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Artigo

A mata atlântica virou souvenir, artigo de Marcos Sá Corrêa

[O Estado de S.Paulo] O novo Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica deve estar enganado. Como esses fragmentos poderiam estar reduzidos a 7,26% de seu território original e continuar diminuindo rapidamente em Santa Catarina, na Bahia e em Minas Gerais se eles crescem como nunca ao redor dos hotéis, das pousadas e das agências de turismo, que deram para enxergá-los em toda parte?

Desde o Descobrimento, quando o arvoredo “tanto, tamanho e tão variado” do litoral baiano não deixou Pero Vaz de Caminha enxergar a terra propriamente dita do novo mundo português, o Brasil não tinha, como tem agora, tanta mata atlântica para dar e vender. Ao menos na internet.

Aí está o Google, que não deixa ninguém mentir. Ponha-se na janela de busca as palavras “mata atlântica” e “hotel”. E ele devolve nada menos de 145 mil respostas. Parece muito, mas, substituindo “hotel” por um sinônimo mais bucólico, como “pousada”, o Google duplica a oferta de endereços com vista para o cenário primordial da natureza brasileira. Vêm mais de 300 mil registros de hospedagem com floresta tropical.

PARA TODOS OS GOSTOS

Perde-se a conta na internet dos estabelecimentos turísticos chamados Pousada Mata Atlântica, da Bahia a Santa Catarina. No Estado do Rio de Janeiro, há Pousada Mata Atlântica para todos os gostos, na serra fluminense e à beira-mar. Existe ainda uma Pousada Mata Atlântica que fica a poucos quilômetros de um hotel tipicamente alpino de nome Chamonix, “um pedaço da Europa a seu alcance!” E um “Espaço Mata Atlântica” plantado numa rua que liga duas favelas, dividindo dez mil metros quadrados com a piscina, a sauna, o campo de futebol, a churrasqueira e uma sala de convenções para 2 mil pessoas.

E um hotel pleonástico, que se declara no “meio de uma floresta de mata atlântica”. Tem até chalé “situado no Bosque dos Eucaliptos, um pequeno santuário de mata atlântica”.

O Bosque dos Eucaliptos deve estar na floresta que, segundo o historiador Cid Prado Valle, sempre cobriu o País de norte a sul com uma “espessa camada verde-escura”, na vastidão abstrata do ufanismo brasileiro. Se é assim, a mata atlântica, em si, pode sumir à vontade. Brotará de suas cinzas com mais força a mata atlântica imaginária, que tem sobre a original a vantagem de caber em qualquer lugar.

Cabe, de sobra, nas menores encostas da zona sul do Rio de Janeiro, onde mata atlântica está virando ultimamente tudo o que ainda não é favela. Ali viceja até nas placas do Jardim Botânico, indicando, na borda do arboreto, com manchas compactas de verde-bandeira, as trilhas de uma frondosa mata atlântica de jaqueiras asiáticas, descendentes de mudas trazidas para a colônia por portugueses nostálgicos de outros trópicos.

Espremida atualmente nos últimos 97,5 mil quilômetros quadrados, incluindo nesse cálculo retalhos de 100 hectares, pequenos demais para ter futuro, a mata atlântica está entrando na moda tarde demais para salvar a si mesma. Sua popularidade inspira na hotelaria nacional as mais delirantes homenagens póstumas.

Segundo o historiador Warren Dean, deveria servir pelo menos para ensinar os brasileiros como se pode perder também a Amazônia. Mas não serve nem para lembrar ao presidente Lula que, como os países ricos, o Brasil tem uma longa história de desmatamento.

Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 04/06/2008.