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A Ciência tem ficado fora do debate do Código Florestal no Brasil. Entrevista com Antonio Donato Nobre

A recente pressão para alterar o código florestal no Brasil tem emergido como uma das questões políticas mais controversas do país, colocando o agronegócio contra ambientalistas que tentam preservar a floresta amazônica. Embora a lei tenha sido muitas vezes ignorada, historicamente o código florestal exigiu dos proprietários rurais a manutenção de uma proporção substancial de cobertura florestal natural em suas propriedades.

Agora, um poderoso bloco “ruralista”, composto por grandes agricultores e pecuaristas, argumenta que o código florestal precisa ser relaxado para que o Brasil possa continuar seu vertiginoso crescimento como uma superpotência agroindustrial. Estes ruralistas argumentam que, porque o código florestal tem sido tão amplamente desrespeitado (mais de 90 por cento dos proprietários de terras na Amazônia estão operando ilegalmente), um grande componente da economia brasileira está efetivamente na condição “ilegal”, minando a governança e os esforços para melhorar a gestão da terra.

Porém, ambientalistas dizem que as mudanças propostas, que reduzem as exigências de cobertura florestal para áreas até 400 ha e concedem anistia para o desmatamento passado, poderia minar os progressos recentes na redução do desmatamento e ferir compromissos internacionais do Brasil na área climática. A mídia tem vinculado um aumento recente da destruição na Amazônia à expectativa dos fazendeiros de eventual anistia.

Embora ambos os lados afirmem estar baseando suas recomendações na “melhor ciência” disponível, os cientistas brasileiros dizem que não tiveram muita voz no debate. Na verdade, diz Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, “ao longo da gestação das revisões na lei florestal o Congresso não convidou nem comissionou uma contribuição coordenada e séria da comunidade científica.”

Nobre diz que a falta de consideração da ciência no debate do código florestal poderá demonstrar-se perigosa para a agricultura brasileira, que é fortemente dependente de serviços gerados pela vasta floresta Amazônica. Caso o novo código florestal sancione o desmatamento em grande escala, como alguns temem venha a ocorrer, os agricultores e pecuaristas do Brasil podem estar minando o próprio sistema ecológico que sustenta a sua indústria.

“A análise científica apoia a noção de que a ativa conservação de áreas naturais dentro das propriedades rurais faz completo sentido agronômico, econômico e ecológico”, disse Nobre ao mongabay.com.

Nobre acrescenta que uma abordagem científica para a reforma do código florestal poderia oferecer uma maneira de avançar na melhoria da sustentabilidade a longo prazo do crescimento econômico do Brasil.

“Com boa aplicação das modernas ferramentas tecnológicas, o novo Código Florestal poderia tornar-se uma fonte de estímulo para o aumento responsável e sustentável da produção agrícola, enquanto, ao mesmo tempo permitiria a reabilitação ecológica e econômica de grandes áreas de terras degradadas em todo o Brasil, “, disse. “Será completamente indesculpável se todos estes esclarecedores e libertadores conhecimentos e tecnologias forem postos de lado por uma disputa política e ideológica já antiquada.”

Na primeira parte de uma entrevista com duas partes ao mongabay.com em agosto 2011, Nobre falou sobre a necessidade de integrar a análise científica em qualquer revisão do código florestal do Brasil.

A entrevista é de Rhett Butler, publicada por Mongabay.com, e traduzida pelo blog Verdade no Brasil, 09-08-2011.

Eis a entrevista.

Qual é sua formação e que o levou a perseguir sua área de trabalho?

Sou engenheiro agrônomo por formação. Trabalhei com pesquisa em solos e agricultura por 12 anos no início da minha carreira. No entanto, quando me dei conta de que a agricultura convencional trata o complexo sistema de suporte ambiental do qual depende como um recurso descartável, senti o desejo de buscar mais e mais as ciências fundamentais. Primeiro aprofundando meus conhecimentos em biologia tropical (Mestrado); depois ampliando para as Ciências da Terra (PhD) e recentemente desenvolvendo modelagem computacional de terrenos na paisagem, um assunto que me aproximou do debate sobre o código florestal.

Você e outros cientistas brasileiros vêm acompanhando de perto o debate do código florestal. Quais são seus pensamentos sobre as revisões propostas? Como é que as alterações propostas impactam a Amazônia?

A revisão política em curso do código florestal tem poucos méritos e muitos defeitos.

Em um país onde mais de 80 por cento da população vive em cidades, as audiências para o projeto de lei que altera o código florestal criaram um palco onde os agricultores divulgaram suas aspirações e dificuldades com a lei. Eles criticaram o código florestal quanto a sua aplicabilidade e restrições exageradas sobre como propriedades privadas devem alocar usos da terra. Porque o código florestal é considerado rigoroso, muitas vezes isso tem sido utilizado pelos fazendeiros como desculpa para não cumprir a lei. Curiosamente, o mesmo rigor considerado excessivo por parte dos fazendeiros é usado como escudo deflector contra críticas internacionais ao desmatamento. Na realidade, ao longo do tempo a lei florestal brasileira não tem sido muito eficaz em interromper o desmatamento, talvez justamente porque é pouco respeitada e pouco aplicada.

Mas esta situação começou a mudar. A degradação ambiental no Brasil não é nada nova, mas nas últimas décadas, a massiva destruição da rica biodiversidade em ecossistemas naturais atingiu taxas alarmantes. Piorando a percepção de perda, o Brasil tem sido atingido por uma série de catástrofes, como inundações e deslizamentos de terra. Essa combinação provocou um forte clamor social e demandas para a ação contra a destruição da floresta.

A contenção do desmatamento veio de várias formas, com os bancos cortando o suprimento de dinheiro para fazendas em contravenção; com a aplicação policial da lei e com a imposição de pesadas multas; com o Ministério Público processando criminalmente os infratores do código florestal; e com os consumidores rejeitando produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas ilegalmente. Todas essas ações expuseram o velho problema do desrespeito à lei, tornando-se claro que uma grande proporção dos agricultores não havia cumprido as regras dentro de suas propriedades relativas a áreas de proteção obrigatória de florestas. Para complicar as coisas, tornou-se muito difícil separar o joio do trigo, já que nem todos os agricultores são culpados de delito intencional. Algumas fazendas em áreas de colonização antiga tinham áreas desmatadas antes mesmo da primeira lei entrar em vigor, em 1934. O aumento da pressão teve o efeito de agravar a luta entre as organizações de proprietários rurais e os movimentos ambientais. Como os primeiros tentam alterar a legislação florestal em seu favor, com a concessão de anistia para ofensas ambientais passadas, os últimos seguram posição, tentando blindar a lei vigente e manter as restrições sobre o desmatamento duramente conquistadas.

Em resumo, a ação para o desenvolvimento rural (leia-se expansão das áreas agrícolas sobre ecossistemas naturais) desencadeou a reação do governo e dos grupos ambientalistas (leia-se reforço e aplicação das leis ambientais), o que desencadeou a reação atual de alterar a própria lei. Mesmo antes de aprovada na Câmara dos Deputados, a anistia proposta para desmatadores, ou o prêmio da impunidade como é chamado no Brasil, já causou preocupação. Tem sido sugerido que o perdão para infratores incluído no novo projeto de lei é a causa do recente agravamento no desmatamento, bem como no aumento da violência criminal no campo. Se apenas uma promessa de anistia pode desencadear um surto de desmatamento e violência, que efeitos destrutivos terá o permissivo projeto de lei florestal se este torna-se lei?

A senadora Kátia Abreu fez campanha no ano passado dizendo que a ciência poderia salvar o código florestal. Você, como cientista, acredita que a pesquisa científica foi devidamente incorporada na revisão prevista do Código Florestal?

Ao longo da gestação das revisões na lei florestal o Congresso não convidou, nem comissionou uma contribuição coordenada e séria da comunidade científica. No entanto, por sua própria iniciativa, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências, as duas mais respeitáveis ​​e representativas organizações científicas do Brasil, reuniram um grupo de trabalho e patrocinaram uma profunda análise científica do código florestal, tanto para a lei vigente, quanto para as alterações propostas à lei, agora sob o escrutínio do Senado. O grupo de trabalho foi composto por respeitados cientistas, com cerca de metade vindo da EMBRAPA, a potência da pesquisa agrícola responsável por grande parte do sucesso da agricultura brasileira. Este grupo de trabalho não foi pago para produzir o estudo e as associações científicas que patrocinaram o grupo não tinham ligações com ONGs ambientalistas, tampouco o tinham com organizações de fazendeiros. O grupo se esforçou para manter-se independente e todos os membros se comprometeram a manter rigorosa objetividade científica. Em abril do ano passado um livro com as conclusões da análise (pdf aqui, perguntas frequentes aqui) foi apresentado à sociedade brasileira, ao Congresso e a vários ministros do governo federal. O livro – escrito ao longo de 10 meses – consultou mais de 300 artigos científicos relevantes e citou 170, assim que uma parcela significativa da ciência disponível, mais sólida e recente, foi criticamente revisada e apresentada.

recomendações dos cientistas estão sendo consideradas pelo Congresso, em sua ponderações sobre o Código Florestal?

Apesar de sua amplamente reconhecida ausência de ciência e até mesmo de conter algumas violações demonstradas da lógica científica, a nova lei florestal está sendo empurrada politicamente pelo Congresso. Dado que ambas as versões anteriores da lei florestal, de 1934 e 1965, foram construídas em cima do melhor conhecimento científico disponível em suas épocas, omitir a ciência em 2011 torna-se uma situação bastante inexplicável. O mais irônico é que o Brasil vende uma imagem de competência científica e tecnológica na raiz do sucesso de seu agronegócio. Uma pesquisa de opinião tomada há algumas semanas revelou 77 por cento de apoio da população à participação de cientistas no desenvolvimento de um novo Código Florestal. No entanto, apesar do interesse manifesto de vários senadores, o Senado, depois de ter apontado três outras comissões para revisar o projeto de lei (agricultura, meio ambiente e constituição e justiça), até o final de julho ainda não havia destacado sua Comissão de Ciência e Tecnologia para a tarefa.

Recentemente, mais de 8.000 membros da comunidade científica, reunidos em seu congresso anual, enviaram fortes moções ao Senado requisitando que a ciência seja considerada na revisão do projeto de lei. As próximas semanas dirão se os nossos legisladores vão ouvir o chamado da ciência.

Mas mesmo supondo que os senadores abram um espaço sério para um debate esclarecido, ainda existem alguns perigos à espreita. Mesmo se o texto da lei melhorar no Senado, como pode bem acontecer, o projeto terá de ser aprovado novamente pela Câmara dos Deputados, onde foi originalmente criado, e onde pode simplesmente voltar direto à sua forma original. A última linha de defesa seria um potencial veto da Presidente, o qual pode, no entanto, ser derrubado pelo Congresso. Se isso acontecer, só o Supremo Tribunal Federal poderá intervir, já que o texto atual do projeto de lei, de acordo com alguns dos melhores especialistas em direito, apresenta graves violações de preceitos constitucionais. Apegar-se ao texto como está garante um percurso judicial tormentoso pela frente, e também irá manter a opinião pública maciçamente contra o agronegócio. Os agricultores em geral não merecem a má fama que a conturbada alteração do código florestal está lhes granjeando.

Existiria uma oportunidade para a reconciliação entre o lobby agrícola e os ambientalistas? O Brasil poderia aumentar a produtividade em terras degradadas para cumprir suas metas de produção sem incorrer em mais desmatamento de suas florestas?

​ ​O drama nesse embate é que a realidade científica não mostra qualquer necessidade de conflito. O grupo de trabalho encontrou, com base em centenas de estudos, que há uma sinergia significativa esperando para ser explorada entre a produção agrícola e conservação ambiental dentro de propriedades privadas. Um poderoso exemplo vem da Georgia, nos Estados Unidos, onde proprietários rurais, empresas do agronegócio e do setor florestal se uniram com ONGs ambientalistas para estimar o valor econômico dos serviços ambientais prestados à áreas urbanas por remanescentes de florestas naturais dentro de fazendas. O montante calculado, US$ 37 bilhões por ano, representa apenas métricas bem estabelecidas de exportação de serviços ambientais, como a limpeza da água e a prevenção de assoreamento nos rios e lagos. Se os consumidores urbanos pagassem parte de sua conta de água aos agricultores, de modo a compensar os serviços ambientais recebidos, esta seria uma situação onde todos ganhariam. O custo da água limpa que flui de uma captação com florestas bem estabelecidas foi demonstrado ser um centésimo daquele custo incorrido para limpar poluentes e sedimentos de uma fonte contaminada. Então, pagar aos agricultores por estes serviços seria muito mais econômico e saudável do que converter esgoto em água potável. O estudo do grupo de trabalho encontrou muitas vantagens, como a da água limpa, na conservação de florestas em terras privadas. No interesse direto de agricultores e da produção há muitos exemplos de florestas gerando serviços benéficos incluindo o apoio a polinizadores silvestres e predadores naturais de pragas agrícolas. Florestas de proteção não são, portanto, obstrução para a produção; muito pelo contrário, elas contribuem para a produtividade e reduzem a necessidade de agrotóxicos custosos. O estudo constatou ainda que o código florestal não protege áreas excessivas dentro das propriedades e que o Brasil tem grandes áreas para a expansão agrícola se as tecnologias disponíveis para rendimentos mais elevados forem aplicadas e as terras degradadas forem recuperadas. É completamente viável multiplicar a produção agrícola, mantendo os ecossistemas naturais e até mesmo recuperando florestas degradadas nas propriedades. Em síntese, a análise científica apoia a noção de que a conservação ativa de áreas naturais dentro das propriedades rurais faz completo sentido agronômico, econômico e ecológico.

Mas as boas notícias da ciência não param por aí. Como um resultado imprevisto na revisão científica do código florestal, o Grupo de Trabalho concluiu que a antiga lei poderia se beneficiar de uma atualização tecnológica. Em 1965 não haviam satélites de recursos terrestres, como temos hoje, enviando massas de dados observados remotamente da superfície; naquela época o computador mais poderoso tinha uma fração da capacidade que encontramos em qualquer telefone celular hoje em dia. Novos modelos virtuais da paisagem, construídos a partir de dados de imagem de radar ou laser, foram demonstrados como ferramentas poderosas na indicação dos melhores e mais produtivos solos para a agricultura, bem como na determinação de quais terrenos são mais adequados para a conservação e a produção de serviços ambientais. Essas tecnologias se aplicadas vão permitir o surgimento de uma nova era de uso inteligente e orgânico da paisagem. Portanto, nem o código florestal, com a sua prescrições geométricas fixas para as faixas de proteção, nem a nova lei florestal proposta, que já nasce velha e pobre em ciência, são as soluções para uma era onde a otimização de recursos torna-se crucial. Além do óbvio tesouro da biodiversidade, o que está em jogo é o sucesso contínuo e sustentável da potência brasileira na agricultura, que precisa converter sua cultura histórica de desperdício dos recursos naturais em aplicação experta da inovação e da tecnologia na obtenção de sustentabilidade.

Com base nas evidências abundantes de tantas soluções brilhantes disponíveis, capazes de extinguir o falso dilema entre produção agrícola e conservação, a comunidade científica brasileira procura legitimamente desempenhar o papel de uma terceira via sobre o assunto, independente e objetiva. Há um amplo e lógico caminho à frente, que poderia resolver o conflito e, melhor ainda, criar nova riqueza sustentável. Os fatos científicos são muito claros, com boa aplicação das modernas ferramentas tecnológicas, o novo Código Florestal poderia tornar-se uma fonte de estímulo para o aumento responsável e sustentável da produção agrícola, enquanto, ao mesmo tempo permitiria a reabilitação ecológica e econômica de grandes áreas de terras degradadas em todo o Brasil. Será completamente indesculpável se todos estes esclarecedores e libertadores conhecimentos e tecnologias forem postos de lado por uma disputa política e ideológica já antiquada.

Bibliografia:

MOORE, R.; WILLIAMS, T.; RODRIGUEZ, E.; HEPINSTALL-CYMMERMAN, J. Quantifying the value of non-timber ecosystem services from Georgia’s private forests. Final Report submitted to the Georgia Forestry Foundation, 2011. 44 p. (PDF)

SILVA, J.A.A.; NOBRE, A.D.; MANZATTO, C.V.; JOLY, C.A.; RODRIGUES, R.R.; SKORUPA, L.A.; NOBRE, C.A.; AHRENS, S.; MAY, P.H.; SÁ, T.D.A. ; CUNHA, M.C.; RECH FILHO, E.L. O Código Florestal e a Ciência: contribuições para o diálogo. ISBN 978-85-86957-16-1. São Paulo: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC; Academia Brasileira de Ciências, ABC. 2011. 124 p. (PDF)

(Ecodebate, 12/08/2011) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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