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Notícia

Segregação social como externalização de conflitos ambientais

Segregação social como externalização de conflitos ambientais: a elitização do meio ambiente na APA-Sul, Região Metropolitana de Belo Horizonte

Klemens LaschefskiI; Heloisa Soares de Moura CostaII
IProfessor do Curso de Geografia, Departamento de Geografia, Universidade Federal de Visçosa – UFV
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Geografia (IGC/UFMG e pesquisadora do CNPq)

RESUMO

Este trabalho trata das relações de poder no conselho consultivo da APA-Sul, uma unidade de conservação localizada na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Observa-se uma sub-representação dos setores populares, e os representantes de renda média-alta temem a favelização da região. Conseqüentemente, o conflito ambiental surge em torno da perda da qualidade ambiental nas referidas áreas, em parte associada às alternativas de habitação popular, abrindo oportunidade para discursos que justifiquem a segregação social no espaço e a elitização da paisagem em questão.

1 Introdução

Desde o início dos anos 90, tornou-se um paradigma o termo desenvolvimento sustentável para políticas públicas que visam entrelaçar os meios ambientais, sociais e econômicos. Neste contexto, surgiram novas formas de planejamento e gestão territorial envolvendo a mobilização do conhecimento local, a criação de estruturas de diálogo e a negociação. Um exemplo deste tipo de planejamento é a categoria, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), denominada área de proteção ambiental (APA)1. Trata-se de uma unidade de uso sustentável que tem por objetivo proteger a biodiversidade frente ao desenvolvimento econômico, mantendo o equilíbrio social e ambiental. A implementação das APAs prevê a criação de um conselho consultivo, composto por representantes das instituições públicas, do setor privado e da sociedade civil, com o objetivo de conciliar os diversos necessidades e interesses. Dessa forma, espera-se solucionar conflitos sócio-ambientais por meio da construção de consensos sobre determinadas questões.

Porém, sem questionar o princípio da participação como necessidade, o que se observa é que tais iniciativas enfrentam grandes dificuldades na sua concretização, devido a divergências entre racionalidades e interesses dos segmentos sociais envolvidos. Os resultados refletem, freqüentemente, as prioridades de determinados grupos de influência, muitas vezes contraditórias entre si, revelando, assim, as relações de poder neste campo.

Neste trabalho, pretendemos analisar tais aspectos a partir do exemplo da implementação da Área de Proteção Ambiental Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte (APA-Sul). Focalizamos, sobretudo, os segmentos sociais representados no conselho, como esse conselho influencia o planejamento territorial da APA, quais concepções de espaço tornam-se dominantes e, finalmente, quais e como foram tratados os conflitos ambientais na região. Baseamos a análise em abordagens teóricas da política ecológica, combinadas com o conceito da produção do espaço do filósofo Henri Lefebvre e o conceito de campo do sociólogo e antropólogo Pierre Bourdieu.

2 Considerações teóricas

Após o surgimento dos problemas ambientais com abrangência internacional nos anos 60, emergiram diversos movimentos sociais questionando a crescente alienação da moderna sociedade industrial em relação à natureza. A crítica ambiental não somente ganhou relevância na política internacional, por exemplo, nas conferências sobre desenvolvimento e meio ambiente, em Estocolmo-1972 e na Eco-1992, mas também influenciou debates epistemológicos no campo da ciência. Entre as abordagens elaboradas em diversas disciplinas acadêmicas que se esforçam em recuperar a imbricação entre natureza e cultura, destaca-se a ecologia política (ZHOURI et al., 2005, p. 13). Os autores pertencentes a essa corrente de pensamento rejeitam a idéia da natureza como ambiente neutro. Segundo eles, a degradação ambiental como resultado da interação dos diversos atores com o meio ambiente físico são processos políticos que, além de influenciarem a situação econômica de forma positiva ou negativa, refletem também mudanças nas relações de poder dos envolvidos.

Uma tentativa de sistematizar os elementos básicos das várias linhas de pensamento no âmbito da ecologia política foi apresentada por Bryant e Bailey (1997). Segundo os autores, a ecologia política destaca o meio ambiente politizado (politicised environment), em que os atores exercem poder não apenas através dos direitos de propriedade sobre o meio ambiente ou da transferência de impactos ambientais aos outros atores, mas também o exercem através do acesso e do controle relativos ao capital humano e financeiro, da influência no planejamento de projetos ambientais e de meios discursivos. Porém, os autores alegam também que atores mais fracos têm oportunidades de exercer poder, sobretudo com base no conhecimento local e na criação de redes, assim como através da elaboração de um contra-discurso, questionando a legitimidade de atores mais poderosos (BRYANT; BAILEY, 1997, p. 39-46)

Dessa forma, a ecologia política está preocupada em analisar problemas ambientais no contexto sócio-político, focalizando a identificação dos atores ambientais e os seus interesses específicos. A análise inclui as interdependências e divergências entre os atores nos diferentes níveis no eixo global-local, assim como as diferentes racionalidades que orientam suas ações e, finalmente, os impactos de tais ações na configuração do meio ambiente no local. As mudanças refletem-se na história ambiental da referida região em questão, para identificar os vencedores e perdedores de conflitos sobre a utilização dos recursos. Acselrad (2004, p. 26) definiu tais conflitos ambientais mais precisamente como

“… aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis – transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos – decorrentes do exercício das práticas de outros grupos.”

Nessa definição, foi apontada claramente a questão territorial ou espacial como resultado da relação entre poder e meio ambiente.

A partir daí pode-se associar a ecologia política ao conceito da produção do espaço de Lefebvre (1991). Em analogia à interpretação do meio ambiente da ecologia política, o autor recusa a visão do espaço como algo dado, neutro, imutável, ou um vazio em que se espalham coisas ou objetos. Pelo contrário, o espaço é social e politicamente construído. Cada sociedade produz o seu próprio espaço, contudo, segundo Lefebvre, as sociedades pré-industriais são submetidas à transformação pelo capitalismo o que, finalmente, seria superado pelo socialismo. Diferentemente de Karl Marx, Lefebvre viu, no auge da reestruturação e flexibilização dos processos produtivos nas indústrias fordistas, o potencial revolucionário nas lutas sociais no espaço urbano pós-industrial e não nas relações sociais entre capitalistas e trabalhadores industriais.

Lefebvre diferencia, sobretudo, em relação à produção do espaço no capitalismo, o espaço abstrato, hierárquico, resultado da ação dos que pretendem organizar e controlar a sociedade – os agentes políticos, os interesses econômicos e os planejadores – e o espaço concreto, resultado da práxis espacial ou da experiência cotidiana. O último materializa-se através das ações de todos os membros da sociedade, inclusive as dos atores dominantes.

O espaço abstrato é resultado do avanço do capitalismo, que se reflete, por um lado, na tendência à homogeneização do espaço pela subordinação do mesmo ao valor da troca, tornando-o substituível como qualquer mercadoria. Por outro lado, como conseqüência da comercialização, há uma fragmentação do espaço no nível local em lotes ou parcelas de propriedade privada, os quais são negociados com base nas regras da renda fundiária e da especulação imobiliária.

Porém, mesmo nas sociedades ditas capitalistas, o uso do espaço está longe de ser um produto da mão do mercado, mas é constituído pela superposição de conhecimento e poder dos setores dominantes, ou seja, dos atores econômicos e do Estado na sua função de facilitador do desenvolvimento econômico. Isso porque o espaço, além de ser produto ou mercadoria, é também meio de produção, constituindo uma contradição inerente do capitalismo que resulta na necessidade de ordenamento desse mesmo espaço pelos poderes públicos. A regulação do uso do solo, em princípio, determina o destino de áreas para a produção agrícola ou a expansão urbana, para áreas públicas ou para fins da preservação da cultura ou da natureza, etc. Tais decisões não se baseiam somente na configuração física do espaço, mas também na disponibilidade de técnicas e do controle do uso (legislação, planos do manejo, etc.) Entretanto, o próprio mercado contradiz a tendência da homogeneização do espaço capitalista, quando o valor da referida área depende de certas características específicas, como, por exemplo, em regiões destinadas ao turismo (LEFEBVRE, 1991).

Conseqüentemente, não é possível integrar no espaço abstrato – quantificável, planejável e substituível -, resultado ideal da industrialização capitalista, os aspectos qualitativos, ou seja, não-capitalistas, baseados em valores do uso. No espaço social concreto, caracterizado pela transformação permanente, há sempre a tendência a ultrapassar os limites formais e regulamentados do espaço abstrato concebido pelos atores dominantes. Isso ocorre, por exemplo, quando moradores lutam contra uma rodovia ou reivindicam mais áreas livres destinadas ao lazer ou a outras atividades da comunidade, criando, assim, contra-espaços ao sistema da produção capitalista e à expansão ilimitada do privado.

A partir dessas reflexões, Lefebvre apresentou uma tríade conceitual como base da produção social e política do espaço: o espaço na prática (o espaço real, usado); a representação do espaço (o espaço planejado, burocrático, abstrato e representado em mapas); e, finalmente, o espaço de representação (o espaço produzido e modificado no tempo, através do uso, carregado de símbolos e significados, o espaço real e imaginado)(Quadro 1):

quadro 1

Cabe destacar, nesse contexto, o papel central dos planejadores, e a sua concepção de espaço representada em textos e mapas, em geral, uma abstração do cotidiano. Quando, na execução de planos, os planejadores projetam tal concepção no espaço vivido, tornando a abstração algo concreto, há uma “…dupla substituição, dupla negação que estabelece uma afirmação ilusória: o retorno à vida ‘real’.” (LEFEBVRE, 1999, p. 167)

No geral, em estados capitalistas, o planejamento concebe o espaço abstrato para equilibrar a heterogeneidade do espaço concreto, através da absorção dos meios de produção não-capitalista. Conseqüentemente, segundo Lefebvre, a única possibilidade para a reintegração de um certo pluralismo no estado centralizado é o desafio representado pelos poderes locais, juntando forças locais e regionais para criar, fortalecer e, até um certo grau, administrar unidades territoriais (LEFEBVRE, 1991, p. 381, 382). Nesse contexto, os movimentos sociais urbanos, lutando por espaços diferenciais, representam um potencial revolucionário.

Porém, vários autores alegam que as constelações políticas apresentam-se hoje mais heterogêneas, frente às mudanças durante as últimas três décadas no âmbito do declínio do fordismo, marcadas por um deslocamento do clima político de liberal-progressista a neoliberal/conservador e pela orientação de políticas nacionais e urbanas associadas a processos globais. Além disso, observa-se a crescente relevância dos movimentos sociais como atores na transformação do governo urbano em governança urbana e na reestruturação do Estado local e da cidade global (KEIL; BRENNER, 2003). Como esse processo foi fortalecido pela criação de novas formas da participação da sociedade civil, é preciso analisar o Estado e os movimentos sociais não como adversários fixos, mas sim como atores cujas relações são sujeitos de mudanças (MAGNUSSEN, 1997 apud KEIL; BRENNER, 2003).

A tendência de experimentar formas da participação da chamada sociedade civil na elaboração de políticas públicas intensificou-se, sobretudo, a partir da Cúpula da Terra no Rio de Janeiro, a ECO-1992, quando foi internacionalmente reconhecida a noção do desenvolvimento sustentável. O objetivo dessa política é a conciliação dos interesses divergentes (econômicos, sociais e ambientais) para alcançar um consenso sobre o caminho para a criação de uma sociedade sustentável. Os exemplos mais conhecidos, nesse contexto, são as iniciativas para a elaboração de Agendas 21, mas também o SNUC pode ser visto na mesma perspectiva, ao pressupor a criação de conselhos consultivos para a criação das chamadas unidades de conservação de uso sustentável, nas quais se encaixa a APA-Sul aqui discutida.

Podemos entender esses conselhos como novas formas de gestão do espaço, nas quais, pelo menos na teoria, há a possibilidade da defesa de modos de produção não-capitalistas em espaços diferenciais, numa arena política formalizada e, assim, permitir uma certa relativização do Estado enquanto poder dominante na determinação de condicionantes da produção do espaço. Porém, abrem-se novos campos de jogos de poder, constituindo desafios teóricos a respeito da transformação dos problemas ambientais e sociais em interesses negociáveis, da representação desses últimos, dos discursos e das estratégias dos atores envolvidos, das hierarquias criadas. As relações e alianças entre os atores resultam freqüentemente na superposição de posicionamentos, dificultando, assim, a identificação dos diversos discursos aos respectivos grupos de atores.

Os conselhos participativos, entretanto, configuram campos sociais, definidos, pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, como loci onde “…se trava uma luta concorrencial entre atores em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão” (apud ORTIZ, 1983, p. 19). Nesses, manifestam-se relações de poder a partir do capital social, que determina o renome e a posição dos integrantes do campo2. Assim, é possível diferenciar atores dominantes, ou aqueles que possuem um máximo de capital social, e atores dominados, ou aqueles caracterizados pela ausência ou raridade de capital social específico.

Porém, o campo é uma estrutura dinâmica em que os integrantes podem ganhar ou perder o seu capital social e, conseqüentemente, subir ou descer na hierarquia. Cada campo, por si mesmo, produz capital social e um habitus, o último entendido como um sistema de disposições duráveis que configuram a matriz de percepções, de apreciações e de ações, que se realiza em determinadas condições sociais. O habitus é um certo modo dos agentes apresentarem-se, comportarem-se e de se relacionarem entre si, funcionando

“…como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem produto da ação organizadora de um maestro.” (BOURDIEU, 1972 apud ORTIZ, 1983, p. 15).

Dessa forma, o habitus determina, em parte inconscientemente, as ações dos agentes e o modus operandi no referido campo.

Assim, o campo delimita uma arena conflitiva, na qual os agentes disputam o poder e o seu posicionamento na hierarquia do mesmo, embora todos compartilhem certos pressupostos comuns, que ordenam o seu funcionamento. Os agentes do pólo dominante, através de suas práticas ortodoxas, pretendem conservar intacto o seu capital social acumulado, enquanto os dominados tendem, através das suas práticas heterodoxas e estratégias de subversão, desacreditar os detentores reais de um capital legítimo, porém, sem que se contestem os princípios que regem a estruturação do campo. Bourdieu introduziu a noção de doxa para esse conjunto de pressupostos que os antagonistas da ortodoxia e heterodoxia compartilham e admitem tacitamente. Trata-se do fundo necessário para o funcionamento do campo em que os dominantes e dominados agem como adversários cúmplices, que através do confronto permanente delimitam o campo legítimo da discussão. Nesse contexto, a estratégia herética da heterodoxia funciona como reforço da ordem do campo “… porque sua oposição implica o reconhecimento dos interesses que estão em jogo” (BOURDIEU, 1976, p. 32).

A partir dos conceitos supracitados, as novas instituições participativas podem ser entendidas como a criação artificial de campos conflitivos, em que os diversos grupos de interesse lutam pelo poder, pela dominação da doxa e pela opinião hegemônica divulgada pelo referido campo. No caso de um planejamento territorial, como previsto na criação da APA-Sul, interessam, sobretudo, quais as representações do espaço de agentes diferentes constituem a doxa para a concepção do espaço, influenciando, assim, a produção do espaço na APA-Sul. Por outro lado, interessa avaliar se todos segmentos da sociedade são mesmo representados, ou se há alguns que não conseguem entrar no campo. Neste último caso, perguntam-se quais as conseqüências quando a concepção de espaço, elaborado pelo conselho, é implementada, ou seja, quais as conseqüências no espaço vivido.

Dessa forma, espera-se que uma análise a partir do conceito do espaço de Lefebvre e do conceito do campo de Bourdieu seja apropriada para enriquecer abordagens da ecologia política, que focalizam a questão do poder em relação aos conflitos ambientais.

3 Conflitos ambientais na APA-Sul

A APA-Sul abrange uma área de, aproximadamente, 170.000 ha, localizada nas bacias hidrográficas do Rio São Francisco e do Rio Doce, no Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Os 13 municípios com participação na APA são: Barão de Cocais, Belo Horizonte, Brumadinho, Caeté, Catas Altas, Ibirité, Itabirito, Mário Campos, Nova Lima, Raposos, Rio Acima, Santa Bárbara e Sarzedo (Figura 1).

figura 1

A região é fundamental para o abastecimento com água de, aproximadamente, 70% da população de Belo Horizonte e 50% da população metropolitana. Segundo a Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado de Minas Gerais (SEMAD) (SEMAD, 2006), a APA-Sul possui uma das maiores extensões de cobertura vegetal nativa contínua do estado. Observa-se uma grande diversidade de biotópos, incluindo as matas úmidas de fundos de vales, as matas de altitude e as grandes formações rochosas.

Já no século XVIII surgiram núcleos de população em decorrência da exploração da mineração, inicialmente em busca do ouro, e, posteriormente, substituída pela mineração do ferro. A até então baixa densidade populacional, numa área tão próxima a Belo Horizonte, é parcialmente explicável pelas dificuldades de acesso devido ao relevo acentuado, com destaque para a Serra do Curral, um patrimônio natural da cidade. A existência de áreas preservadas é explicada também, paradoxalmente, pela concentração da propriedade das terras nas mãos de empresas mineradoras, o que acabou impedindo uma ocupação urbana (COSTA, 2003, p. 169). Contudo, para as mineradoras a produção imobiliária na forma de empreendimentos fechados, genericamente conhecidos como condomínios3, localizados em áreas de grande beleza cênica, coloca-se como nova alternativa econômica face ao previsto esgotamento da atividade de mineração.

A proliferação de loteamentos fechados a partir de iniciativas privadas gerou, entretanto, novos conflitos, envolvendo, além de impasses entre mineração e moradores dos antigos povoados, questões como a preservação da natureza. Portanto, a APA-Sul, teve como desafio a regulamentação e a conciliação de demandas divergentes em relação ao seu território.

4 O campo político da criação da APA-Sul

Há duas instituições responsáveis pela gestão da APA-Sul: o Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais (COPAM), órgão deliberativo para assuntos sobre meio ambiente em geral, e o conselho consultivo da APA-Sul, que elabora propostas para o ordenamento dessa unidade de conservação. Ambos os conselhos contam formalmente com uma estrutura que prevê a participação do Estado, do setor privado e da chamada sociedade civil. Porém, quando se considera a composição dos conselhos, observa-se uma forte representação do Estado. No plenário do COPAM, há quinze representantes do setor público, quatro do setor privado, oito do setor técnico e profissional de meio ambiente, quatro de organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas e um dos sindicatos. Já, no conselho consultivo, há seis representantes do setor público (três representantes do estado e três de prefeituras), três representantes de associações empresariais e três representantes de ONGs ambientalistas. A concentração de poder do Estado, nos conselhos, é ainda maior quando se considera que algumas empresas são estaduais e também que algumas ONGs mantêm parcerias com empresas e com o Estado. Dessa forma, há uma grande aproximação entre os atores representando setores formalmente distintos.

A criação dos conselhos foi resultado de conflitos entre os agentes supracitados, sobretudo, quando ambientalistas, nos anos 70 e 80, radicalizaram a resistência contra o avanço do setor econômico em áreas consideradas importantes para a biodiversidade ou de alta qualidade ambiental. Contudo, segundo Carneiro (2005), pode-se observar, no caso do COPAM, o sucessivo desaparecimento de confrontos entre os atores participantes, explicado pelo estabelecimento de uma doxa que constituiu a tendência à resolução consensual dos casos tratados. Em conseqüência,

“…o jogo transforma-se numa monótona disputa técnica e “jurídica” sobre o grau de rigor a ser aplicado a cada caso… Repete-se, assim, em quase todos os fóruns, um mesmo padrão de desenvolvimento: após um período inicial, em que os conflitos são mais acirrados e as questões de princípio vêm à tona, assiste-se à rotinização progressiva dos procedimentos, à conversão de conflitos num funcionamento automatizado de uma sistemática de julgamento de casos.” (CARNEIRO, 2005, p. 77)

No âmbito da criação da APA-Sul, observou-se um processo similar. Segundo Freitas (2004), formaram-se, no início dos anos 90, várias associações na região de Macacos4, para denunciar a degradação ecológica causada pela implementação de infraestrutura para os novos investimentos imobiliários e atividades de mineração. Após o sucesso em alguns casos denunciados, estabeleceu-se um diálogo entre os órgãos ambientais do Estado e as mineradoras. Em decorrência, os movimentos juntaram-se para criar o Conselho Comunitário de São Sebastião das Águas Claras, com o objetivo de elaborar propostas para o ordenamento do uso do solo na região. O resultado foi a apresentação da primeira proposta para a criação de uma área de proteção ambiental aos órgãos estaduais responsáveis para a política ambiental, a Fundação Estadual Do Meio Ambiente (FEAM) e a COPAM. A FEAM, por sua vez, elaborou uma proposta ampliada para criação da então denominada APA- Sul5. Enquanto a proposta, em princípio, foi aceita por todas as partes, temiam os representantes do setor de mineração e alguns prefeitos que a concretização da demarcação da APA trouxesse restrições para o desenvolvimento econômico na região. Para amenizar a tensão, foi realizado, em março de 1993, o “1º Seminário sobre a Área de Proteção Ambiental Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte – APA Sul RMBH” que contou com a participação de representantes do empresariado atuante na região, de ONGs6 e de instituições públicas e prefeituras (FEAM, 1992 apud FREITAS, 2004, p. 101).

As entidades ambientalistas avaliaram positivamente o processo, pois “os principais agentes que atuam na região foram identificados e participaram da discussão”7. Embora a discussão tenha reafirmado as posições e linhas de conflitos entre os atores envolvidos, os participantes mostraram-se abertos para a continuação do diálogo em busca de um consenso. Assim, o seminário foi o primeiro passo para a consolidação do campo e de seus participantes e contribuiu para a aceitação da proposta da APA, porém sem resolver o conflito principal: a criação da APA anterior ou posteriormente à elaboração do Zoneamento Ecológico-Econômico8, o que seria a base para o ordenamento do espaço. O Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM) e outras entidades representando o setor e alguns prefeitos de municípios inseridos na APA temiam que a aprovação da APA, sem antes haver um zoneamento, pudesse atrapalhar o crescimento econômico na região. Contudo, a FEAM favoreceu a aprovação do decreto antes do zoneamento, para evitar uma degradação acelerada da região. Cabe destacar que a Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA), uma ONG que viria a manter parcerias com as mineradoras, defendia a primeira posição, provocando assim o rompimento com os demais ambientalistas.

Após um longo processo de consultas e da elaboração de estudos preliminares, a APA-Sul foi aprovada pelo COPAM, em junho de 1994 (decreto estadual nº. 35.624). Contudo o impasse entre as duas posições não foi resolvido, pois a decisão foi condicionada a um prazo de “…dezoito meses, prorrogáveis a partir da publicação do decreto para o macrozoneamento” (FEAM, 1992 apud FREITAS, 2004, p. 108). Com essa formulação vaga, o COPAM conseguiu consolidar a doxa do campo, já que todos os atores com as suas divergências poderiam fazer a sua própria leitura da decisão para sustentar as suas posições. Dessa forma, houve um congelamento estratégico da implementação da APA-Sul, enquanto as atividades da mineração e do setor imobiliário continuavam (FREITAS, 2004, p. 122).

O conselho consultivo da APA, com a composição participativa supracitada, foi finalmente constituído em julho de 1996 pelo decreto 38.1829. A competência principal desse conselho era, naquele momento, a emissão de pareceres prévios para subsidiar a FEAM e o COPAM em processos de licenciamento de empreendimentos localizados na área. A partir daí, os conflitos entre os representantes do setor econômico e os ambientalistas deslocaram-se para o conteúdo e a abrangência dos pareceres elaborados pelo conselho. Os ambientalistas conseguiram impor os seus posicionamentos resultando no fato de que os pareceres não eram consensuais. Em conseqüência, o COPAM, atendendo a uma constelação de poderes em benefício dos interesses econômicos, optou por não considerar as manifestações do conselho consultivo nos processos de licenciamento no perímetro da APA-Sul.

As competências do conselho consultivo foram, após várias reivindicações dos movimentos ambientalistas, formalizadas pela resolução 027 (1998) e pela deliberação normativa n. 45 (07/2001). Determinou-se que o papel do conselho é “…propor, examinar, acompanhar e emitir manifestação prévia com relação aos licenciamentos e demais atos de autorização de intervenção em recursos ambientais, na área compreendida pela APA-Sul/RMBH, de acordo com a legislação vigente”.

A partir daí, o conselho consultivo adotou, na prática, uma postura semelhante à do COPAM em relação aos processos de licenciamento, resultando na aprovação de quase todas as licenças, porém, com listagens de condicionantes referentes aos assuntos não resolvidos10. Dessa forma, assim como na questão do ZEE, há uma tendência em transferir os conflitos para as etapas subseqüentes nos referidos processos administrativos e, freqüentemente, as pendências nunca são solucionadas (ZHOURI et al., 2005).

Ao longo dos anos, observou-se a adoção de um certo habitus pelos agentes do campo da política ambiental, para não colocar em risco os avanços específicos gerados durante a consolidação do campo. Esse se reflete numa tendência a excluir posições radicais e promover decisões consensuais, evitando contrariar os interesses da ortodoxia, composta pelas mineradoras, por segmentos do poder público e por organizações ambientalistas vinculadas ao setor. Por outro lado, o conselho promove estratégias de adequação ambiental e demonstra um certo cuidado com questões ecológicas como, por exemplo, na questão do ZEE. Assim, o campo ambiental conseguiu criar uma imagem de um “…jogo sério e responsável, no qual os cuidados com a ‘defesa do meio ambiente’ como um ‘bem público’ não se curvam mecanicamente aos ‘interesses econômicos’, mas também não os obstaculizam ‘irresponsavelmente'” (CARNEIRO, 2005, p. 78).

No contexto deste trabalho, cabe lembrar daqueles excluídos do jogo. Segundo Freitas (2004, p. 150) foi perceptível, desde o início da discussão da APA, um certo localismo, particularismo e elitismo dos movimentos ecológicos da APA-Sul. As tentativas para incluir a população nativa da região foram tímidas e primordialmente direcionadas à educação ambiental. A atuação centrou-se na elaboração de normas para a APA-Sul e a criação do conselho consultivo. Para participar das discussões nesse novo campo político da APA-Sul, é necessário um mínimo de capital social na forma de conhecimentos técnicos, jurídicos, políticos, para entender os procedimentos administrativos e as estratégias dos diversos atores. Além disso, pode-se observar a acumulação de capital específico dos pioneiros do campo, por exemplo, através das relações pessoais estabelecidas ao longo dos anos, o que facilita a atuação dentro das regras do jogo. A falta desse capital social impede a participação de segmentos sociais com prioridades divergentes das do campo.

5 Consensos e conflitos sobre a concepção de espaço da APA-Sul

Após discutir as relações de poder no campo da política ambiental mineira, com respeito à criação da APA-Sul, cabe analisar as percepções divergentes no campo sobre a produção do espaço para identificar os principais conflitos ambientais.

A idéia inicial da criação da APA vinha dos movimentos ecológicos e alguns técnicos da FEAM, que podem ser considerados a heterodoxia do campo, ao tentar limitar as atividades econômicas na área. Tais atores, ao defender o impedimento de atividades humanas em certas áreas consideradas importantes para a proteção da biodiversidade (natureza intocada) e da água, representam uma visão eco-centrada. Contudo, os movimentos ecológicos compostos por moradores da região também percebem os impactos das atividades das mineradoras e das atividades imobiliárias como ameaças à qualidade da vida, entendida como harmonia entre a preservação da natureza, a estética das paisagens e a paz social.

Os movimentos ecológicos não conseguiram ampliar a sua base de apoio através da inclusão dos moradores nativos da região, os quais com freqüência, percebem a preservação da natureza como sinônimo de várias restrições ao uso da terra e como freio do desenvolvimento, ameaçando as indústrias e, assim, o mercado do trabalho. A atitude dos movimentos ecológicos com relação à população local é, de certo modo, paternalista, pois os moradores antigos não são vistos como parceiros na luta, mas sim como objetos alvo da educação ambiental, sobretudo, em relação à necessidade da proteção da natureza. Por outro lado, freqüentemente, os habitantes nativos dos povoados foram “naturalizados”, ou seja, vistos como portadores de valores naturais, exóticos e tradicionais, e, assim, também considerados como “objetos de proteção” (CAMARGOS, 2004, p. 138).

Esta visão é parcialmente compartilhada pela ortodoxia do campo, que incluiu tais moradores em estratégias de estimular o desenvolvimento local através da promoção do turismo ecológico ou rural. Nesse contexto, a arquitetura, o artesanato, a culinária e o modo de ser dos primeiros habitantes são considerados junto com as cachoeiras e o verde da região como características que aumentam o potencial econômico da região (CAMARGOS, 2004, p. 138; COSTA, 2003, p. 177).

Os novos empreendimentos imobiliários apresentam-se como compatíveis com essas concepções do espaço descritas acima. O Alphaville – Lagoa dos Ingleses é apresentado como “Economicamente viável, ecologicamente correto e urbanisticamente perfeito”. Além disso, segundo os empreendedores “….A concepção de Alphaville é coerente com a ocupação do espaço de Nova Lima, a potencialidade da vegetação, clima da região e vocação cultural da comunidade mineira” (ALPHAVILLE, 2006). O termo ecologicamente correto refere-se, por um lado, à proximidade com a natureza, ou melhor, à paisagem de beleza cênica como atributo da qualidade de vida, e, por outro lado, aos sistemas de tratamento de água e esgoto e à coleta seletiva de lixo. Assim, ecologia e natureza tornam-se parte do produto “solo urbanizado”, acrescentando valor econômico ao produto, materializado pelos preços imobiliários. Assim, aparentemente, não há conflito nessa formulação.

O maior conflito no campo, porém, iniciou-se entre os movimentos ecológicos da APA-Sul e as mineradoras. Nesse contexto, a proposta da criação de uma unidade de conservação com o objetivo de impedir a atividade da mineração em algumas áreas pode ser lida, segundo Lefebvre, como a criação de um contra-espaço limitando o avanço da produção capitalista. Contudo, essa visão foi parcialmente corrigida, através de formulações das associações ambientalistas, segundo as quais, pode-se exercer, na área, a mineração ou qualquer outra atividade econômica, desde que respeitada a legislação ambiental. Os impactos ambientais são aceitáveis quando há propostas técnicas para a sua mitigação ou compensação, via, por exemplo, a recuperação de áreas já exploradas com vegetação nativa. Há uma inversão do argumento: “a riqueza natural da região e o estágio de conservação de suas matas seriam resultado do manejo anterior, desenvolvido pelos grupos mineradoras, de forma simultânea às atividades de extração mineral” (CAMARGOS, 2004, p. 139).

Mais um elemento nas estratégias da adequação ambiental é a criação de reservas particulares de patrimônio natural (RPPN)11. As mineradoras e os empreendedores vislumbraram na implementação desse tipo de unidade de conservação, particularmente em áreas com pouca viabilidade econômica, uma medida de grande visibilidade ambiental que agrega valor ao produto e auxilia o marketing ambiental das empresas. Cabe lembrar que áreas transformadas em RPPNs são isentas do imposto territorial rural (ITR) (FREITAS, 2004, p. 210). Assim, tornam-se um espaço supostamente não comercializável, compatível com as atividades econômicas. Nessas condições, o IBRAM aceitou a proposta de elaborar um plano de manejo prévio e, finalmente, o ZEE.

A partir dessa breve caracterização das concepções diferentes no campo político da criação da APA-Sul, observa-se um consenso sobre a necessidade de proteção da natureza, o que significa, aparentemente, a superação de um conflito profundo entre os atores no campo. Contudo, a proteção da natureza somente é aceita quando a medida adotada: 1) oferece benefícios econômicos diretos; 2) oferece benefícios indiretos através de um discurso ecológico que contribui para a agregação de valor a uma atividade econômica; e 3) é sustentada por um discurso científico-técnico justificando a proteção de certas áreas.

O último ponto refere-se claramente a características qualitativas das áreas em questão, que podem ser consideradas, na terminologia de Lefebvre, como espaços não capitalistas. É exatamente aí que surgem os conflitos mais intensos dentro do campo. Esse fato é bem visível na luta política em torno do ZEE, considerado como base para as estratégias de desenvolvimento sustentável na APA-Sul. Na prática, esse instrumento deve apresentar o ordenamento territorial correspondente a todas as demandas dos integrantes do campo, constituindo, assim, o consenso sobre a concepção de espaço. Contudo, o ZEE permite a transferência dos conflitos no campo para o nível técnico-administrativo e, como as pesquisas e processos administrativos são demorados, abrem-se oportunidades para a criação de fatos consumados no espaço concreto12.

6 O conflito “ambientalizado”: segregação social

O entendimento da noção de desenvolvimento sustentável, no campo político da criação da APA-Sul, parece reduzir-se a questões relativas à distribuição do espaço, com o objetivo de satisfazer as demandas territoriais, sobretudo, de cada grupo de interesse representado no mesmo. O consenso sobre a concepção de espaço foi bem resumido, na proposta não aprovada de plano diretor de Nova Lima, como o “desenvolvimento urbano em bases ambientalmente sustentáveis”. O mesmo destaca a necessidade de “…manutenção dos índices de qualidade de vida, que tornam Nova Lima atraente para investimentos em imóveis residenciais” porque “…pelo menos por enquanto estão estes interesses predominantemente relacionados com uma população de maior poder aquisitivo, com capacidade …de contribuir ainda para a expansão do consumo de bens e serviços no município.” (PMNL, 2002, p. 9)

Essa afirmação aponta efeitos positivos em relação à economia do município que ultrapassam os limites dos novos espaços urbanos. Contudo, a proposta de plano diretor também alega que “..há que se alertar que justamente essa expansão da demanda de bens e serviços…pode induzir à formação de aglomerações urbanas irregulares e predatórias” (PMNL, 2002, p. 9). Porém, ao invés de apresentar medidas concretas para enfrentar esse problema, o estudo constata que “… as exigências de urbanização poderiam inviabilizar o lote urbano para a população carente, na medida em que o lote urbanizado é hoje um produto caro, fora do alcance da maioria da população brasileira.” (PMNL, 2002, p. 75)

Esse tema constituiu-se um ponto de conflito na audiência pública ocorrida no âmbito do processo de licenciamento da segunda fase de implantação do empreendimento imobiliário Alphaville – Lagoa dos Ingleses, localizado na APA-Sul, na proximidade do trevo rodoviário para Ouro Preto, na BR 040, que liga Belo Horizonte e Rio de Janeiro. O Alphaville, cuja primeira etapa foi aprovada em 1999, foi o primeiro empreendimento desse porte no interior da APA-Sul. Ao final da implantação da segunda etapa, o projeto pretende oferecer toda a infra-estrutura correspondente a uma cidade de cerca de 27.000 habitantes (moradores das áreas vizinhas incluídos)13. Durante a audiência pública os ambientalistas apontaram a possibilidade de urbanização descontrolada nos arredores do complexo Alphaville – Lagoa dos Ingleses. Nas últimas duas décadas, esse processo intensificou-se naquela região com a ocupação de outros loteamentos, em particular no bairro Jardim Canadá, localizado à beira da BR 040, um dos poucos espaços possíveis de urbanização espontânea da região. Contudo, a atividade imobiliária desse e de outros empreendimentos contribuiu também significativamente para o desenvolvimento de atividades de comércio e serviços naquele bairro (construção/jardinagem, móveis e objetos de decoração), atendendo a demandas dos moradores dos loteamentos e da região sul de Belo Horizonte. Assim, condomínios e bairros populares formam um único sistema sócio-espacial.

No caso do Alphaville, um agravante é o centro comercial projetado para atender, além dos moradores, também as cidades vizinhas que se situam no entorno de, aproximadamente, 15 km. Com a futura ocupação do centro comercial e empresarial, além dos prestadores de serviços nas residências, haverá também um movimento diário de assalariados entrando e saindo do condomínio. A complexidade de tal processo na prática do espaço vivido cotidiano, evidenciará inúmeros conflitos, tornando, no mérito, a reivindicação dos ambientalistas plenamente justificada.

Cabe aqui analisar o discurso dos movimentos ambientalistas que iniciaram tal discussão. A AMDA afirma em seu portal disponível na internet que o empreendimento está sendo implantado numa região que já sofre impactos de outros projetos imobiliários e do turismo predatório, que “[…] não podem ser quantificados, são irreversíveis e em sua maior parte não são mitigáveis e infinitamente maiores que a atividade mineradora” (AMDA, 2004 apud COSTA; PEIXOTO, 2005, p. 22). Durante a audiência pública, o argumento foi reforçado por representantes de moradores de povoados vizinhos, como Piedade do Paraopeba, distrito de Brumadinho, localizado a 9 km de Alphaville, alegando preocupação com a perda da qualidade de vida resultante dos impactos na paisagem do entorno do povoado. Numa outra leitura, tais moradores apresentaram-se como vítimas de um conflito ambiental causado pela urbanização descontrolada. Ao transformar processos sociais em conflitos ambientais, os moradores reafirmaram, de certo modo, a doxa do campo político da criação da APA-Sul, em que a segregação social é, consciente ou inconscientemente, aceita como norteadora do planejamento territorial. Obviamente, os planejadores do Alphaville compartilham essa visão, já que a estética da paisagem e a qualidade de vida não são apenas valores de uso dos moradores, mas também valores de troca patrimoniais. Desta forma, trata-se de um conflito sobre a localização de processos não desejáveis, dentre eles, não apenas a ocupação informal explicitada como favelização, mas também as áreas formalmente produzidas de habitação de baixa renda.

Em relação a esse novo conflito ambiental, cabe destacar que grande parte da paisagem no Eixo Sul não é caracterizada por uma natureza natural. O Alphaville é localizado numa área altamente transformada por plantações de eucaliptos, hoje desmatada e abandonada pelas mineradoras, um fator que facilitou a aprovação do projeto no âmbito do processo de licenciamento. A Lagoa dos Ingleses é, na verdade, um reservatório de uma hidrelétrica. A beleza cênica da paisagem, então, já configura uma segunda natureza criada pelo processo de produção do espaço e de industrialização.

Dessa forma, mesmo quando se assume que a construção de loteamentos fechados seja uma vocação desejada para a região, não há argumentos ambientais contra a implementação de loteamentos populares, pressupondo-se que sejam planejados com os mesmos cuidados ambientais que os primeiros. Contudo, isso envolveria investimentos públicos raramente destinados a esses fins. Os moradores do Jardim Canadá, por exemplo, demandavam já há muitos anos, da prefeitura de Nova Lima, soluções para os inúmeros problemas infra-estruturais no bairro (FREITAS, 2004, p. 117). Confirma-se, assim, a paisagem elitizada na APA-Sul, em que mesmo a solução dos problemas ambientais é reservada aos segmentos sociais privilegiados. Pode-se concluir que a concepção da APA-Sul, aceitando ou reforçando a segregação social no espaço, causará um duplo conflito ambiental: além da ameaça à natureza, como símbolo de qualidade de vida, pela urbanização descontrolada, há também a tendência a reproduzir barreiras ao acesso e ao usufruto da população da baixa renda à área.

7 Considerações finais

Neste trabalho mostramos, a partir do exemplo de conselhos participativos envolvidos na criação da APA-Sul, que novas formas da gestão do espaço, envolvendo a chamada sociedade civil, não contribuem necessariamente para evitar assimetrias sociais e conflitos ambientais. A concepção do espaço, até então acordada no novo campo político da APA-Sul, considera interesses de importantes atores econômicos dos setores da mineração, de empreendimentos imobiliários para a população de alta renda e a necessidade de proteção da natureza. Os conflitos no campo referem-se ao ordenamento territorial diferenciado entre interesses econômicos e entre classes sociais. Contudo, verificamos que as conseqüências de processos sócio-espaciais envolvendo a localização de segmentos sociais de baixa renda, atraídos pelos novos empreendimentos imobiliários, foram negligenciadas. Os problemas sociais oriundos desse processo foram tratados como uma ameaça à beleza cênica e à qualidade de vida na área, tornando-se, assim, conflitos ambientais. Nesse contexto, questionamos o sentido atribuído ao termo desenvolvimento sustentável como objetivo principal da criação da APA-Sul, pois não foi considerado um dos aspectos mais importantes desse conceito: a justiça social.

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Notas

1 O SNUC foi formalizado pela lei nº. 9.985, de 18 de julho de 2000.

2 Bourdieu entende como capital a acumulação do trabalho, que abrange, além do capital econômico (todas as riquezas materiais), o capital cultural (o que pode ser materializado em livros, obras de arte, instrumentos técnicos ou incorporado através de várias formas de conhecimento e habilidades culturais e institucionalizado na forma de graus, títulos acadêmicos, etc.) e o capital social (utilização de uma rede de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento e reconhecimento mútuo). A partir de tais formas, compõe-se o capital específico ou simbólico, reconhecido como legitimo (prestige, renommee), necessário para adquirir o direito de entrada e para se posicionar na hierarquia no referido campo.

3 A maioria é constituída por projetos de parcelamento de solo comum, sem propriedade condominial, usualmente com o acesso ao espaço público restrito aos proprietários de lotes. Embora não legal, tal procedimento conta, na maioria das vezes, com a concordância do poder público e constitui elemento de diferenciação do empreendimento.

4 Denominação popular do povoado de São Sebastião das Águas Claras, no município de Nova Lima.

5 O nome APA-Sul refere-se à sua localização em relação à cidade Belo Horizonte. A APA abrange áreas de vegetação preservada necessárias para proteger zonas de retenção de água para Belo Horizonte.

6 AMA Macacos, AMA Morro do Chapéu, Associação Mingu de Preservação Ambiental, AMDA, PROMUTUCA e Associação Comunitária da Aldeia foram as ONGs que participaram do seminário.

7 Folha de Casa Branca. Abril de 1993, p. 06. As ONG’s avaliam o seminário da APASUL/RMBH.

8 Segundo o IBAMA, o zoneamento ambiental abrange três fases: 1) levantamento da biodiversidade da área; 2) avaliação dos conflitos e principais problemas; e 3) mapeamento das oportunidades e potencialidades inerentes à conservação da biodiversidade.

9 Este decreto instituiu o Sistema de Gestão Colegiado para as APAs em Minas Gerais

10 O conselho aprovou quinze projetos com condicionantes (nove da mineração e seis imobiliários). Apenas em relação a um projeto sobre resíduos sólidos foi emitido um parecer contrário (FREITAS, 2004, p. 136).

11 As RPPNs foram instituídas em 1990 pelo decreto 98.914. Inicialmente, eram destinadas à proteção integral, sendo bem restritivos os seus usos. A partir de 1996, após a atualização pelo decreto 1922, passou a ser permitido “o desenvolvimento de atividades de cunho científico, cultural, educacional, recreativo e de lazer”.

12 Um exemplo é o conflito em torno da mina Capão Xavier, localizada numa área que abrange quatro mananciais de água da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA-MG) – Fechos, Catarina, Mutuca e Barreiro – que abastecem o setor sul de Belo Horizonte e a cidade de Nova Lima. Nesse caso, surgiram movimentos antidóxicos sem acesso ao campo, como o Movimento Capão Xavier Vivo, que luta contra as atividades da Minerações Brasileiras Reunidas S/A (MBR). Esse tipo de mobilização recebe apoio pela heterodoxia na expectativa de ganhar mais peso político no campo para re-introduzir questões principais em relação ao conflito entre economia e ecologia ou entre o privado e o bem público.

13 Números apresentados pela AMDA, durante a “Audiência pública Alphaville – Lagoa dos Ingleses, Fase II”. Nova Lima, 06/05/2004.

Autor para correspondência:
Klemens Laschefski
Departamento de Geografia
Universidade Federal de Visçosa – UFV
Av. Peter Henry Rolfs, s/n, Campus Universitário
CEP 36570-000, Viçosa – MG, Brasi
email: klemens.laschefski{at}ufv.br

* Este texto faz parte de pesquisas realizadas no âmbito do projeto “A expansão metropolitana de Belo Horizonte: dinâmica e especificidades no Eixo Sul” (com financiamento PRPq/UFMG, FAPEMIG e CNPq) e pelo Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA, FAFICH/UFMG). Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada no III Encontro da ANPPAS.

LASCHEFSKI, Klemens; COSTA, Heloisa Soares de Moura. Segregação social como externalização de conflitos ambientais: a elitização do meio ambiente na APA-Sul, Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ambient. soc., Campinas, v. 11, n. 2, 2008 . Available from . access on15 July 2009. doi: 10.1590/S1414-753X2008000200007.

EcoDebate, 16/07/2009

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