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A cheia em Altamira foi um alerta, artigo de Rodolfo Salm

A cheia em Altamira

Altamira voltou a ser destaque na grande imprensa, desta vez por causa da maior enchente de sua história, na manhã do domingo de Páscoa. Os números foram realmente chocantes: no auge da inundação (causada pelo rompimento de uma seqüência de barragens no igarapé Altamira), os milhares de desabrigados chegaram a representar 20% da população. Entretanto, apesar de a tragédia ter sido amplamente divulgada, foi praticamente impossível ao observador externo entender o que realmente aconteceu por aqui, devido aos vários erros e distorções na cobertura da imprensa.

Uma das chamadas de abertura do Jornal Nacional do dia seguinte foi “Chuvas castigam as regiões Norte e Nordeste”. A manchete não poderia ter sido mais equivocada, pelo menos no que se refere a Altamira, que forneceu as imagens mais chocantes da reportagem, com geladeiras, televisões e computadores novos boiando, sendo levados pela enxurrada, e pessoas desesperadas tentando salvar-se ou salvar alguma coisa. Ao contrário do que disse Fátima Bernardes, as chuvas não castigam a região. Na verdade elas a abençoam. O que realmente castiga este povo são os desmatamentos e o descaso com a questão ambiental.

Especificamente a irresponsabilidade na construção de barragens, instaladas ilegalmente e que serviam para diversos fins, como criação de peixes, atividades de lazer ou irrigação.

Segundo matéria do jornal O Globo, o nível do rio Xingu teria subido sete metros, o que é absolutamente falso. Na verdade, o rio já vinha baixando há vários dias, estava abaixo do seu nível normal para esta época do ano, e seguiu secando ao longo do feriado de Páscoa. Estes sete metros provavelmente foram encontrados comparando-se o nível do rio no momento da tragédia com o seu nível mínimo – o rio possui um ciclo anual bastante previsível, com grande variação entre o nível da cheia, que ocorre mais ou menos agora e a época seca, que vai até setembro. Esta previsibilidade é consequência do ritmo sazonal de chuvas no Brasil Central no sul da Amazônia e do ainda bom estado de preservação das florestas da bacia do Xingu como um todo. Preservação que, é bom que se destaque, decorre quase que exclusivamente da marcante presença de povos indígenas ao longo deste rio e que contrasta com o estado de devastação generalizada da sua micro-bacia no Igarapé Altamira (que tem fazendas e não terras indígenas), situado bem onde o Xingu cruza com a área de influência da rodovia Transamazônica.

A esta altura, já estamos caminhando para o fim da estação das chuvas. Mas realmente aconteceu uma chuva excepcionalmente forte em Altamira naquele dia. Começou a chover intensamente nas primeiras horas da madrugada, e assim continuou até o sol raiar, derramando-se, nestas poucas horas, uma coluna de 210 milímetros de água na região (que corresponde a aproximadamente três vezes a média de chuvas na cidade de São Paulo durante todo o mês de abril – e isto em algumas horas). Na bacia do igarapé Altamira, a água, sem o freio da vegetação que foi devastada, escorreu rapidamente para o seu leito com uma força excepcional. Por volta das 8 horas, uma primeira barragem se rompeu, estourando outras, em um efeito dominó rio-abaixo de consequências nunca antes vistas na região. Às 10 horas, boa parte da cidade estava debaixo d’água, de uma forma totalmente inimaginável para os que estão acostumados com o ciclo sereno de subidas e descidas anuais do Xingu.

Aliás, dizem que o estrago teria sido ainda maior se o Xingu não estivesse tão baixo para esta época do ano, facilitando o escoamento do imenso volume de água. Agora imaginem como teria sido se este igarapé que corta a cidade já estivesse barrado em um nível muito mais alto pela hidrelétrica de Belo Monte. De acordo com o professor Oswaldo Sevá, da Faculdade de Engenharia Mecânica da UNICAMP, se essas obras já tivessem sido realizadas a água teria invadido a avenida Beira Rio, todo o centro comercial, o novo hospital regional, o cemitério e até mesmo a sede do consórcio Belo Monte. Ou seja, provavelmente tudo que estivesse pelas cotas 100 a 105 metros seria coberto. Praticamente toda a cidade, com a exceção das áreas de morros.

Mesmo desconsiderando a probabilidade da ocorrência de eventos extremos como estes, os impactos da construção da maior hidrelétrica do Brasil, prevista para Altamira, seriam devastadores. O projeto inclui a conversão definitiva dos seus igarapés em corpos de água estagnada e poluída (numa área muito maior do que a área oficialmente “inundada”) e a criação de outras zonas de água parada em áreas baixas da cidade.

Haveria impactos na qualidade dos poços, devido à elevação do lençol freático. Dá para imaginar como a cidade ficaria quando chovesse, inundando tudo. Para não falar dos impactos do reassentamento de 22% da população (16 mil pessoas) e a imigração prevista de cerca de 34 mil novos moradores, entre trabalhadores e suas famílias, durante as obras.

Aparentemente (e afortunadamente), o desastre da inundação do domingo de Páscoa serviu para reforçar a idéia presente na cabeça da maior parte da população, que liga barragens à idéia de catástrofes ou desgraças. O telejornal da Rede Globo jamais ousaria admitir ou divulgar o fato, mas o desastre representou um forte revés para a idéia mirabolante de construir uma barragem gigantesca no rio Xingu. Tomara que tirem alguma lição dessa tragédia. O nível da água do igarapé em poucos dias normalizou-se, mas a marca do nível da água ainda é visível, alta, na parede das casas. Aos defensores da barragem, interessa que isso seja esquecido o mais rapidamente possível. Daí a importância de que os que lutam contra ela façam, urgentemente, marcas indeléveis em todos os lugares possíveis, casa, postes, muros, árvores. Apesar dos prejuízos, da tristeza e da revolta, esta cheia pode ser transformada numa arma política contra Belo Monte, num grande trunfo contra as obras e, assim, evitar a possibilidade da ocorrência no futuro de catástrofes de magnitude infinitamente superior.

Mais do que arrasar a cidade de Altamira, Belo Monte destruiria a Volta Grande, um monumento da humanidade. Mas, muito mais do que isso, afetaria o rio todo, numa área de dimensões colossais. Tudo isso em nome de um projeto de utilização da energia do Xingu, que há décadas é a “menina dos olhos” dos capitalistas internacionais, de interesses sem pátria e que pautam a turma de figuras como José Sarney, Edson Lobão, Muniz Lopes, Dilma Russeff, Mangabeira Unger e Mauricio Tolmasquim, dentre outros obcecados pela expansão energética sem fim.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.

Artigo enviada pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate, na socialização da informação.

[EcoDebate, 02/05/2009]

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