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Florestas urbanas: patrimônio biológico e cultural, artigo de Rejan R. Guedes-Bruni e Rogério R. de Oliveira

Flora do Parque Nacional da Tijuca. Foto: Wikipédia
Flora do Parque Nacional da Tijuca. Foto: Wikipédia

“A conservação dos fragmentos florestais inseridos em contextos urbanos deve ser avaliada de forma constante, interdisciplinar e participativa”

[Jornal da Ciência] A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2010 o Ano Internacional da Biodiversidade e ao fazê-lo parece ter evocado Hefesto, o deus do fogo na mitologia grega, e Celestas, deusa da destruição.

Nem bem nos recompúnhamos do recente incêndio que se abateu sobre um dos mais importantes acervos científicos do país, no Instituto Butantan, em São Paulo, e nos deparávamos com um relatório superficial e irresponsável sobre a reformulação do Código Florestal Brasileiro, um incêndio possivelmente originado pela queima de um balão junino num fragmento de floresta urbana de importância histórica, no Morro dos Cabritos e Sacopã, nos arredores da Lagoa Rodrigo de Freitas (RJ) ocorria. E, no último final de semana, uma ameaça às áreas florestadas urbanas se desenha na paisagem carioca com a proposta de flexibilização do uso das encostas.

Em recente mapeamento sobre a cobertura remanescente de Mata Atlântica nos estados brasileiros, a Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) assinalam que esta vegetação encontra-se reduzida a 7% de sua área original no território brasileiro.


No estado do Rio de Janeiro, a floresta distribui-se por 807.495 ha, o que corresponde a 18,37%. Destes remanescentes cerca de 30% se encontram em unidades de conservação, ora na Serra do Desengano ao norte, nas Serras dos Órgãos e Tinguá, na porção central, ao sul e sudoeste, os contrafortes da Bocaina e da Mantiqueira e, ora na região metropolitana, revestindo os Maciços da Tijuca e da Pedra Branca.

Estes grandes corpos florestais assim dispersos pelo território do estado podem ser conectáveis por uma malha de pequenos fragmentos florestais presentes nas cercanias da malha rodoviária, dos espaços edificados ou ainda de áreas de agricultura e pastagem. Juntos, os grandes corpos florestais e os pequenos fragmentos detêm importantes matrizes de espécies florestais, recursos ambientais, bem como fontes de história, cultura e transcendência.

A cidade do Rio de Janeiro detém 16% de remanescentes, que totalizam 17.358 ha de áreas de Mata Atlântica.

O naturalista Carl Von Martius – responsável pela mais importante obra de referência sobre as plantas brasileiras, Flora Brasiliensis, atualmente disponível pela internet (http://florabrasiliensis.cria.org.br/) – ao aportar no Brasil durante suas primeiras incursões à vegetação da cidade, nos arredores do Corcovado, Pão de Açúcar e Lagoa Rodrigo de Freitas e serranias mais afastadas, descreve em seu relatório de viagem ao rei: “Diante de tanta riqueza de formas, não temos mãos e olhos suficientes para realizar nosso trabalho. Cada um de nós teria que ser pintor, empalhador, caçador e herbalista para poder representar e reunir toda esta riqueza.”

Este encantamento diante da assombrosa diversidade biológica, que “ama esconder-se” aos olhos dos especialistas, não finda com o passar dos séculos. Nos anos 60 várias excursões científicas foram empreendidas por botânicos, como bem exemplifica a coleção de Dimitri Sucre, depositada no herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, desvelando o que a natureza teimava em ocultar, mesmo diante do crescimento urbano da cidade sobre as restingas, mangues e morrotes como os do Cabrito, do Sacopã e Pedra de Itaúna. Várias novas espécies foram ali coletadas e descritas para a ciência, num local de potencial biológico pouco valorizado.

O incêndio sobre a mata do Morro dos Cabritos e Sacopã e a proposta de crescimento da cidade sobre as encostas traz à tona não só o valor que têm pequenos fragmentos de vegetação nativa, como, sobretudo, o enorme papel que as florestas urbanas desempenham para a qualidade de vida dos habitantes da cidade, como: amenização do clima, fixação de carbono, produção de água pelas nascentes, redução da chuva e interceptação de poluentes presentes no ar atmosférico ao passar pelas copas das árvores, além de conforto ambiental.

No caso da cidade do Rio de Janeiro, a interação destes dois sistemas de natureza tão opostas – cidade e montanha – leva ao estabelecimento de uma rede de trocas entre ambos, que colabora para a construção de uma realidade ímpar.

Se por um lado, as florestas provêm serviços ambientais à malha urbana que a engloba, por outro, o processo de expansão urbana tem provocado alterações significativas na cobertura florestal, modificando suas estrutura e funcionalidade, especialmente nas áreas montanhosas.

A interface cidade-floresta envolve numerosos vetores de transformação localizados (edificações formais; estradas; trilhas; loteamentos; favelas etc.) e difusos (eventos climáticos extremos; poluição atmosférica; queimadas etc.), os quais, raramente, têm sido abordados numa visão sistêmica, global e articulada do meio ambiente.

Assim, o avanço acelerado da urbanização sobre as encostas montanhosas da cidade resulta na rápida degeneração ou remoção da floresta, favorecendo sua destruição ou substituição por feições urbanas. Esta situação é ainda mais inquietante quando se considera a Zona Oeste como pólo de crescimento da cidade do Rio de Janeiro.

Além desta importância local, cabe às florestas urbanas um destacado e relevante papel no que se refere às mudanças climáticas em escala global. O aumento da quantidade de CO2 na atmosfera constitui um dos principais causadores de alterações climáticas, em função do aumento da retenção de calor vindo do sol.

Dentre as poucas alternativas disponíveis para equilibrar a concentração de carbono na atmosfera destacam-se a redução da queima de combustíveis fósseis e o aumento do seqüestro de carbono. Quando as florestas são derrubadas, o carbono presente na biomassa viva, acima do solo, é lançado para a atmosfera, sob a forma de CO2. A reabsorção deste carbono ocorre simultaneamente ao processo de regeneração florestal, quando através da fotossíntese o CO2 é convertido em biomassa florestal.

Assim, no decorrer dos anos, ao longo da sucessão ecológica, com o aumento da presença de árvores a estocagem de carbono é simultaneamente acrescida, principalmente, sob a forma de madeira. Portanto, as florestas secundárias (que constituem a maioria das formações florestais do Rio de Janeiro) contribuem para a redução dos gases responsáveis pelo efeito estufa, sendo um dos poucos mecanismos efetivos de retirada do CO2 atmosférico.

A conservação dos fragmentos florestais inseridos em contextos urbanos deve ser avaliada de forma constante, interdisciplinar e participativa.

De acordo com a Sociedade de Restauração Ecológica (SER), “restauração ecológica é o processo de assistir a recuperação e o manejo da integridade ecológica, contextos históricos e regionais e a adoção de práticas culturais sustentáveis”.

Como pode ser observado no conceito, a restauração de ambientes degradados impõe a participação da comunidade nas ações de restauração de áreas degradadas e é fundamental para a permanência dos resultados dessas ações. Portanto, a restauração de florestas urbanas degradadas depende tanto de um arcabouço técnico quanto de um processo de forte caráter formativo e educativo.

Assim, é cada vez maior a percepção de que as comunidades estabelecidas nos arredores de suas florestas constituem importantes atores para se apreender a história da paisagem local e a valorização do conhecimento “tradicional” sobre o remanescente de floresta. O resgate deste conhecimento internalizado pelas comunidades atingidas, quando integrado aos dados de diferentes pesquisadores, constitui relevantes subsídios para ações de conservação que venham ser implantadas pelos órgãos de governo.

O legado destes incêndios, que infelizmente se repetem com lamentável precisão britânica a cada inverno, só pode ser inteiramente conhecido anos depois. Apesar de aparentemente as florestas se recuperarem após a passagem do fogo, sua composição e seu funcionamento ficam comprometidos.

Nas chuvas fevereiro de 1996, as regiões oeste e norte do Rio de Janeiro foram assoladas por um sistema frontal estacionário que chegou a 127 mm de chuva em seis horas, ocasionando desabamentos de encostas com intensidade e número jamais registrados, com um saldo de mais de 50 vítimas fatais. Foram contabilizados somente no Maciço da Tijuca um total de 104 desabamentos. Deste total, 86% se deram em áreas de encostas cobertas por capim colonião ou em florestas regeneradas após incêndios. Somente 2% dos deslizamentos em áreas de florestas conservadas. Ou seja, os incêndios de hoje podem ser responsáveis por desabamentos de amanhã.

A convivência diária com a estética do belo geológico e o privilégio de uma paisagem natural como a da cidade do Rio de Janeiro dialeticamente dificulta aos seus habitantes a compreensão do quão distinto e singular é sua situação de ente da diversidade biológica.

Os jornais exemplificaram diferentes formas de sentimento e ação por parte dos cidadãos no sentido de expressar seus desejos de conservação daquela pequena mata nos arredores da lagoa Rodrigo de Freitas tanto quanto das florestas que emolduram o acervo artístico particular a cada carioca e brasileiro. Olhando numa escala micrométrica de floresta e amplificando-a para a escala do Código Florestal Brasileiro, restam-nos os dizeres de Heidegger, para quem: maior que a realidade é a possibilidade.

Rejan R. Guedes-Bruni é pesquisadora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e Rogério R. de Oliveira é professor associado do Departamento de Geografia da PUC-Rio. Artigo enviado pelos autores ao “JC e-mail”.

Artigo socializado pelo Jornal da Ciência, SBPC, JC e-mail 4043, de 01 de Julho de 2010 e publicado pelo EcoDebate, 02/07/2010

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