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Artigo

Clamando no deserto? artigo de Gilberto Dupas

[O Estado de S.Paulo] A devastação ambiental é um fenômeno sistêmico relacionado com a lógica do modelo econômico que construímos. Há 30 anos, 900 mil carros circulavam pela cidade de São Paulo; hoje, são 4,5 milhões. A mancha da poluição venenosa que eles geram alcança populações a 600 km de distância. O Parque do Ibirapuera e a Cidade Universitária, para perplexidade de seus freqüentadores, foram descobertos como regiões altamente poluídas. O que fazer?

Ouvi de um importante cancerologista que a maioria das tomografias de pulmão que ele examina mostra os sinais da poluição. O fenômeno é semelhante no mundo todo. No entanto, a grande meta da indústria automobilística global é a produção do automóvel de US$ 3 mil! No mês passado, mais um grupo importante de cientistas norte-americanos, britânicos e alemães alertou, pela revista da National Academy of Sciences, que é eminente o risco de o aquecimento global chegar a um ponto sem volta. Regiões inteiras, como Groenlândia e Amazônia, e fenômenos vitais como as monções estão em alto risco. Para uma questão que é sistêmica, porém, todas as iniciativas concretas são cosméticas, perfunctórias e mercadológicas. Bancos verdes, carros verdes, empresas verdes e outras bobagens que tais.

Caminharemos passivamente para o caos? Para entender melhor as nossas chances, adotarei uma classificação de Joan Martínez Alier sobre as principais correntes que agem na luta ambiental: os “ecologistas profundos”, os “ecoeficientes”, os “ecologistas sociais” e os “antiecologistas”. Quanto aos “antiecologistas” – neles incluo, ainda que como inocentes úteis, os “60 cientistas céticos” que se manifestaram esta semana -, não tenho espaço para falar deles. Com suas ligações estruturais com os interesses do capital, eles depreciam e desqualificam as três outras correntes e estão na contramão dos valores que nos interessam aqui.

Os “ecologistas profundos” cultivam a vida silvestre, os bosques, rios e oceanos; colocam a necessidade de uma ação radical para preservar espécies em perigo e evitar a perda da biodiversidade que sobrou nos espaços ainda não atingidos pelo mercado. Eles utilizam até argumentos religiosos, como o valor sagrado da natureza nas crenças indígenas que sobreviveram à devastação dos conquistadores. A proposta principal do grupo é proteger o que sobrou de reservas naturais, parques nacionais e mangues da ação predatória do modelo econômico. Os “ecoeficientes” querem administrar os impactos ambientais, incluindo os riscos à saúde decorrentes da industrialização, da urbanização e da agricultura contemporâneas. Defendem o crescimento, mas não a qualquer custo. Acreditam no desenvolvimento sustentável e na boa utilização dos recursos; e aceitam pôr em discussão o direito indiscutível à vida de certas espécies. Substituem a noção de sagrado por utilidade e eficiência técnica. Suas propostas práticas são ecoimpostos, mercados de licenças de emissões, novas tecnologias voltadas para a economia de energia e de matérias-primas e precificação dos fatores de dano. Para minorar a degradação ambiental aceitam composições como o apoio da WWF à Shell para o amplo plantio do eucalipto, sob o pretexto de diminuir a pressão sobre os bosques naturais e promover a absorção do carbono. Já os “ecologistas sociais” alertam para os impactos da degradação do meio ambiente sobre os mais pobres e o deslocamento das fontes de recursos e áreas de descarte dos resíduos em direção aos países periféricos.

Os EUA importam metade do petróleo que consomem. A União Européia traz de fora materiais e energéticos quase quatro vezes mais do que os exporta. Já a América Latina exporta seis vezes mais materiais e energéticos do que importa. O resultado é que as fronteiras de petróleo e gás, alumínio, cobre, ouro, eucalipto, óleo de palma, camarão e soja transgênica avançam para a periferia, degradando-a. Isso atinge grupos sociais que tentam protestar e resistir. É o caso da reação de comunidades camponesas mexicanas contra a destruição do seu milho, como cultura nativa essencial, pela importação de variedades norte-americanas transgênicas, subsidiadas pelo governo dos EUA. Essa reação inclui populações cujas terras têm sido destruídas para mineração ou pedreiras, pescadores artesanais em luta contra a pesca industrial de alta tecnologia e comunidades afetadas por fábricas que contaminam o ar ou a água dos rios. Na medida em que se expande, a economia global multiplica os seus resíduos, os sistemas naturais são comprometidos e se evaporam os direitos das gerações futuras e os estoques de conhecimento tradicional. No caso brasileiro, exemplos de tensões são os conflitos sobre as novas represas no Rio Madeira – o que acabou precipitando a divisão do Ibama – e a transposição do São Francisco.

Embora ativos, os movimentos ecológicos são muito frágeis quando expostos aos gigantescos interesses da lógica do capital. O lucro dos quatro maiores bancos privados no Brasil em 2007 foi superior ao valor gasto pelo governo no enorme programa social Bolsa-Família, atendendo 11 milhões de famílias. Como resistir à farsa mercadológica de alguns deles ao insinuarem, em páginas inteiras supercoloridas, que transformarão seus clientes em salvadores do meio ambiente? Quem protegerá de fato o direito dos cidadãos ao ar e à água puros e a produtos que não gerem doenças?

Sabemos que crescimento econômico se pode efetivar com crescente desigualdade e aumentos localizados da pobreza. E que o padrão tecnológico e social, incorporado à atual lógica global de produção, leva a uma insuportável deterioração do meio ambiente e das condições de vida saudável. Se não alterarmos o modelo de crescimento, continuaremos a clamar no deserto.

Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional (IRI-USP), presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), é autor de vários livros, entre os quais O Mito do Progresso (Editora Unesp)

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 15/08/2008