EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

Os reformistas não têm nada a dizer sobre a desigualdade urbana, entrevista com Mike Davis

“Não há nos Estados Unidos nada que se possa nem remotamente comparar ao aparato de vigilância que existe em Londres”, destaca Mike Davis, diante da assombrosa escalada de vigilância virtual que se dá em todas as partes do mundo. “Deste modo, a Internet se converte numa ameaça para a liberdade, porque pode contribuir para que todos nos convertamos em vigias, em opressores, em prisão dos outros: todos somos agora carcereiros que olham os movimentos dos demais”, insiste.

Na opinião de Davis, “deveríamos cometer atos de vandalismo e de subversão do Estado de vigilância e contra a classe média que o apóia”. “Precisamos aplicar contra isso toda a energia criativa da juventude: encontrar formas de devolver os ataques, de subverter a sociedade da vigilância”, acredita.

Nesta entrevista, Mike Davis também fala de suas reflexões sobre como devem ser as cidades do século XXI. “Inevitavelmente, o mundo se converterá num lugar em que ao menos dois terços da população viverão em cidades (…) As cidades são a única forma de quadrar o círculo entre as exigências de igualdade da humanidade e um nível decente de vida num planeta sustentável. O substituto de um consumo privado ou individual mais e mais intensificado não pode ser outro senão o luxo público oferecido pela cidade”.

O urbanista norte-americano Mike Davis é autor de Planeta Favela (Boitempo, 2006), Holocaustos Coloniais (Record, 2002), entre outros. É professor no Departamento de História da Universidade da Califórnia, em Irvine.

Segue a íntegra da entrevista de Mike Davis publicada no sítio Sinpermiso, 25-05-2008. A tradução é do Cepat.

Você costuma traçar linhas de comparação entre diferentes tendências de controle urbano em todo o planeta. Poderia comparar a situação de Los Angeles, a repressão e a vigilância que se davam quando você estava escrevendo A cidade do Quartzo [Scritta, 1993], com a situação na Londres atual?

Não há nos Estados Unidos nada que se possa nem remotamente comparar ao aparato de vigilância que existe em Londres. As próprias câmeras de vídeo são uma novidade incipiente nos Estados Unidos. A vigilância total das zonas centrais das cidades norte-americanas sobre o que já escrevi no começo dos anos 90 valia só para pequenas áreas, algumas quadras ou quarteirões no centro de Los Angeles, por exemplo. Se [o ex-prefeito de Nova York] Giuliani viesse a ser presidente, nos aproximaríamos da idéia de uma vigilância e controle totais nos centros urbanos, mas Londres anda ao menos uma ou duas gerações na frente dos Estados Unidos.

Dito isto, as bases estão assentadas nos Estados Unidos: as estradas têm agora sistemas de vigilância que controlam o tráfego. Mas a mim me parece chocante Londres em vários aspectos. Eu, por exemplo, não tinha a menor idéia até que cheguei agora aqui de que os bilhetes de metrô suburbano estão sendo usados para controlar e acumular dados. Nos Estados Unidos as coisas foram pelo outro lado. Evidentemente, em qualquer transação econômica que faça pela Internet, os dados acabam sendo transferidos ou vendidos por razões de marketing. Eu creio que o sistema político norte-americano é provavelmente o mais avançado do mundo nesse sentido, no uso de dados de marketing para identificar as pessoas e transmitir mensagens políticas. Também são muito maiores o orçamento e o esforço que se está realizando nos Estados Unidos.

Para lhe dar um exemplo de como funciona: a administração Bush quer programas de trabalho imigrado para satisfazer as necessidades trabalhistas de setores econômicos cruciais como a agroindústria. Mas eis que ofuscou a revolta das bases republicanas contra os democratas. Uma das coisas que pedem é a construção de um muro ao longo de toda a extensão da fronteira mexicana, e o Congresso autorizou parcialmente a sua construção, mesmo quando as próprias pessoas que trabalham no controle e na vigilância fronteiriços se deitam de rir, porque esses muros seriam completamente ineficazes: estruturas metálicas de 12 pés de altura que qualquer um pode pular. Estão trabalhando em algo completamente diferente: uma fronteira virtual, mais parecida com o controle virtual que existe em torno do bairro financeiro de Londres. Têm que dar carniça aos conservadores dos bairros residenciais, que queriam um muro físico estilo Berlim, já que só uma coisa assim lhes dá a sensação de controle fronteiriço.

No entanto, o controle real sobre os movimentos das pessoas não precisa tanto desses muros, quanto de tecnologia. Essa é uma esfera em que creio que os Estados Unidos estão mais avançados a ponto de criar uma sociedade de vigilância total. Perry, o governador do Texas, autorizou a instalação de câmeras em áreas fronteiriças de trânsito habitual, cujas filmagens podem ser vistas diretamente na Internet. Assim, criou vigilantes virtuais. Quem quiser, pode perder o seu tempo olhando um deserto, e se de repente vir na tela um mexicano cruzando-o, pode telefonar a um escritório do Estado do Texas que alertará a patrulha de controle fronteiriço.

Deste modo, a Internet se converte numa ameaça para a liberdade, porque pode contribuir para que todos nos convertamos em vigias, em opressores, em prisão dos outros: todos somos agora carcereiros que olham os movimentos dos demais. É uma idéia tremenda, e os direitistas a afagam, gostam de poder exercer algum papel no controle policial da imigração e da sociedade. Em certo sentido, todos querem ter um distintivo de polícia na lapela.

Faz pouco tempo que colocaram em Los Angeles telas digitais nas estradas para dar informações de tráfego, ainda que estejamos longe da Europa neste ponto. Agora são usadas para alertar sobre seqüestros, etc. O problema de instalar muitos desses aparelhos nos Estados Unidos, e em particular, nas cidades, é que não sobreviveriam um único dia. De um ou outro modo, teriam que blindar, fortificar e proteger as câmeras de vigilância. O grau de vandalismo nas cidades norte-americanas é tanto e tão intenso… Uma vez calculei a quantidade de grafites por metro quadrado em Los Angeles e entrevistei os que trabalhavam na limpeza dessas grafites. Com tantos rapazes entregues ao vandalismo, à grafite, etc., você pode colocar câmeras, mas seu destino é serem quebradas e derrubadas.

Pode funcionar com as classes médias; pode funcionar nos frondosos bairros residenciais de Santon ou nas zonas brancas de Johannesburgo, mas quando você começa a colocar câmeras de vigilância no centro dos guetos norte-americanos, tem que destinar um policial para cuidar de cada uma delas. Essa é uma das contradições da sociedade da vigilância. As câmeras de vigilância televisiva não estão tão avançadas nos Estados Unidos como na Europa. As pessoas se sentem mais seguras nos Estados Unidos com polícia privada.

Por que as câmeras em Londres não são objeto de vandalismo?

Isso também eu me pergunto. Me parece que é necessário fazer propaganda e lutar a favor da idéia de uma insurreição universal contra o Estado da vigilância, contra a erosão das liberdades civis. É necessário animar as pessoas e buscar qualquer meio possível de resistência, subversão e destruição do aparelho de vigilância e controle. É obvio dizê-lo: milhões de adolescentes fazem isso diariamente.

Kevin Lynch escreveu um livro sobre o vandalismo; ele estava muito interessado no vandalismo como processo urbano, em todo tipo de vandalismo. Estudou-o nos anos 70, em parte para entender como os arquitetos poderiam combatê-lo, e em parte, porque estava interessado em sua lógica. Pensava que qualquer coisa em que estivessem implicados as pessoas e o meio ambiente construído, inclusive destruição do mesmo, era coisa boa. Querendo produzir uma teoria da arquitetura ou do urbanismo participativos, o vandalismo lhe parecia a forma mais comum e popular de participar no meio ambiente construído, rebelando-se contra sua desumanização, em polígonos de moradias populares para a classe operária das cidades norte-americanas.

Creio que necessitamos de uma estratégia de apoio mútuo; deveríamos cometer atos de vandalismo e de subversão do Estado de vigilância e contra a classe média que o apóia. Destruir os símbolos de resposta armada que essas pessoas colocam em seus jardins os amedronta… Não que essa resposta armada seja real ou crível, mas essas pessoas ganham muita confiança com a exibição de seu símbolo. Se se tira delas, tenderão a pensar que todas as forças poderiam chegar a se mobilizar contra elas, e que no dia menos pensado poderiam terminar por assassiná-las.

Eu comecei destruindo as figurinhas de jardim, tão características do segregacionismo e do racismo norte-americanos. São esculturas que representam negros vestidos de libré plantados em seus jardins como se fossem flamingos rosas; são muito populares entre os nostálgicos da velha ordem racista, quando todos os negros eram criados ou escravos. Quando voltei a Los Angeles no final dos anos 80 descobri que havia umas quantas figurinhas dessas nas casas de Beverly Hills. Precisamos aplicar contra isso toda a energia criativa da juventude: encontrar formas de devolver os ataques, de subverter a sociedade da vigilância.

Sobre a sua pergunta central, não tenho resposta alguma. Eu morei em Londres nos anos 80; fui muito infeliz e era muito pobre, mas tive grandes momentos de inspiração. Estive em Fleet Street na batalha campal contra a Fortaleza de Murdoch, junto com os trabalhadores da imprensa que lutavam cada noite com todas as forças contra os policiais… Uma coisa maravilhosa. Um esbanjamento tremendo de energia urbana. Agora, ao voltar a Londres, me sinto agoniado pelo espetáculo de complacência e resignação das pessoas.

No entanto, Londres é um lugar por onde passa muita gente… Os imigrantes vêm para trabalhar, os estudantes para estudar; há um fluxo constante de entradas e saídas. Nos perguntávamos se isso tem a ver com esta complacência, ou se, ao contrário, oferece possibilidades de resistência.

Sim, oferece possibilidades. Ainda que os imigrantes atuais sejam tão radicalmente vulneráveis em Londres como nos Estados Unidos. Outro dia dei uma palestra em que tentava explicar o quanto era difícil encontrar um momento da história da América do Norte em que os imigrantes (incluídos os legais) tenham sido tão vulneráveis como agora. A posição da Administração Bush é que nem sequer os imigrantes legais gozam da cobertura da Lei Fundamental Norte-americana de Direitos. Carece-se de hábeas corpus, das liberdades anglo-saxãs, etc. No ano passado, houve gigantescos protestos a favor dos direitos dos imigrantes nos Estados Unidos, manifestações em que se expressava a ansiedade existencial das pessoas, a exigência do reconhecimento de seu direito de gozar de seus direitos constitucionais.

Por outro lado, a lógica disso em Londres é clara: mais que Nova York, Londres é agora o último tabuleiro de jogo dos ricos. Os bilionários russos vêm aqui, não vão a Nova York. Faz-se de tudo para garantir que este seja agora o último refúgio seguro para depositar seu dinheiro. Num ou noutro grau, Londres sempre jogou este papel, ainda que se costumava considerar que a cidade de Nova York era o último refúgio. Londres vinha desafiando com muita agressividade essa idéia, e é irônico que essa agressão tenha sido suscitada pelas políticas de Ken Livingston [prefeito da esquerda trabalhista].

Na sua conferência no RIBA (Royal Institute of British Architects), falando do meio ambiente, disse que as cidades são a única solução viável para o futuro. Poderia explicar isso?

Inevitavelmente, o mundo se converterá num lugar em que ao menos dois terços da população viverão em cidades. Desejaria poder crer nas tradicionais idéias de Kropotkin de uma volta à mútua ajuda no campo… por isso creio que temos que desempoeirar esse magnífico diálogo entre anarquistas e socialistas que se deu entre 1880 e a década de 30 do século passado. As cidades são a única forma de quadrar o círculo entre as exigências de igualdade da humanidade e um nível decente de vida num planeta sustentável. O substituto de um consumo privado ou individual mais e mais intensificado não pode ser outro senão o luxo público oferecido pela cidade.

As idéias construtivistas da Rússia dos anos 20 me influenciaram muito. Os construtivistas tiveram que enfrentar o fato de que a Rússia não tinha capacidade para construir casas esplêndidas para a classe trabalhadora, e quiseram compensar essa carência com a criação dos mais belos e utópicos espaços públicos. Cada fábrica teria um bom centro esportivo, um cinema ou uma biblioteca. O espaço público não se limita a satisfazer as mesmas necessidades; produz e satisfaz também outras. Uma coisa é estar sozinho em casa descarregando pornografia da Internet, e outra muito diferente é ser um jovem numa praça ou espaço público rodeado de gente da mesma idade, aberto a todas as possibilidades que isso oferece…

Substancialmente, a cidade e a economia de escala geram uma relação de superlativa suficiência entre os humanos e a natureza. Gera uma riqueza pública ou social que não só vem substituir o consumo ou a riqueza privada, mas que proporciona também a base de necessidades que não podem existir, nem menos ser satisfeitas no capitalismo. Se fosse dado às pessoas escolher entre toda a pornografia que se é capaz de consumir ao longo de toda a sua vida e o contato com as pessoas em grandes piscinas públicas, o que escolheria? Esse é o gênio da cidade.

Patrick Geddes, o grande urbanista de Edimburgo e amigo de Kropotkin, foi o primeiro a se aperceber cabalmente de que, dada a dependência que a cidade tem, com toda a sua vulnerabilidade, em relação ao seu Hinterland, torna-se central que a densidade urbana venha em apoio à preservação do espaço público e apresente um serviço à natureza. Foi ele que primeiro meditou com profundidade sobre as políticas de infra-estrutura e de reciclagem, sobre a necessidade de não exportar desperdícios rio abaixo, sobre a sustentabilidade… O primeiro que pôs tudo isso em certa relação com a justiça social. Foi quem viajou à Índia com o exército britânico para indagar sobre os sistemas de saneamento ali existentes. Pensava que os indianos haviam resolvido seus problemas: sabem – dizia – o que têm que fazer com sua merda; são vocês que geraram um problema, ao pretender que seja levada pela água.

Há uma conexão direta entre Geddes e Kropotkin e toda uma tradição anarquista, parcialmente esquecida, de reflexão sobre o espaço urbano autogestionado, sobre as cidades autogovernadas e sobre o modo de funcionamento ambiental das cidades. Não há outra solução possível. Comercializar com créditos de emissões de carbono através do mercado não salvará a Terra. Isso acontecerá através da construção de cidades que sejam verdadeiras cidades no sentido mais profundo da palavra e da criação de uma igualdade de gozo e luxo público. E do reconhecimento de que o consumo se converteu numa patologia galopante que envenena a nós e nossos filhos.