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Artigo

Por que o ‘desmatamento zero’ na Amazônia é utopia, artigo de Ronaldo Pereira Santos

Série histórica do desmatamento
Série histórica do desmatamento. Infográfico do G1.

"O desmatamento zero é sim um sonho que ajudaria e muito a melhorar parte dos problemas regionais, mas - ainda que se concretize - não seria suficiente para trazer o desenvolvimento sustentável"

As florestas da Amazônia jamais deixarão de serem derrubadas. Pelo menos pelas taxas consideradas como zero. Esta é uma constatação difícil de ser encarada, dada a importância que a manutenção da floresta tem por diversos aspectos (ciclo da água e das chuvas, biodiversidade, celeiro e fonte de alimento e vida para as comunidades locais, riquezas ainda não exploradas e – o motivo mais recente – a questão do aquecimento global).

Além do valor econômico e ambiental em si, as florestas são certamente o principal ativo da região Norte sob outros aspectos, como cultural, religioso e até mesmo espiritual para os povos indígenas.

O desmatamento zero, como propagandeiam os governos federais e estaduais, é sim um sonho que ajudaria e muito a melhorar parte dos problemas regionais, mas – ainda que se concretize – não seria suficiente para trazer o desenvolvimento sustentável. Não bastaria, em tese, conservar o manto verde sem um plano de seu uso de forma inteligente. Ou seja, não vale a pena cultivar a ideia da floresta intocada (propostas de utilizar seu potencial existem aos montes ou “aos baldes”, como reza a gíria local).

Interessante, neste aspecto, são os dados disponíveis sobre a relação entre as regiões que desmataram mais e melhorias na qualidade de índices sociais, como educação e saúde; na verdade a riqueza produzida pelo desmatamento não é distribuída. Logo, a questão de se desmatar para gerar riquezas é uma afirmação que deve ser melhor analisada (veja estudo em inglês: “Boom-and-Bust Development Patterns Across the Amazon Deforestation Frontier”, publicado na revista americana Science em 12 de junho de 2009).

Os pontos da utopia

A primeira explicação que se observa é simples: a lei brasileira para florestas permite que haja derrubada, o chamado desmatamento legal. O Código Florestal (Lei 4.471/65) diz que, para a Amazônia Legal, é permitida a derrubada de até 20% da área de cada imóvel rural. Logo, para haver desmatamento zero seria necessário mudar a lei – o que não acontecerá neste sentido. Ponto.

Os defensores do zero na equação do desmatamento poderiam dizer que “trata-se de zerar o desmatamento ilegal” e não o que permite a Lei. Bem, para isso, deveríamos assumir que 80% da floresta devem ser mantidos e no máximo apenas 20% seriam permissíveis à derrubada. Levando em conta que 18% da região já estão no chão, temos apenas 2% de “folga”. Quantos anos mais para que apertemos a porca e não haja mais esta incômoda folga dentro do que chamar-se-ia de “derrubada legal”?

A primeira premissa é que, para os 2% ainda restantes, a derrubada seja totalmente legal. A segunda é que, dos 18% que já foram derrubados, a maioria foi ilegal. Cálculos iniciais mostram que mantido o ritmo médio dos últimos anos, em até 20 anos chegaríamos aos 20% (há algumas estimativas também feitas por P. Fearnside (2009), em “Brazil’s evolving proposal to control deforestation: Amazon still at risk”, revista Environmental Conservation; e cenários matemáticos para o desmatamento até 2050 feitos por B. Soares-Filho e outros em Estudos Avançados, maio de 2005).

Outra questão que depõe contra o plano desmatamento zero é a lógica de mercado. Aqui, produz-se boa parte dos produtos primários de peso importante na balança comercial (aquilo que vendemos aos outros países). Destaque para a soja e a carne bovina – sendo que a madeira também tem um papel importante, mas sofre menos os efeitos do mercado por não ser um produto de primeira necessidade. Os preços destes itens tendem a forçar (ou refrescar) a pressão sobre a derrubada florestal. Quanto mais a demanda lá fora cresce mais os satélites capturam áreas desmatadas.

Na ânsia de se fazer girar a roda da economia, os sucessivos governos têm criado muitos projetos cujos impactos são – em maioria – negativos. Os atuais vão ao encontro da produção de energia (as hidrelétricas do rio Madeira e Xingu), ao fortalecimento do transporte regional por meio da reativação de três rodovias federais que, segundo boa parte dos estudiosos, aumentou a pressão sobre a floresta, afirmam P. Fearnside e Paulo Graça, em artigo da Scientific American Brasil, 2006 (“O corte profundo na floresta: Reconstrução de estrada na Amazônia conectará trechos de floresta intocada a áreas de desmatamento”).

O governo diz que dá para controlar o desmatamento por meio de medidas conjugadas de combate, controle, fiscalização e incentivo à produção sustentável (governança). Infelizmente, o que se vê são frágeis órgãos estaduais de controle e fiscalização ambiental, com pouco pessoal – em comparação ao que se tem que ser feito em gigantescas áreas – e defasagem tecnológica.

Com efeito, o desmatamento caiu em 2009 e pode ser atribuído a este fato, mas também caiu o preço da soja e da carne no mercado. Em suma, os projetos atraem naturalmente mais gente para região e isso se traduz em mais queda de árvores.

Por fim, como tudo está relacionado a dinheiro, este não poderia deixar de figurar como um ponto a ser analisado. Qual o custo de zerar a queda dos troncos amazônicos? Os números são conflitantes, mas – no geral – são contas astronômicas. Passam certamente dos 15 bilhões de reais, dependendo de quem faz a conta. Como é muito dinheiro para garantir a floresta em pé, ninguém garante, até o momento, de onde este recurso virá (embora haja o Fundo Amazônia, mas é uma gota no oceano), o que torna a missão mais sonhadora.

Dinheiro por respeito às leis, funciona?

Se o uso do solo na região é incentivado pelo poder da grana, seria razoável assumir que bastaria distribuir alguns reais mensalmente que o desmatamento diminuiria, certo? Alguns teóricos asseguram que oferecer dinheiro para que os moradores da região mantenham a floresta intocada é um tiro no pé e pode gerar uma dependência nada salutar.

Outros, contudo, dizem ser este o único caminho, já que é difícil convencer os amazônidas a não derrubar as árvores sem um retorno palpável (e palatável): estes argumentam que teriam o mesmo direito de crescimento econômico daqueles que fizeram em outras regiões (leia-se: Sul e Sudeste). Este crescimento ou desenvolvimento econômico viria a reboque da exploração de áreas onde a floresta é empecilho. Estariam errados os que argumentam assim?

Esta é uma questão de fato complicada: como negar ao “caboclo” o direito ao melhor uma vez que dorme e acorda sobre, entre e dentro de riquezas? (parafraseando o governador do Amazonas, “não peçam que o ribeirinho proteja as árvores com seu filho morrendo de fome”. Retórica ou fundo de verdade? Há argumento para os dois lados).

O ponto crucial é que os defensores da Amazônia em pé não cogitam nem olhar para a possibilidade de submeter a região ao mesmo modelo de exploração econômica vista na Mata Atlântica e no Cerrado. Com efeito, os dados científicos disponíveis mostram que muita coisa que funciona em outras áreas não dá para fazer na região (há, sabidamente, problemas com a fertilidade dos solos, a infraestrutura ainda é limitada etc); outras, porém, são possíveis e há riquezas com valor de mercado que podem ser utilizadas com alta tecnologia e conhecimento cientifico – ao mesmo tempo em que pode oferecer proteção ambiental.

No campo o cenário muda

Ainda que não existissem os perturbadores argumentos citados acima, algo que não se pode esquecer é o que acontece na vida real. O contato com a realidade das muitas Amazônias mostra uma disparidade enorme entre o que se planeja em Brasília, Manaus ou Belém e o que se vive de sol-a-sol. É muito complicado trazer na prática a necessidade de não mais desmatar. Observando e vivenciando os pontos onde mais se desmata (por exemplo, os 43 municípios elencados pelo Ministério do Meio Ambiente), o que se vê é que o risco de fazê-lo é pequeno e as vantagens são grandes (lucro).

A idéia da moratória ao desmatamento – ação dura, sugerida por C. Clemente e N. Higuchi no artigo “A Amazônia e o futuro do Brasil”, revista Ciência e Cultura, julho de 2006 – é uma saída interessante, mas impraticável no cenário de “desgovernança” e ausência do poder público nestes locais onde a coisa realmente acontece. Ainda que a mão do Estado chegue aos pontos mais “civilizados”, logo veríamos ações judiciais das entidades do agronegócio (não são poucas e são influentes) reivindicando o direito à ordem econômica (art. 170 da Constituição – embora este também leve em conta a defesa ambiental).

Com tantos pontos negativos – como um solitário esquiador que vê uma avalanche que se aproxima -, onde está a lógica então de se propor o desmatamento zero? Bem, quem o faz chama para sim os holofotes, ganha atenção e – em tempos eleitorais – isso é uma “big” vantagem. Mas não somente há interesses políticos (ou politiqueiros). Há também tentativa honesta (pouca, bem verdade) de resolver um problema que está longe de ser solucionado: é uma das principais pedras no sapato de quem quer que seja. Ainda, há a desculpa citada acima, de que se fala do desmatamento legal, mas – como já demonstrado – nem este chegaria às taxas zeradas.

Reitera-se que ainda que nenhum tronco seja mais derrubado na Amazônia a região não ganha nada. Há 20 milhões de brasileiros vivendo nesta região e não se pode considerá-la como um paraíso intocado. É possível, sim, trazer benefícios socioeconômicos e ao mesmo tempo proteger os recursos biológicos; mas já estamos cansados de ler, escrever, ouvir e falar nisso, não é mesmo?

Por isso tudo, falar em desmatamento zero, aqui na Amazônia, não passa de uma grande utopia.

Ronaldo Pereira Santos é engenheiro agrônomo, especialista em gestão ambiental e mestre em ciências de florestas tropicais pelo Inpa.

Artigo publicado no Jornal da Ciência, SBPC, JC e-mail 3923, de 06 de Janeiro de 2010.

EcoDebate, 07/01/2010

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