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Belo Monte na BBC: a farsa dos 23 milhões de lares, artigo de Rodolfo Salm

[Correio da Cidadania] Costumo queixar-me da falta de espaço na grande imprensa que nós, críticos do projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, temos para denunciar a tragédia que seria esta obra, sob os pontos de vista social, econômico e ambiental. Mas na terça-feira, 2 de fevereiro, dia seguinte da midiática liberação pelo IBAMA da vergonhosa licença ambiental para a construção da barragem, a situação parecia ser diferente. Recebi logo cedo uma mensagem da produtora de um programa de rádio da BBC, de Londres, interessada em alguém para falar sobre a licença ambiental. O que me pareceu uma idéia muito boa, já que muitas notícias sobre a nossa terra só são consideradas por aqui depois que ganham alguma repercussão lá fora. Para ouvir a entrevista clique aqui.

A equipe da rádio inglesa fez a gentileza de enviar-me com antecedência algumas das possíveis perguntas para eu preparar-me: (1) Se estou desapontado com a concessão da licença ambiental; (2) porque sou contra a barragem; (3) se me agrada o fato de o governo ter dito que quem quer que vença a disputa terá que gastar 800 milhões de dólares para proteger o meio ambiente; (4) que efeitos eu imagino que a barragem teria sobre as populações locais; e (5) se eu acho que a barragem teria algum efeito positivo.

Bem, respondendo às perguntas aqui, não se pode dizer que fiquei exatamente desapontado com a concessão da licença, pois ela já era totalmente esperada. Todos nós já sabíamos que um dos principais objetivos da nomeação de Carlos Minc para o Ministério do Meio Ambiente foi a garantia de aprovação da construção da barragem. Eu fiquei realmente desapontado em 2003, quando Lula começou seu primeiro mandato e suas primeiras atitudes deixaram claro que não haveria nenhuma mudança real na forma de o governo lidar com o problema da devastação da Amazônia.

Quanto à segunda pergunta, as pessoas que são contra Belo Monte o são por diversos motivos. Muito antes de conhecer Altamira ou o rio Xingu propriamente dito, quando estudava a dinâmica da floresta desta região para o meu doutorado, percebi como ela, sendo tremendamente sazonal (apresenta muita variação entre as estações do ano), é frágil e vulnerável a fatores causadores de desmatamentos. Durante metade do ano a floresta é extremamente seca e queima facilmente.

Assim, qualquer forma de pressão de imigração humana é desastrosa. A totalidade da bacia do Xingu pode ser desmatada em poucas décadas com o aumento da devastação que ocorreria com a melhoria da infra-estrutura de acesso à região e com a conseqüente ampliação brutal da afluência de pessoas para trabalhar na construção da barragem (90 mil no total, segundo algumas estimativas). Pior, esses migrantes ficariam, na maior parte dos casos, desempregados depois que as obras fossem concluídas, facilitando o aparecimento na região, no médio prazo, de uma multidão de famílias miseráveis com poucas perspectivas de futuro.

Mas, desde que vim morar em Altamira, esta se tornou, além do mais, uma questão pessoal também, já que a barragem acabaria com a minha praia. E a de todos os altamirenses, e de toda a enorme vocação turística do município. O rio é toda a beleza da cidade, nosso lazer e fonte de água e alimentos. Sem um sistema de esgotos decente e com até um terço de sua superfície alagada, a cidade de Altamira estaria, literalmente, devastada.

É claro que a coisa dos tais 800 milhões de dólares para proteger o meio ambiente não nos satisfaz. Embora, certamente, alegraria algumas das muitas empresas de consultoria ambiental que pululam no mercado, nenhum dinheiro no mundo poderá compensar o estrago nesta região se a barragem for construída. Na verdade, a questão da conservação aqui não é uma questão de dinheiro, mas principalmente política. A construção da barragem de Belo Monte é uma demanda justamente dos setores políticos que são os principais responsáveis pelos desmatamentos. E eles continuariam a cortar a floresta, com ou sem esta injeção de 800 milhões. Além do mais, como poderíamos ser compensados pela morte do rio que amamos? Depois, tenho certeza de que a maior parte deste dinheiro seria perdida pelos ralos da corrupção.

Sobre “os efeitos para as populações locais”, uma vez que a entrevista seria transmitida na Inglaterra, eu preferia falar dos efeitos globais, já que as pessoas tendem a se mexer quando são diretamente afetadas por algo. Mas claro que aqui seria tudo mais impactante. Um terço da cidade seria inundado! Imagine o que os londrinos pensariam de uma idéia que resultasse no alagamento da terça parte da capital inglesa pelo rio Tâmisa por um motivo prático qualquer? Para a gente que mora aqui é a mesma coisa. Fora as doenças como a malária e a febre amarela, que se espalhariam como consequência das alterações ambientais criadas pela formação do lago. Os ribeirinhos que dependem da pesca sofreriam. As terras indígenas também seriam muito mais vulneráveis a invasões. A lista dos impactos locais é imensa.

Mas haveria impactos para toda a humanidade. O processo incontrolável de desmatamentos que certamente seria desencadeado poderia, em poucos anos, causar a devastação de metade da floresta amazônica! Resultado: a emissão de muitos bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera. Mas os efeitos perversos da barragem sobre o clima do planeta iriam ainda além. Mesmo depois que toda a matéria orgânica submersa pelo lago se decompor, o que levaria várias décadas, liberaria uma quantidade imensa de poderosos gases-estufa (principalmente metano – CH4), comparável ou até mesmo pior que termelétricas de potência equivalente. Mesmo então, a produção contínua de material biológico nas suas margens, a partir do gás carbônico (CO2) da atmosfera, ainda faria da barragem uma “fábrica de metano”, que contribuiria continuamente para as mudanças climáticas no planeta. Isso porque este material migra para o fundo do lago, onde, na falta de oxigênio, se decompõe em metano, que é liberado diretamente lá do fundo, pelas turbinas, para a atmosfera (diferentemente dos lagos naturais, onde esta matéria acumula-se, transformando-se em petróleo após milhões de anos). Acontece que esta outra molécula de carbono, o metano, tem uma contribuição vinte e três vezes maior para o aquecimento global que o gás carbônico original.

Não. A construção da hidrelétrica de Belo Monte não teria nenhum efeito positivo. Pelo menos não para a maioria das pessoas. Nós, os brasileiros, não precisamos desta energia para viver ou para nos desenvolver. Entraremos nesse negócio sujo apenas assumindo os riscos financeiros da operação. Riscos, que não seriam nada pequenos. No fim das contas o entrevistador da BBC não me fez esta pergunta, se a barragem poderia ter algum efeito positivo. Mas se tivesse feito eu estava pronto para responder que teria sim, mas apenas para multinacionais gigantes da área da mineração, como a BHP Billiton, sediada em Londres e com operações aqui no estado do Pará, que necessitam de grande quantidade de energia para a produção de alumínio. Claro que algumas pessoas enriqueceriam rapidamente com todas as oportunidades de negócios legais e ilegais que surgiriam por aqui. Seria obviamente bom também para a burocracia corrupta do setor elétrico. Não há como negar que uma obra como esta traria mais dinheiro para a região no curto prazo. Mas um olhar menos imediatista deixa claro que a hidrelétrica representaria uma tragédia para a imensa maioria das pessoas.

Para a minha decepção, quando ouvi a gravação do programa, percebi que a barragem foi apresentada na sua introdução como sendo destinada para a produção de eletricidade para 23 milhões de lares brasileiros – algo como o total de casas de toda a Inglaterra! Posto desta forma, pode até parecer que os “grupos de ambientalistas no Brasil, desapontados com a aprovação preliminar da imensa hidrelétrica que, segundo eles, causaria devastação”, são uns radicais despreocupados com a melhoria das condições de vida das populações do terceiro mundo.

É claro que a BBC sabe do boom de mineração multinacional que já se desenvolve e que deve se multiplicar imensamente nos próximos anos na Amazônia. A bauxita, (responsável por grandes áreas já desmatadas na região, principalmente porque se acumula a poucos metros da superfície do solo, fazendo vastas áreas terminarem exploradas) precisa de grandes cargas de energia elétrica para se transformar no valioso alumínio. Para o benefício das mineradoras multinacionais, como a tal BHP Billiton, acima citada. É principalmente para isso que está se armando o maior desastre econômico e ambiental do século (e que ainda pesará extra na nossa conta de luz). Definitivamente, a razão não é iluminar “23 milhões de lares brasileiros”.

Sempre poderia se argumentar que o programa no qual a entrevista foi divulgada, o “Up All Night”, que vai ao ar na madrugada, da 1h às 5h, é um programa mais para boêmios, guardas noturnos e motoristas de táxi, que estariam mais interessados no Super Bowl anunciado logo depois, e que só de o simpático Rhod Sharp, apresentador do programa, tocar no assunto dos problemas de Belo Monte já seria uma coisa bacana. Mas a mesma bobagem dos 23 milhões lares também aparece na publicação principal da BBC sobre a licença ambiental (“Brazil grants environmental licence for Belo Monte dam” http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/8492577.stm ), que, aliás, termina assim: “superado este teste crítico, a barragem está agora muito mais próxima de tornar-se uma realidade, mas a controvérsia em torno dela não deve desaparecer” (Having passed this critical test the dam is now much closer to becoming a reality, but the controversy surrounding it is also unlikely to go away).

Errado. Conseguir a licença ambiental a todo custo com um ministro do Meio Ambiente colocado lá para isso não é teste crítico algum. Mas há notícias de que nesse momento milhares de índios estão se preparando para se deslocar do Mato Grosso até Altamira para engrossar as manifestações contra a construção de Belo Monte, concentrando-se na Volta Grande do Xingu, onde se pretende construir a barragem, para fundar bem naquele local uma grande aldeia com várias etnias, que impossibilitaria o início das obras. Este será, na verdade, o teste crítico da barragem: tendo que passar por cima dos índios, manter uma imagem internacional decente, apoiada na mentira de que esta eletricidade serviria ao povo brasileiro.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.

Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

EcoDebate, 25/02/2010

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