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Haiti, da adoção ao tráfico de crianças

Um menino, atrás dos portões do
Um menino, atrás dos portões do “SOS Children”, em Croix des Bouquets, perto de Port-au-Prince. Foto AFP/ROBERTO SCHMIDT/LE MONDE

Dez dias depois do terremoto que devastou o Haiti, uma funcionária da Unicef visitou colegas evacuados de Porto Príncipe para o hotel Santo Domingo, situado na beira-mar da capital dominicana. Um grupo de várias dezenas de crianças haitianas, acompanhadas de alguns estrangeiros, chama atenção. Interrogado, um dos responsáveis pelo grupo responde que essas crianças foram adotadas de maneira legal e que partem para a Alemanha.

A funcionária da Unicef pede em vão para ver os documentos das crianças, e alerta o Conselho Nacional para a Infância e a Adolescência (Conani), a instância dominicana encarregada da proteção dos menores. Trava-se uma discussão tensa, que sobe um tom com a chegada do embaixador da Alemanha em Santo Domingo, Christian Germann. Reportagem de Jean-Michel Caroit, em Porto Príncipe (Haiti) e Santo Domingo (República Dominicana), no Le Monde.

Peremptório, ele afirma ter as autorizações necessárias para a partida do grupo de crianças, tanto das autoridades haitianas quanto das dominicanas. Ele exige, e consegue, que o grupo de 63 crianças com menos de 5 anos voe na mesma noite para Frankfurt. Essa partida apressada ocorreu depois da diretriz do primeiro-ministro haitiano, Jean-Max Bellerive, datada de 20 de janeiro, que exige sua assinatura em qualquer adoção de crianças. Nenhuma das que partiram para a Alemanha obteve essa autorização assinada pelo primeiro-ministro.

Através de uma nota verbal datada de 17 de janeiro, a embaixada da Alemanha em Porto Príncipe havia pedido ao governo haitiano autorização para evacuar “mais de 40 crianças” em vias de adoção de diversos orfanatos do Haiti, sem apresentar uma lista nominal. São afinal 63 crianças que voaram de Santo Domingo para a Alemanha, com base em uma vaga resposta do ministro haitiano dos Assuntos Sociais, datada de 18 de janeiro, e de uma autorização do serviço dominicano de migração.

“Houve grandes movimentos de evacuação de crianças, totalizando mais de mil menores, pouco depois do terremoto. Algumas embaixadas fizeram sair de maneira precipitada as crianças em processo de adoção. É por isso que o primeiro-ministro anunciou em 20 de janeiro que nenhuma criança sairia sem sua assinatura”, explica Françoise Gruloos-Ackermans, representante da Unicef em Santo Domingo. “O abalo é uma grande tragédia para as crianças do Haiti. Tudo deve ser feito em seu interesse. E existem pessoas de boa vontade, mas algumas tiram partido do desastre para se dedicar a todo tipo de tráfico”, ela acrescenta.

Desde o fim de janeiro, a imprensa e as redes de televisão americanas deram mais espaço à odisséia de dez missionários batistas acusados de sequestro de crianças do que ao destino da população haitiana. O primeiro-ministro se irritou com esse desequilíbrio, “enquanto mais de um milhão de pessoas sofrem nas ruas”, depois do abalo que fez pelo menos 212 mil vítimas, segundo a última contagem.

Durante sua segunda visita a Porto Príncipe depois do terremoto, o ex-presidente americano Bill Clinton, encarregado pela ONU de coordenar a ajuda internacional, teve de explicar que não veio negociar a libertação dos missionários batistas. Membros da associação de caridade “Refúgio para uma nova vida das crianças”, baseada em Idaho (EUA), os dez batistas foram presos pela polícia haitiana em 30 de janeiro. Eles tentavam atravessar a fronteira em direção à República Dominicana com 33 crianças de 2 a 12 anos, sem autorização nem documentos de identidade.

Arriscando-se a penas de cinco a 15 anos de prisão, eles protestaram boa-fé, afirmando que queriam conduzir esses “órfãos sem ninguém para amá-los ou cuidar deles” para um “refúgio” perto de Cabarete, na costa norte da República Dominicana. Mas pelo menos 20 das crianças não eram órfãs. Seus pais são moradores pobres de Calebasse, uma aldeia de montanha próxima de Fermathe, duramente afetada pelo terremoto. Através de um pastor haitiano, Jean Sanbil, eles haviam entregado seus filhos aos batistas, que prometeram lhes dar uma boa educação na República Dominicana. Não se tratava de adoção. O site da associação na Internet, porém, fala em “oportunidades de adoção para famílias cristãs afetuosas”.

A “missão de salvamento dos órfãos haitianos” era descrita em detalhes nesse site. No domingo 24 de janeiro estava previsto “reunir cem órfãos nas ruas e orfanatos destruídos de Porto Príncipe, e depois voltar à República Dominicana”, sem qualquer menção aos procedimentos administrativos e legais. Segundo a imprensa americana, a fundadora da associação, Laura Silsby, teve problemas com a justiça de Idaho sobre dívidas e salários não pagos de sua companhia de vendas na Internet, Personal Shopper.

“Havia 380 mil órfãos e crianças abandonados antes do tremor de terra, hoje devemos esperar 420 mil”, estima Sérgio Abreu, responsável pela Visão Mundial, uma das principais ONGs de apadrinhamento de crianças. Ele não parou de fazer viagens entre Porto Príncipe e Jimani, na fronteira dominicana, desde 12 de janeiro, em busca de menores em dificuldades. “Antes do terremoto, os traficantes, com a cumplicidade de autoridades dos dois países, vendiam crianças haitianas por US$ 5 (cerca de R$9) para as redes de mendicância, prostituição infantil dos dois sexos ou trabalhos agrícolas. Hoje ouvi dizer na zona de fronteira que estrangeiros pagam até US$ 25 mil (cerca de R$ 46 mil) para adotar uma criança”, ele conta. “É evidentemente muito difícil ter provas, mas eu não me surpreenderia que algumas dessas crianças sejam vítimas de traficantes de órgãos”, ele acrescenta.

O tráfico de crianças na fronteira entre o Haiti e a República Dominicana se intensificou nos últimos anos. Segundo uma pesquisa realizada em 2002 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), pelo menos 2.500 menores haitianos são vítimas desse tráfico todos os anos.

Muitos deles são obrigados a mendigar nos cruzamentos das principais avenidas de Santo Domingo e Santiago, a segunda cidade do país. As redes de traficantes os obrigam a lhes entregar sua receita cotidiana. “É o resultado da extrema pobreza e da corrupção. As autoridades estão a par, mas fecham os olhos, há cumplicidades demais”, indigna-se Sérgio Abreu.

“O tráfico de crianças haitianas aumentou desde o tremor de terra, especialmente na zona de Dajabon”, afirma o padre Regino Martinez, um jesuíta que dirige a ONG Solidariedade Fronteiriça. “Muitas crianças atravessam o rio Massacre a nado e adultos as apanham em motocicletas. Os militares fecham os olhos”, acrescenta o religioso.

“Os traficantes de crianças aproveitam a confusão dos dias de mercado, quando um grande número de haitianos atravessa a fronteira para comprar e vender”, diz José Luis Fernandez, um jornalista de Dajabon. “Vemos muitos homens e mulheres transportando crianças pequenas em motonetas”, ele confirma

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Reportagem [Haïti, de l’adoption au trafic] do Le Monde, no UOL Notícias.

EcoDebate, 12/02/2010

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