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Artigo

O espalhamento da desordem, artigo de Rafael Linden

“Horrores como o roubo de donativos de vítimas de enchentes e, provavelmente, crimes mais graves, bem como todo o cenário de desprezo pelo bem público e pelos outros em geral giram em torno de um círculo vicioso”

Rafael Linden é professor do Instituto de Biofísica da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências. Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:

O país assistiu, chocado, às cenas que mostraram voluntários e militares roubando donativos enviados às vítimas das chuvas no Sul. Combinando justa indignação com razões bem fundamentadas, cientistas sociais e cidadãos comuns comentaram que a corrupção reinante no meio político brasileiro, aliada a um desgaste histórico de vínculos sociais, à prevalência do malfadado desejo de levar vantagem em tudo e à sensaçao de impunidade generalizada explicam episódios como este que, é bom que se repita, foi protagonizado por uma pequena minoria dos que trabalham no socorro aos catarinenses.

Por não ser cientista social, talvez devesse restringir minha indignação ao plano da conversa de boteco ou, eventualmente, a engrossar as fileiras de atos políticos tais como passeatas ou proselitismo ocasional. Entretanto, uma leitura casual me faz crer que algo mais precisa ser dito sobre as razões dos eventos recentes em Santa Catarina, quanto mais não seja para provocar quem queira espinafrar o abaixo assinado.

No dia 12 de dezembro, a Science, uma das mais respeitadas revistas científicas do planeta, publicou um artigo escrito por cientistas da Faculdade de Ciências Sociais e Comportamentais de Groningen, chamado “O espalhamento da desordem”. Os pesquisadores holandeses demonstraram que sinais de desordem urbana provocam comportamentos anti-sociais que incluem não apenas mais desordem, mas até mesmo roubos.

O artigo destinava-se a testar a chamada “teoria da janela quebrada”, segundo a qual sinais de desordem, tais como janelas quebradas, lixo e pixações em locais públicos estimulam outros deslizes, contravenções e crimes.

Esta teoria é aplicada na administração pública em várias cidades nas quais, por exemplo, prefeituras regularmente reprimem, punem e limpam, consertam ou cobram providências sobre pixações, sujeira nas ruas ou danos conspícuos nas fachadas das residências.

Em suma, combatem firmemente o desleixo, desvios de conduta ou pequenas contravenções que parecem se esgotar em si mesmas, porém, de acordo com o estudo mencionado, estimulam a prática de novas contravenções e crimes mais sérios.

Parece trivial, e já os leitores devem estar a lembrar-se de lugares comuns, como “o que vale é o exemplo” ou “as más companhias levam ao comportamento desregrado”. Também acho, mas não se trata de “achar”.

A verdade é que não há consenso sobre se sinais de desordem urbana, como pixações ou lixo no chão das ruas, contribuem como causa ou são mera conseqüência da concentração de delitos em um determinado bairro ou cidade.

A dúvida tem fundamento, pois coincidência ou correlação de eventos não demonstram o que é causa e o que é conseqüência. Soa familiar? Pois é, grande parte de nossas crenças acerca do comportamento humano no dia-a-dia não passa disso mesmo: crenças, muitas das quais derivadas de viés ideológico.

O que os cientistas holandeses fizeram foi testar empíricamente a hipótese de que pixações e lixo nas ruas conduzem a comportamentos anti-sociais e ao crime. Os pesquisadores formularam rigorosamente e conduziram seis experimentos distintos, em locais de pouco movimento na cidade de Groningen.

Ali, observadores ocultos contabilizaram os transeuntes que cometiam deslizes em uma determinada situação, comparando as percentagens dos que o faziam quando o ambiente estava limpo e ordeiro, com os que o faziam quando havia pixações, lixo largado ou objetos deixados em locais impróprios na mesma área.

Incidentalmente, as pixações eram grosseiras, nada a ver com a arte do grafiteiro Keith Haring no metrô de Nova Iorque, ou com as mensagens murais do famoso Profeta Gentileza no Rio de Janeiro.

Os próprios pesquisadores mantinham cada área de teste limpa e ordenada ou suja e desordenada, de forma sistemática, para avaliar o efeito apenas destes condicionantes sobre o comportamento dos transeuntes. Os resultados foram dramáticos.

Em todos os casos, a percentagem de transeuntes que, por exemplo, ignoravam uma placa de proibição de trânsito por uma passagem ou atiravam lixo no chão foi muito maior quando, tudo o mais mantido igual, havia pixação na parede, papéis no chão ou, em um dos casos, carrinhos de compras largados no estacionamento de um supermercado próximo a cartazes solicitando a devolução dos carrinhos.

Em outras palavras, sinais de desordem urbana levaram, em todas as situações, a mais desordem e, o que é assustador, até mesmo ao crime de roubo. Este último foi constatado, em dois experimentos separados, pela análise dos números de transeuntes que furtavam um envelope contendo conspicuamente uma nota de cinco euros, mal introduzido em uma caixa de correio, a qual podia estar pixada ou não.

As diferenças não foram triviais, as percentagens duplicaram ou triplicaram. E também não se tratava de números pequenos, atingindo até 80% dos transeuntes no caso dos deslizes menores e até 25% no caso do roubo! Ou seja, pixação na caixa de correio levou um em cada quatro holandeses a se tornar um ladrãozinho…

E daí? Daí que, malgrado o risco de especialistas encontrarem defeitos no desenho experimental ou na análise dos dados, este estudo enfatiza a importância de um elemento particular, em meio ao debate sobre as razões do fiasco dos donativos: a tolerância com que a sociedade brasileira se acostumou a tratar pequenos desvios de conduta do dia-a-dia.

“Ah, eu vou parar o carro em fila dupla só um instantinho…”; “Ora, se eu não urinar na pilastra, onde é que eu vou me aliviar?”; “Não tem lata de lixo, então eu tenho que jogar o papel no chão…”; “A fila está muito longa, vou dirigir pelo acostamento…”. “Já que não tenho vez, vou pixar a parede do prédio de quem não tem nada a ver com isso…”.

Este tipo de comportamento, em geral, é considerado um testemunho da informalidade, bom humor, esperteza e “jogo de cintura” de todos nós, brasileiros. Justifica-se a impunidade dos pequenos delitos porque, afinal de contas, se os grandes contraventores, ladrões e assassinos não são punidos, então por que punir os pequenos?

Mas os dados do artigo da Science sugerem que horrores como o roubo de donativos de vítimas de enchentes e, provavelmente, crimes mais graves, bem como todo o cenário de desprezo pelo bem público e pelos outros em geral giram em torno de um círculo vicioso.

Sua face mais escabrosa se encontra lá em cima, com a irresponsabilidade, impunidade e cinismo reinantes nos meios políticos e nas classes dominantes, mas o círculo é francamente alimentado cá embaixo por nossa proverbial tolerância para com os pequenos deslizes do dia-a-dia. E soluções para isso nada têm a ver com intolerância, excesso de rigor ou truculência. Têm a ver com limites. E o que nos falta, em todas as esferas, todas mesmo, são limites.

Nota: A referência completa do artigo mencionado neste texto é: Kelzer, K; Lindenberg, S. e Steg, L. The spreading of disorder. Science 322: 1681-1685, 2008.

* Artigo originalmente publicado no Jornal da Ciência, SBPC, JC e-mail 3666, de 19 de Dezembro de 2008.

[EcoDebate, 20/12/2008]

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