sustentával é tão suspeito quanto suspeito é o próprio sistema capitalista, mas este é também superpoderoso, e é inquestionável que nos deixará boquiabertos assistindo-o a atingir seus objetivos, custe o que custar, inclusive a destruição total.

  • Falar de desenvolvimento sustentável é pura farsa. Se quizermos defender o Meio Ambiente (recursos naturais, biodiversidade, clima, etc.), falemos de contenção. Contenção de consumo, o que implica redução do número de consumidores. Mas, ao sistema capitalista, isso é impossível.

  • Casa muito bem com este bom texto sobre o Desenvolvimento Sustentável (DS) e Capitalismo as ideias muito bem desenvolvidas por Serge Latouche. Latouche defende uma nova concepção de vivência humana, social, economica e ambiental, denominada Decrescimento. O termo à princípio assusta, mas se vê realmente que se não for a única saída ao impasse posto à humanidade, ao menos é uma alternativa muito mais acertada que o Desenvolvimento Sustentável. No Decrescimento, as questões ignoradas pelo DS são enfrentadas e podem trazer a todos nós a necessária transição paradigmática para uma nova sociedade calcada nos homens, e não mais na economia. Talvez a noção que Latouche traz do Decrescimento tenha uma grande afinidade com a concepção de DS defendida por Ignacy Sachs, a qual defendo também, que é a do 3P (people, planet e profit), mas até aí, o DS abraçado até o momento ignora o dois primeiros “P”, apenas fazendo uma tosca maquiagem ambiental (marketing verde) e “limpando” sua consciência empresarial por meio de pontuais e incipientes atitudes sociais (responsabilidade social).

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