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Tunísia: A revolução dos Jasmins contra as autocracias. Entrevista com Sami Naïr

A chamada Revolução dos Jasmins, que explodiu na Tunísia há algumas semanas, pegou fogo como um rastro de pólvora em vários países árabes, e não dos menores. Iêmen e sobretudo o Egito vivem hoje revoltas que têm traços revolucionários. Trata-se de um fenômeno tanto mais único quanto o discurso ocidental sempre tratou os países árabes como incapazes de assumir coletivamente um destino democrático. Tunísia, Argélia, Mauritânia, Iêmen e Egito não apenas desmentem esses argumentos, mas que fazem tremer pela raiz as ditaduras que governam há décadas com mão de ferro e privilégios exorbitantes.

Alguns analistas asseguram hoje que já não se trata de saber que regime cairá primeiro, mas qual se salvará desta onda de aspirações democráticas cujos protagonistas são as classes médias, os setores menos favorecidos e os jovens, que se organizam através da internet e das redes sociais. O mais moderno do mundo irrompe como instrumento de comunicação e protesto contra poderes dinossáuricos. Os protestos revelam também a ruptura sem remédio entre autocracias longevas, respaldadas historicamente pelo Ocidente, e a legitimidade popular.

O sociólogo e filósofo Sami Naïr, professor de Ciências Políticas na Universidade de Paris VIII e presidente do Instituto Magreb-Europa da mesma Universidade, analisa nesta entrevista a originalidade e os estímulos desta revolução árabe. Autor de ensaios e análises brilhantes sobre política internacional, Naïr assinala como primeira contribuição da revolta o fato central de que o medo mudou de campo. É o poder que enfrenta hoje um povo que perdeu o medo.

A reportagem e a entrevista são de Eduardo Febbro e estão publicadas no jornal argentino Página/12, 28-01-2011. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

A Revolução dos Jasmins irrompeu na Tunísia com a imolação de um jovem e depois se estendeu a outros países. Agora, a revolta chega ao Egito e ao Iêmen. Você dizia em uma análise que, assim como ocorreu na América Latina primeiro e depois nos países do leste europeu, certa parte do mundo árabe desperta na história.

Sempre pensei que, pelo menos no século XX, o laboratório dos povos foi a América Latina. A Revolução Russa não se pode entender sem a Revolução Mexicana. Os latino-americanos inventaram todas as formas de luta possíveis e imagináveis. Na América Latina se experimentaram as guerrilhas, as lutas políticas, os despotismos, as ditaduras. A partir dos anos 1980 e 1990, em quase todos os países da América Latina caíram as ditaduras. Esse movimento antiditatorial se desenvolveu em outros lugares do mundo, por exemplo, nos países do leste europeu com a queda do Muro de Berlim. Agora, esse movimento de fundo que se iniciou na América Latina está tocando todos os países da costa árabe do Mediterrâneo, e inclusive além, na península arábica, por exemplo, no Iêmen. O problema está em que, contrariamente ao que aconteceu na América Latina, o movimento que explodiu nestes países árabes não tem direção, nem organização, nem programa. É um movimento totalmente espontâneo que consta de duas características fundamentais: em primeiro lugar, trata-se de um movimento que destrói definitivamente a ideia de que estas sociedades estão condenadas a viver com o perigo extremista, o perigo fundamentalista por um lado e, por outro, com a ditadura como suposta garantia necessária contra esse perigo fundamentalista. Agora se está demonstrando que o problema é muito mais complexo e que estes países não querem experimentar nem o islamismo nem o integrismo, mas que, fundamentalmente, desejam a democracia. O segundo elemento importante, e que pode recordar o que aconteceu na América Latina, reside em que se trata de uma aliança circunstancial entre as camadas mais pobres, humildes, sem verdadeira inserção social, e as camadas médias empobrecidas nestes últimos anos. Na última década todos estes países sofreram um empobrecimento muito importante das classes médias e agora há uma fusão entre estas camadas médias e o fundo popular, as classes pobres totalmente excluídas do processo de integração dentro da sociedade.

Se estas revoltas chegarem ao final nestas autocracias árabes estaríamos vivendo uma autêntica revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa concepção dos sistemas políticos mundiais. Sempre se acreditou que os países árabes eram incapazes de assumir uma forma de democracia popular e participativa.

Isso corresponde a um discurso muito depreciativo construído pelos países ocidentais, pelo capitalismo internacional cuja sede é a OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico), os Estados Unidos e a Comissão Europeia. Estes atores querem que nos países árabes haja estabilidade e para isso necessitam regimes fortes, ditatoriais, porque o que lhes importa são duas coisas: em primeiro lugar, que essa gente não emigre e, em segundo, que as fontes de recursos petrolíferos estejam garantidas. Por isso desenvolveram esse discurso em sintonia total com os ditadores, que sempre repetiram: “nossos povos sofrem de maturidade política e cultural e, por conseguinte, não podem aceder à democracia”. Sabemos que tudo isso é falso, que as aspirações democráticas são muito fortes nesta região do mundo. Creio que o que está acontecendo demonstra isso de maneira muito clara. Cada situação é específica. Não se pode misturar o que aconteceu na Tunísia, um país que tem uma tradição laica e de elites ilustradas e formadas, muito fortes, com camadas sociais muito coesas, com a situação do Iêmen, onde impera um sistema tribal baseado na dominação despótica de um clã. A única coisa similar é o grau de dominação e a forma de controle, apoiadas na polícia ou no exército.

A explosão social no Egito tem matizes inéditos. No Egito o Exército desempenha um papel central, onde o presidente, Hosni Mubarak, pertence a ele e onde quem é chamado a substituí-lo, ou seja, seu filho, Gamal Mubarak, é um liberal que não é bem visto pelas Forças Armadas.

O caso egípcio é muito particular, em primeiro lugar porque o Egito é um velho Estado de direito, provavelmente seja o Estado de direito mais antigo do mundo. O Estado de direito moderno foi constituído por Mohamed Ali entre final do século XVIII e começo do século XIX, ou seja, antes que nós na Europa soubéssemos o que era. Mas esse Estado foi destroçado pelos ingleses no século XIX. Em todo o caso, o filho de Mubarak, Gamal, não representa a democracia. Gamal Mubarak é o elemento chave da nomenclatura que domina o país em sua vertente mais liberal. A questão do liberalismo não pode ser concebida unicamente como liberalismo econômico, salvo quando se trata de comparar o Egito com a China. Na China temos um despotismo político neocomunista e um liberalismo selvagem que encarna na realidade a dominação de uma elite burocrática. No Egito é diferente. É impossível que se possa organizar um sistema liberal sem democratização da sociedade. É indispensável evitar que o Egito se transforme em uma república hereditária onde o pai ditador nomeia seu filho futuro ditador liberal. As pessoas estão procurando outra coisa. As pessoas querem a democratização da sociedade para que a sociedade civil possa escolher com um debate democrático transparente. O filho de Mubarak é como seu pai. As pessoas não o querem porque já têm o exemplo da Síria, onde o filho substituiu o pai e acabou instaurando um sistema mais ou menos liberal, mas com a mesma ditadura.

Você assinala que o que começou a acontecer na Tunísia e depois se estendeu a outros países é que o costume do medo mudou de campo. Acabou o medo.

Isso foi muito importante neste processo. Eu estava na Tunísia quando tudo isto começou e vi como o medo mudava de campo. A revolta tunisiana explodiu na localidade de Sidi Bouzid com a imolação do jovem Mohamed Bouazizi. A partir dali tudo se transformou. Até esse momento, o regime tunisiano estava baseado no temor. Mas a imolação de Mohamed Bouazizi mudou a situação, sobretudo pela atitude do presidente de então, Ben Ali, que foi para ver a família da vítima. As pessoas se deram conta ali de que quem tinha medo era o poder. O mesmo está acontecendo no Egito. O mais importante nestas revoltas é a vitória do imaginário que significa que transformaram a relação com o poder: agora são os ditadores que devem temer os seus povos. Isso não significa que amanhã vamos ter uma revolução em todas as partes, não. O movimento pode avançar, pode ser atrasado, não sabemos o que vai acontecer. Mas o que sabemos, e isso foi integrado pela população, é que os poderes podem ser mudados quando os povos desejam mudar suas condições de vida e ousam enfrentar o poder para escolher seu próprio destino. Por isso penso que estamos diante de uma onda que vai se desenvolver. Estamos na mesma história que os povos da América Latina abriram nos anos 1980. Depois foram seguidos pelos povos do leste europeu nos anos 1990 e agora vêm estes povos. Não podemos ocultar que o que está acontecendo é também uma consequência da globalização. A globalização é má socialmente, mas tem algo bom, que é a globalização dos valores democráticos nas sociedades civis.

(Ecodebate, 01/02/2011) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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