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Artigo

Sem herdeiros: mulheres e homens sem filhos, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

[EcoDebate] O chamado ciclo natural da vida das pessoas inclui o nascimento, o crescimento, o casamento, a procriação, o envelhecimento e a morte. As pessoas nascem, estudam, trabalham, se aposentam e morrem. Do ponto de vista das pessoas o ciclo de vida é finito. Mas do ponto de vista da humanidade é um movimento infinito, pelo menos enquanto existir vida humana. O ciclo econômico inclui a criação de bens e serviços e a reprodução das condições de produção e das pessoas e também se pretende infinito, pelo menos enquanto existir cidadãos aptos ao trabalho e ao consumo e houver as condições materiais e ecológicas para a sobrevivência da espécie e da vida no Planeta.

Exatamente por considerar os filhos uma coisa natural, a sociedade vê com muita desconfiança e um certo grau de rejeição as pessoas que optam por não ter filhos. Evidentemente, existem as pessoas que não têm filhos por problemas de saúde ou infertilidade e, nestes casos, a sociedade trata com comiseração. Porém, as pessoas saudáveis e férteis que optam pela não procriação e os casais sem filhos (biológicos ou adotados) são taxados de egoístas e precisam se justificar o tempo todo, para a família, amigos, vizinhos e colegas de trabalho.

De maneira pejorativa o homem que não se casa e não tem filhos é chamado de “Solteirão”, como na música Pobre Solteirão, de Texeirinha: “Quem muito quer/Pouco acerta e tudo passa/Ficou sem graça/A noite é só recordação/Não me casei com a primeira namorada/Não sou mais nada/Do que um pobre solteirão”. De maneira mais pejorativa ainda a mulher que não se casa e não tem filhos é chamada de ‘Solteirona” ou “Titia”. Os termos “ficar pra tia”, “ficar na peça” ou “encalhada” são depreciativos, como se não ter marido e filhos fosse algo anormal ou uma espécie de aleijão (Alves, 2004).

Em geral, se diz que as pessoas ou casais sem filhos são egoístas. Contudo, no mundo inteiro, muitas vezes o interesse próprio vem com a descendência que acontece por puro egoísmo ou descuido. Segundo Jerry Steinberg (Revista Época, 2006), ter filhos, hoje em dia, na maioria dos casos, é conseqüência natural de sexo sem proteção. Para ele, a maioria das pessoas tem filhos sem motivos, sem pensar, sem planejamento e de forma anti-ecológica: “Crianças são muito preciosas para vir ao mundo por acidente. As pessoas têm filhos por razões bastante egoístas: por prazer, para cuidar delas na velhice, para ter alguém para amar e amá-las de volta, para viver coisas que não puderam viver quando eram crianças, para exercer poder sobre alguém, dar continuidade ao nome da família. O que é mais egoísta que fazer um minieu? É vaidade (…) A quantidade de terra arável, de água potável e de espaço habitável está limitada no planeta. Além disso, existe uma questão psicológica: quanto mais gente viver em áreas superpopulosas, maior serão a agressividade e a violência. Estamos sob tremenda pressão”.

Historicamente, a literatura mostra que ter filhos pode não ter nada a ver com altruísmo, mas sim com formas patriarcais de relacinamento familiar. No Brasil, Capistrano de Abreu definiu a família colonial brasileira da seguinte forma: “Pai taciturno, mulher submissa e filhos aterrorizados” (apud Correa, 1982). Na família patriarcal as desigualdades geracionais e de gênero vinham em função de garantir os privilégios dos pais e maridos, isto é, dos homens que se apropriavam dos benefícios dos filhos e das esposas. Neste ambiente, ter muitos filhos não tinha nada a ver com altruísmo, mas sim com a obtenção de vantagens provenientes da dominação masculina. Na história do Brasil, a harmonia geracional e de gênero sempre foi mais a exceção do que a regra.

Além disto, fatores econômicos contribuiram para adoção de uma mentalidade pró-natalista no país. Nas sociedades escravocrata ou do capitalismo selvagem ter muitos filhos sempre foi uma forma dos donos dos meios de produção conseguirem mão-de-obra barata. Como mostrou PAIVA (1985), o tipo de organização da atividade econômica prevalecente no Brasil até meados do século XX (economia de subsistência, colonato e parcerias agrícolas) favorecia um padrão de casamento precoce e a adoção de famílias numerosas que atuavam em conjunto na atividade agrícola. Este padrão demográfico brasileiro era apoiado pela ideologia das Igrejas – que pretendiam aumentar o número de seus fiéis – e do Estado – que via no alto crescimento demográfico o caminho para a afirmação nacional e a defesa do território contra ameaças externas. A ideologia das classes dominantes, das Igrejas e do Estado fortaleciam uma coalisão pró-natalista (ALVES, 2004).

Contudo, o Brasil e o mundo mudaram muito nas últimas décadas. O processo de urbanização (a chamada transição urbana), de diversificação econômica, de avanços educativos e de democratização política e religiosa do país, especialmente após a Constituição de 1988, propiciou o aprofundamento da transição demográfica, a maior diversificação familiar e o crescimento do número de pessoas que vivem sozinhas, inclusive do número de pessoas sem filhos. O declínio do patriarcado, a mudança na relação entre as novas e velhas gerações (com a reversão do fluxo intergeracional de riquezas) e a maior equidade de gênero, defendida pelo movimento feminista, reforçaram estas novas tendências.

Assim, além da queda geral da fecundidade, tem crescido o número de pessoas que não procriam e não deixam herdeiros. Existem pessoas sem filhos que vivem sozinhas em domicílios unipessoais, existem os casais sem filhos e existem pessoas sem filhos que moram em outros arranjos familiares. Infelizmente, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) só faz a pergunta se teve filhos para as mulheres. Assim, não é possível saber se um homem que mora sozinho ou um casal sem filhos no domicílio já teve filho mesmo morando em outro domicílio.

Os dados mostram que houve um crescimento muito grande dos domicílios unipessoais no Brasil, entre 1996 e 2006. Enquanto o total de domicílios do Brasil passou de 39,7 milhões para 54,6 milhões, representando um crescimento de 37,4% entre 1996 e 2006, os domicílios com pessoas morando sozinhas passou de 3,2 milhões para 6 milhões, representando um crescimento de 86%, no período.

O crescimento maior aconteceu entre os domicílios unipessoais masculinos que apresentou um crescimento de 101%, contra 73,5% de crescimento dos domicílios unipessoais femininos, entre 1996 e 2006. Ao contrário do que se divulga regularmente, o maior crescimento de pessoas vivendo sozinhas não aconteceu no grupo dos idosos, mas em outros grupos etários. Para os “homens sós”, o crescimento foi maior nos grupos 30-44 anos (97%) e 45-59 anos (131,6%), enquanto, para as “mulheres sós” os maiores aumentos foram para aquelas dos grupos etários 15-29 anos (97,5%) e 45-59 anos (90,6%).

Um outro tipo de arranjo domiciliar que apresentou grande crescimento no período foi o dos domicílios com casais sem filho, que apresentou um crescimento de 65,5% entre 1996 e 2006. Também neste caso, não foram os domicílios de idosos, isto é, do chamado “ninho vazio” que apresentaram o maior crescimento. Expressivamente, foram os domicílios cujos chefes pertenciam ao grupo etário 45-59 anos que apresentaram o maior aumento (103,3%). Embora as causas para deste fato sejam múltiplas, uma das explicações pode decorrer do aumento dos casais que decidem não ter filhos. Mesmo nos grupos etários 15-29 anos e 30-44 anos o aumento dos domicílios com casais sem filhos, no período, foi superior ao aumento do total de domicílios no Brasil (37,4%). Isto indica que, ou os filhos estão saindo mais cedo e em maior quantidade de casa, ou está crescendo o número de casais que nunca tiveram filhos no Brasil. Esta segunda hipótese parece ser a mais verdadeira, mas carece ainda de mais estudos para a sua comprovação.

Segundo a professora Elisabete Bilac, em entrevista à Revista Época: “O universo cultural brasileiro não é mais dos tempos em que quem não punha descendentes no mundo chegava até a ser discriminado na sociedade. ”O Brasil está seguindo o padrão europeu, em que ter filhos deixou de ser um destino inevitável”, explica Elisabete Dória Bilac, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Universidade de Campinas (Unicamp). A partir da década de 60, com a evolução do movimento feminista, esse conceito foi se abrandando para dar vazão a outras prioridades na vida de mulheres e homens – por exemplo: a vontade, sem culpa, de ter um orçamento que comporte viagem, uma vida mais confortável e independente e a compra daquele carro. Mesmo assim, mais difícil que optar por filhos pode ser a decisão de não tê-los” (Época, 2005).

Sem dúvida, as transformações sociais e econômicas de uma sociedade pós-industrial e pós-fordista tiveram um impacto muito grande na dinâmica familiar mundial e brasileira. A estrutura familiar está ficando mais heterogênea e diversificada. Neste processo, cresce o número de homens, mulheres e casais que optam por não ter filhos. Os domicílios unipessoais estão aumentando no Brasil e não somente entre a população idosa. Mais pesquisas são necessárias para se compreender as características das pessoas que optam por não ter herdeiros. Mas este fenômeno está se ampliando especialmente entre a população adulta e em idade economicamente ativa.

Referências:
Teixeirinha, Pobre Solteirão.

José Eustáquio Diniz Alves/A linguagem e as Representações da Masculinidade – Rio de Janeiro: ENCE, Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2004.

CORREA, M. Repensando a família patriarcal brasileira (notas para o estudo das formas de organização familiar no Brasil). In: Vários autores: Colcha de retalhos. Estudos sobre família no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982, pp. 13-38.

PAIVA, P.T.A. O processo de proletarização como fator de desestabilização dos níveis de fecundidade no Brasil. In: MIIRÓ, C. et al. Transição da fecundidade: análises e perspectivas. São Paulo: CLACSO, 1985.

ALVES, J.E.D. As políticas populacionais e os direitos reprodutivos: “o choque de civilizações” versus progressos civilizatórios. In: Caetano, A. Alves, J.E.D. e Corrêa, S. (orgs) Dez anos do Cairo, Campinas, ABEP e UNFPA, 2004.

Revista Época – Edição 373 – Julho de 2005

José Eustáquio Diniz Alves, colunista do EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. As opiniões deste artigo são do autor e não refletem necessariamente aquelas da instituição.
E-mail: jed_alves{at}yahoo.com.br

EcoDebate, 14/10/2010

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