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Brasil tem condições de criar novo caminho de desenvolvimento. Entrevista com Heitor Costa

Não se pode aceitar a irresponsabilidade dos governantes de quererem fazer crer a população que o crescimento econômico, a qualquer custo, é uma panaceia para todos os males do país”. A afirmação é do físico Heitor Scalambrini Costa na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Ele afirma, ainda, que o Brasil está classificado como um dos maiores emissores mundiais de CO2, “e o planejamento energético governamental até 2030 aponta na contramão do combate e a mitigação das mudanças climáticas, pois privilegia a expansão dos combustíveis fósseis na matriz energética”. E continua: “Creio que pensar estratégias de desenvolvimento social, econômico e ambiental para o país implicaria em resistir aos estímulos de emular modelos econômicos que provocaram a atual crise ambiental. O Brasil tem todas as condições e pode provar ao mundo que um novo caminho de desenvolvimento é possível”. Em seu ponto de vista, “o principal desafio é o de superar modelos econômicos que provocaram a atual crise ambiental”, e o crescimento econômico praticado hoje no Brasil utiliza conceitos do século passado, como o de “crescimento a qualquer custo”, por imposição das forças econômicas, em detrimento dos aspectos sociais e ambientais. Costa acentua que o novo governo federal deve rever as escolhas energéticas atuais e “abraçar as fontes renováveis e o desmatamento zero”.

Heitor Scalambrini Costa, professor associado da Universidade Federal de Pernambuco, é graduado em Física pelo Instituto de Física Gleb Wattaghin da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, mestre em Energia Solar, pelo Departamento de Energia Nuclear da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e doutor em Energética, pelo Commissariat à I’Energie Atomique – CEA, Centre d’Estudes de Cadarache et Laboratorie de Photoelectricité Faculte Saint-Jerôme/Aix-Marseille III, França. Atualmente, coordena os projetos da ONG Centro de Estudos e Projetos Naper Solar, o Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis – Naper, e o Sendes- Soluções em Energia e Design da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como as estratégias do novo governo presidencial devem ser pensadas a partir da questão ambiental?

Heitor Costa – Nosso país está no caminho da transição entre uma economia “emergente” e uma economia “industrializada”. Não devemos basear o crescimento do país em modelos que não serviram bem ao mundo. Considerando a crise do aquecimento global, podemos afirmar que apenas os países que incluírem a preocupação ambiental em seus planos de desenvolvimento econômico, tecnológico e social terão sucesso no futuro. Daí não se pode aceitar a irresponsabilidade dos governantes de quererem fazer crer a população que o crescimento econômico, a qualquer custo, é uma panaceia para todos os males do país. Pobreza? Basta fazer a economia crescer, ou seja, incrementar a produção (consumo de energia) de bens e serviços e estimular os gastos dos consumidores, e a riqueza se espalhará de cima para baixo na sociedade. Contra o desemprego é só intensificar a demanda por bens e serviços, ofertando crédito e estimulando investimentos. Ora, as coisas não funcionam bem assim.

Ao analisar as diretrizes dos planos governamentais descritas no PAC 1 e no PAC 2 (Plano de Aceleração do Crescimento, nos Planos Decenais de Expansão de Energia Elétrica e no Plano de Energia 2030), constata-se o viés conservador por investir em grandes centrais hidrelétricas, combustíveis fósseis e energia nuclear para dar o suporte energético necessário ao crescimento do país.
A base energética do atual modelo de desenvolvimento é suportada no tripé termelétricas a combustíveis fósseis (óleo combustível, diesel e gás natural), construção de mega hidrelétricas e eletricidade nuclear. Não podemos, portanto, considerar que estamos caminhando em um processo de desenvolvimento sustentável no Brasil.

“Nosso país está no caminho da transição
entre uma economia ‘emergente’
e uma economia ‘industrializada’”

Lamentavelmente, estamos ranqueados entre os maiores emissores mundiais de CO2, e o planejamento energético governamental até 2030 aponta na contramão do combate e a mitigação das mudanças climáticas, pois privilegia a expansão dos combustíveis fósseis na matriz energética (emissores de gases de efeito estufa).

A sustentabilidade no desenvolvimento do país implicaria necessariamente no uso crescente das fontes renováveis de energia na matriz energética, como a energia eólica, a energia solar (térmica e fotovoltaica), a utilização da biomassa para combustíveis líquidos e em termelétricas, e o uso da energia dos oceanos. Sem falar no estabelecimento e fortalecimento de programas de conservação e eficientização no uso e na produção energética. Creio que pensar estratégias de desenvolvimento social, econômico e ambiental para o país implicaria em resistir aos estímulos a de emular modelos econômicos que provocaram a atual crise ambiental. O Brasil tem todas as condições e pode provar ao mundo que um novo caminho de desenvolvimento é possível.

Desenvolvimento sustentável

Ações de desenvolvimento local seriam importantes para alavancar o desenvolvimento sustentável, e o governo precisaria estar atento a isso, oferecendo subsídios para empoderar os cidadãos e as cidadãs, a fim de que o desenvolvimento aconteça descentralizado a partir de suas potencialidades territoriais e riquezas locais.

Apesar do tema do desenvolvimento sustentável ser urgente, não há uma única resposta ou ação que irá convencer a todos de sua importância. Portanto, seria necessário desenvolver um conjunto de atividades, pensando nos problemas de aumento populacional e formas de consumo e estilo de vida da população. Nas décadas passadas, as superpotências eram estabelecidas por corridas com o fim de acumular armas e pelas viagens espaciais. Dado o perigo que o planeta enfrenta como resultado das mudanças climáticas, a corrida hoje é no sentido de tomadas de decisões que levem em conta a indissociabilidade dos aspectos econômicos, sociais e ambientais.

IHU On-Line – Quais os desafios para o Brasil avançar no âmbito ecológico e energético?

Heitor Costa – O principal desafio é o de superar modelos econômicos que provocaram a atual crise ambiental. Como já disse e repito, o Brasil tem todas as condições e pode provar ao mundo que um novo caminho de desenvolvimento é possível. Não se pode falar em desenvolvimento sustentado apenas do ponto de vista do crescimento econômico, sem a respectiva preocupação com a proteção ambiental e com a igualdade social.

Estamos praticando hoje no país um crescimento econômico visível em vários setores, utilizando conceitos do século XX, o de “crescimento a qualquer custo”, por imposição das forças econômicas, em detrimento dos aspectos sociais e ambientais. Verifica-se que a exploração econômica, como se dá atualmente, não tem favorecido as populações mais fragilizadas, que não têm sequer o direito de decidir seus próprios destinos, principalmente, as comunidades rurais, indígenas, ribeirinhas e quilombolas, que são as mais afetadas nos conflitos ambientais e pagam um custo social muito alto.

Devemos construir uma nova política que resgate o interesse público, e que acabe com a falta de transparência, democratizando as decisões sobre as escolhas das opções energéticas para o país. As fontes renováveis de energia representam, de um lado, uma alternativa para a mitigação da mudança do clima global. De outro, por serem dependentes das condições climáticas, estão potencialmente sujeitas a impactos do próprio fenômeno que pretendem evitar.

“Devemos construir uma nova política que resgate o interesse público,
e que acabe com a falta de transparência,
democratizando as decisões sobre as escolhas
as opções energéticas para o país”

A mudança da matriz energética com a incorporação de fontes renováveis de energia (particularmente solar e eólica) é um ponto fundamental para que se consiga atingir um padrão de desenvolvimento sustentável. Essas fontes energéticas geram muitos empregos, tanto na área de instalação de placas solares, aquecedores solares e geradores eólicos, como na área de desenvolvimento e pesquisa. Além disso, diminuem os níveis de poluição atmosférica e a emissão de gases que contribuem para o aquecimento global.

O Brasil tem um potencial gigantesco de geração de energia eólica e solar, só que precisamos começar a olhar para frente, ver que podemos nos beneficiar de investimentos feitos agora nessa área, em pesquisa, desenvolvimento e implantação. Precisamos ganhar com isso no futuro, nos tornando um exportador de tecnologia. Precisamos ser o país que terá a matriz mais limpa do mundo no futuro. Nesse sentido, aguardamos com grande a expectativa pela votação do Projeto de Lei 630, de 2003, que trata dos incentivos ao desenvolvimento de fontes de energias renováveis no Brasil.

IHU On-Line – Quais os desafios para o Brasil no que se refere à segurança energética?

Heitor Costa – Desenvolvimento sustentável é primordial para superar a pobreza e promover o crescimento equitativo, mas esta meta só é alcançável se assegurado o uso adequado dos recursos naturais. É fundamental uma abordagem integrada para o desenvolvimento – inclusive o energético – que combine dimensões econômicas, sociais e ambientais.

No contexto das políticas energéticas, os países buscam suprir suas sociedades de energia a preços estáveis sem riscos de descontinuidade e de dependência externa. De fato, as nações, através de seus diversos governos, buscam continuamente uma situação de independência política. Contudo, se tal nação não estiver sob um cenário de segurança energética, a vulnerabilidade política aumenta. É sabido que a energia ocupa um papel de destaque nas sociedades em função da sua forte relação com a economia, a tecnologia, o meio ambiente e com o quadro social. Nesse sentido, o estabelecimento de estratégias para o atendimento da demanda de energia de uma sociedade é fundamental para a estabilidade política dos países.

A segurança energética é cada vez mais um fator prioritário na agenda política mundial. No entanto, medidas efetivas para afastar da sociedade o risco da falta de energia ou para diminuir a instabilidade da falta de acesso às fontes energéticas exigem a identificação e aplicação de ações de modo a permitir que o Estado tenha um planejamento de cunho estratégico, levando ao estabelecimento de ações de política energética de médio e longo prazos.

“A segurança energética é cada vez
mais um fator prioritário na agenda política mundial”

A segurança energética no contexto atual não se trata de somente substituir as mega-hidrelétricas, as nucleoelétricas ou termelétricas a combustíveis fósseis pela energia produzida por fontes renováveis, mas de ampliar a eficiência do sistema existente e oferecer um menu diversificado e socioambientalmente sustentável, que possa ser somado à matriz energética. E assim caminharmos para uma matriz energética livre dos combustíveis fósseis e da energia nuclear.

A segurança do suprimento energético tornou-se aspecto central da política energética brasileira após a crise do racionamento de eletricidade do início da década atual. Os efeitos nocivos (econômicos sociais e políticos) dessa crise criaram consenso quanto à necessidade de minimizar os riscos de eventos similares no futuro.

Logo, considero como principais desafios e que deveriam estar à vanguarda da política de energia no Brasil, diferentemente do que previstos nos Planos Decenais de Energia, é a questão da eficiência energética na produção e no consumo e a realização de investimentos públicos em fontes renováveis. Assim, seria ampliada a segurança energética, evitando e reduzindo o uso de energia derivada de combustível fóssil, a instalação de usinas nucleares, a pressão para construção de novas e grandes barragens, que provocam grandes impactos sociais, culturais e ambientais, especialmente sobre os sistemas de água doce.

IHU On-Line – Que heranças o governo Lula deixa para Dilma no que se refere às questões ambientais e energéticas?

Heitor Costa – Vários exemplos de desrespeito ao meio ambiente, como: o apoio à criação de camarão em cativeiro (carcinocultura), que prejudica seriamente os manguezais do Nordeste e tira o sustento das comunidades que vivem da pesca de caranguejo; a política agroenergética do governo, que estimula monoculturas de cana-de-açúcar, soja e eucalipto; bem como a construção de grandes represas para produção de energia elétrica, que obriga o deslocamento de comunidades inteiras do seu habitat natural. Sem falar do despropósito da reativação do Programa Nuclear.

Também constatamos os problemas causados pelo aumento da poluição industrial e pelo uso crescente de agrotóxicos, que tem se constituído em graves problemas de saúde para as populações. Também não nos esqueçamos das instalações crescentes de usinas de produção de álcool no interior de São Paulo, que provocam nuvens de fuligem, decorrentes da queima de cana-de-açúcar, e dão exemplo de desenvolvimento econômico predatório.

Por sua vez, o lançamento do Plano Nacional sobre Mudança do Clima trouxe algumas metas, mas não especifica quem faz o quê, nem prazos. E nem dialoga com outros planos, como o Decenal de Expansão de Energia Elétrica e o Plano de Energia 2030, por exemplo.

Pontos positivos foram os dados divulgados no Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa e a regulamentação do Fundo Nacional de Clima – mas que, todavia, deveriam ser mais amplamente debatidos pelo governo, a academia e a sociedade como pontos centrais do próximo governo, e render questionamentos e compromissos dos governantes.

Contudo, o desdém com que o governo lida com essas emissões é patente. A regulamentação da Lei Nacional de Mudanças Climáticas, necessária para que ela seja de fato implementada, ainda não saiu – e, quando ocorrer, não contemplará o pré-sal e suas emissões crescentes.

Não custa lembrar que o Brasil já perdeu mais de 700 mil quilômetros quadrados de floresta amazônica nas últimas quatro décadas. Nessa área, entre 33 bilhões e 41 bilhões de árvores viraram fumaça, ajudando a transformar o Brasil em um dos maiores emissores mundiais de gases que provocam o aquecimento global.

Devemos optar por novos modelos agrícolas e energéticos. A sociedade brasileira precisa ter consciência de que ainda é possível pensar, discutir e propor alternativas e modelos de desenvolvimento que sejam mais adequados às condições socioambientais do país. Mas, para isso, é importante pensar de uma maneira integrada.

“Não custa lembrar que o Brasil já perdeu
mais de 700 mil quilômetros quadrados de
floresta amazônica nas últimas quatro décadas”

Neste final de 8 anos do governo Lula, faltou decisão política para avançarmos em uma maior utilização das fontes renováveis no país. À atual presidente, sugiro que, a partir do início de seu mandato, apoie a aprovação como parte da solução, da criação de uma legislação perene, com regras estabelecidas e subsídios definidos. Assim, o setor empresarial poderá se envolver e se comprometer com investimentos. Nesse sentido, é grande a expectativa pela votação do Projeto de Lei (PL) 630, de 2003, que trata dos incentivos ao desenvolvimento de fontes de energias renováveis no Brasil.

Um dos principais artigos deste PL trata da renúncia fiscal na importação de equipamentos para a geração de energia a partir de fontes renováveis, bem como do direito de distribuir energia gerada por turbinas de vento, biomassa ou placas solares à rede ou a comunidades isoladas. O texto garante aos geradores o direito de vender sua energia às concessionárias por meio de contratos de longo prazo, o que oferece um mínimo de segurança aos investimentos em usinas de geração renovável. Também prevê a realização de leilões anuais de, pelo menos, 600 MW médios das fontes eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas.

A sociedade brasileira deve se unir contra o fortalecimento de um modelo energético baseado em fontes sujas, enquanto o Brasil tem potencial para inundar sua matriz com energia limpa, vinda do Sol e dos ventos. Cabe ao governo que tomará posse rever as atuais escolhas e abraçar as fontes renováveis e o desmatamento zero.

IHU On-Line – O petróleo do pré-sal pode financiar a transição do Brasil para uma economia com menor emissão de carbono? Como?

Heitor Costa – Mundialmente, o petróleo é responsável por aproximadamente um terço de todas as emissões de gases de efeito estufa responsáveis pelo aquecimento global e, consequentemente, pelas mudanças climáticas, bem como pela maioria dos problemas de poluição nos países produtores e consumidores.

Não custa nada pensar sobre o significado da extração e entrega para consumo de um volume ainda maior de petróleo e de seus derivados, em especial os que têm servido de combustível – gasolina e óleo diesel – para veículos automotores. Está certo que o petróleo impulsionou a indústria automobilística mundial de 1920 em diante. Serviu para estimular um tipo de desenvolvimento – baseado no transporte individual e rodoviário – que criou grandes parques industriais. Contribuiu para o avanço e a dominação tecnológica de alguns países industrializados. Deu enorme contribuição para a concentração da renda e da riqueza para alguns poucos grupos empresariais e familiares.

Mas a questão que se coloca agora é pertinente: interessa mesmo para o Brasil e para o mundo seguir no mesmo modelo de desenvolvimento? Um modelo que tem sido gerador de riqueza concentrada e de enorme exclusão social? Um modelo que usa de forma predatória os recursos naturais? Interessa ampliar e perpetuar a desigualdade? O sistema de transportes atual não inviabiliza o futuro das cidades? Boa parte das metrópoles já não está dominada pelo excesso de veículos e pelos contínuos congestionamentos? Esse modelo não é gerador de poluição e de destruição das condições de vida no planeta? O que se pretende fazer com a emissão de gases de efeito estufa na atmosfera? O que fazer com o lixo não degradável? E o aumento do aquecimento global? Devemos ignorar essa dura realidade em nome do lucro do petróleo?

O discurso de que o petróleo do pré-sal vai ajudar a melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro e das pessoas em geral não engana ninguém. O Brasil e o mundo já tiveram jazidas tão ricas quando a do petróleo do pré-sal, e nem por isso as sociedades (suas classes dominantes e seus governos) conseguiram eliminar a miséria, a fome, a marginalização e a grande desigualdade econômica e social dentro de cada país.

“O discurso de que o petróleo do pré-sal
vai ajudar a melhorar a qualidade de vida do
povo brasileiro e das pessoas em geral não engana ninguém”

O Brasil teve o ciclo da cana, o ciclo do ouro, o ciclo do café, o ciclo da indústria – e nunca conseguiu distribuir os frutos de tais ciclos do desenvolvimento econômico para a maioria da população. Lembrem-se do mentor da política econômica brasileira durante os governos militares, e que ficou famoso por comparar o crescimento econômico a um bolo. Ele foi o principal artífice do chamado “milagre brasileiro” (1968-1973), quando o Produto Nacional Bruto – PNB crescia, em média, 10% ao ano. Criticado pela forte concentração de renda durante esse período, ele disse que seria preciso esperar o bolo crescer para, depois, reparti-lo. Mas o bolo cresceu e nunca foi dividido.

As classes trabalhadoras brasileiras continuam vivendo em condições precárias, marginalizadas e excluídas de participação na renda e na riqueza. O que garante que agora poderá ser diferente? Nada, absolutamente nada. Afinal, alguém está se propondo a construir com o povo trabalhador um novo modelo de aproveitamento social do petróleo?

Portanto, antes de embarcar na euforia que a descoberta tem proporcionado, e no ufanismo governamental (e de todos aqueles setores empresariais que vislumbram encher os bolsos de dinheiro nos próximos anos), a população precisa refletir corretamente sobre em que condições devem ocorrer à extração desse petróleo, de maneira a assegurar que o recurso não seja danoso para o meio ambiente e para a qualidade da vida nos grandes centros urbanos; e como a riqueza gerada será mesmo revertida para os que mais precisam dos recursos públicos (educação, saneamento, saúde e moradia); quem deve controlar esse processo de forma a assegurar a soberania e a defesa dos interesses nacionais e populares. As rendas do petróleo deverão ser destinadas a financiar, entre outras coisas, a pesquisa e a implantação de fontes alternativas de energia e ações na área do meio ambiente. Os recursos dos royalties do petróleo devem ser parte de um projeto estratégico de nação e de sociedade.

IHU On-Line – Qual deve ser a posição do Brasil, a partir da descoberta de reservas do pré-sal, diante da questão energética?

Heitor Costa – O derramamento de petróleo no Golfo do México nos leva à reflexão a respeito da nossa dependência dos combustíveis fósseis, uma fonte de energia não renovável e muito poluente. As condições de extração deste produto são cada vez mais extremas e arriscadas, com maior probabilidade de acidentes e dificuldades técnicas, como acontece em alto mar. Este episódio recente mostrou que os métodos e tecnologias disponíveis hoje não são suficientes para evitar e conter acidentes, além de que pouco se sabe sobre o real impacto ambiental de um derramamento de petróleo em grandes profundidades.

De certa forma, a situação do Brasil em um contexto de crise energética é privilegiada, pois uma parte relativamente grande da energia consumida no país provém de fontes renováveis. Enquanto no mundo 86% da energia primária provém de fontes não renováveis e 14% de renováveis, no Brasil a proporção é de aproximadamente 54% contra 46%, devido principalmente às hidrelétricas, e do uso crescente do etanol da cana-de-açúcar.

Além disso, possui a Petrobras, empresa-símbolo de nossa modernização retardatária, que, por falta de petróleo em terra, especializou-se em petróleo em águas profundas, o que propiciou a descoberta das reservas no pré-sal – e novas descobertas cada vez mais se darão em localizações não “usuais”.

“O derramamento de petróleo no Golfo do México
nos leva à reflexão a respeito da nossa
dependência dos combustíveis fósseis,
uma fonte de energia não renovável
e muito poluente”

Com relação a hidrelétricas, ainda que sejam fontes renováveis e mesmo construídas racionalmente (PCHs) possam ser uma alternativa útil, ultimamente seus potenciais destrutivos se tornaram claros, como o demonstram a construção de barragens no Rio Madeira e a inundação de uma das últimas reservas de floresta nativa de araucária no Rio Grande do Sul, além da histórica questão daqueles que são “removidos” de suas comunidades em nome do desenvolvimento.

É um exemplo de como uma tecnologia, a princípio não necessariamente destrutiva, pode vir a tornar-se, haja vista a irracionalidade dos fins. O mesmo pode ser dito com relação aos biocombustíveis. Com seus métodos de cultura intensiva, degradam o solo, aceleram a exaustão dos recursos naturais não renováveis (fósforo, usado como fertilizante, entre outros), além de, ao menos potencialmente, afetar os preços de alimentos quando produzidos em larga escala. Mais vergonhoso ainda é o trabalho escravo ou semiescravo nas plantações. Ainda que possam servir como ferramentas auxiliares para uma transição energética, biocombustíveis e hidrelétricas não são as melhores escolhas e podem mesmo ser altamente destrutivas ambiental e socialmente.

Analisando sob uma perspectiva histórica, parece que estamos andando na contramão: durante o período de ascensão do capitalismo petrolífero, não tínhamos petróleo em abundância, e agora, quando o petróleo entra em declínio, só se fala na queima das reservas descobertas. Paradoxalmente, o petróleo pode vir a ser fator de atraso para o Brasil, caso implique desatenção para com o desenvolvimento de energias renováveis, especialmente a solar.

Portanto acredito que o petróleo do pré-sal pode financiar a transição do Brasil para uma
economia com menor emissão de carbono, com a mudança progressiva do modelo energético atual, a partir de apoio a essa transição por uma Petrobras 100% estatal e de recursos do pré-sal voltados para as áreas social e ambiental.

IHU On-Line – Que aspectos um projeto de desenvolvimento sustentável deve considerar?

Heitor Costa – Lamentavelmente, ainda estamos na época em que pesam argumentos como “o desenvolvimento econômico exige o sacrifício ambiental”. Quando o econômico é mais importante que o social e o ambiental, não se considera assim um desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável somente poderá ser atingido se este “tripé” for indissociável. A estratégia de transição para a sustentabilidade deve ser voltada para a melhoria das condições de vida da população, não para o aumento do consumo de energia.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) vem mostrando que os países industrializados, com menos de 20% da população mundial, consomem quase 80% dos recursos, com sua produção e as importações. Se todos os países consumissem como eles, diz o Pnud, seriam necessários mais dois ou três planetas Terra. Portanto é um erro histórico incentivar a manutenção dos padrões atuais de consumo, como forma de garantir o crescimento econômico. Infelizmente, os interesses em jogo estão relacionados à questão econômica, aos interesses bastardos de grupos sociais que pretendem manter seus privilégios num mundo que já está vivendo seu limite de crescimento.

Como elemento essencial do desenvolvimento sustentável está o uso crescente de fontes renováveis de energia. Sem nenhuma dúvida, com relação a esta situação, podemos afirmar que a falta de decisão política tem freado a implantação significativa das fontes energéticas renováveis em nosso país, particularmente da energia solar e eólica.

Nesse sentido, é preciso fazer investimentos corretos a fim de compatibilizar o desenvolvimento que leva em conta a saúde, a educação, a cultura, com a diversidade e com a proteção dos recursos naturais. Temos, sim, que avançar no sentido de uma mudança de paradigma da relação das indústrias com os recursos naturais, com o uso de novas tecnologias eficientes, que possam ser menos poluentes, que possam contaminar menos, e que assumam verdadeiramente esse papel da responsabilidade social e ambiental. É preciso cada vez mais dizer, em alto e em bom tom, que o meio ambiente não atrapalha o desenvolvimento.

Redução do consumo

A direção das soluções para um projeto de desenvolvimento sustentável deve ser no sentido em que elas sejam favoráveis aos povos e à natureza. É fundamental que outras formas de relação do ser humano com a natureza sejam assumidas e que novas tecnologias, de alta eficiência na utilização de recursos naturais e com mínimos impactos ambientais, sejam desenvolvidas e adotadas em larga escala.

O que está em jogo, de fato, é a disposição das sociedades em reduzir e alterar drasticamente a forma de consumo, redefinir o modelo de produção e a ideia de desenvolvimento; e em passar a medir o êxito de um país por seus indicadores sociais e ambientais, e não mais apenas por sua riqueza financeira.
Portanto, o desafio que se coloca neste início do século XXI é nada menos do que mudar o curso da civilização. É preciso construir uma nova ordem internacional, que respeite a soberania dos povos e das nações. Deslocar, num curto espaço de tempo, o eixo da lógica “viver é produzir sem fim e consumir o mais que pode” que leva à acumulação, para uma lógica em função do bem-estar social, do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos.

Precisamos, sim, valorizar aspectos relativos às questões que sempre foram colocadas pelo ser humano: que sentido tem a vida e o universo, qual é o nosso lugar? Portanto, há que se ouvir mais os pensadores e os que ainda amam a vida e cuidam da Terra, do que os governos, os economistas, entre outros.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Heitor Costa – Constatamos hoje a destruição sistemática dos meios naturais sem trégua, tanto no Hemisfério Norte como no Sul. A agressão de todo tipo continua infligida ao solo, à água e à atmosfera. As causas e efeitos são: o uso dos combustíveis energéticos de origem fóssil, desperdício energético, urbanização galopante, desmatamento tropical, contaminação dos lençóis freáticos, dos oceanos e dos rios.

Como contribuição para salvar o planeta, insisto que devemos visualizar e apontar para um Brasil sem combustíveis fósseis e energia nuclear, com matrizes energéticas que produzam e utilizam recursos energéticos renováveis, geridas localmente de maneira descentralizada, evitando as perdas por transmissão e distribuição.

Sem dúvida um dos maiores problemas que nos defrontamos no Brasil é a dificuldade que temos na socialização do conhecimento. Os políticos, de modo geral, não querem ouvir os cientistas e não estão interessados em usar o conhecimento para transformar a realidade. Este fato tem dificultado em muito o uso do conhecimento adquirido em melhorar a vida das pessoas.

É hora, portanto, de juntar outros e outras, reunir milhares, milhões, (re)começar ou continuar a organização, a luta e a resistência. E retomar os ideais de rebeldia e liberdade, a construção da igualdade, o sonho de justiça, os valores da partilha e da solidariedade.

(Ecodebate, 06/12/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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