EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Sobre um físico e a feliz ignorância, artigo de Carlos Nobre

Embora seja evidente o risco futuro representado pelas mudanças climáticas, ainda há quem prefira continuar vivendo em feliz ignorância

[Folha de S.Paulo] O ARTIGO de José Carlos Azevedo (“O Aquecimento da Terra”, no jornal “O Estado de S. Paulo”, 7/11) surpreende em pelo menos um aspecto. Por um lado, presta justificada homenagem ao famoso físico-químico sueco Svante Arrhenius, o primeiro cientista a prever, em 1896, o aquecimento global devido ao aumento da quantidade de gás carbônico na atmosfera. Mas, logo depois, paradoxalmente, atribui a causas naturais o aquecimento global observado à superfície no planeta Terra. Arrhenius deve ter se revolvido no túmulo ao ver um colega físico formado pelo prestigioso MIT (Massachusetts Institute of Technology, dos EUA) maltratar tanto a física.

Para justificar que as ações humanas não seriam capazes de alterar o clima da Terra, o articulista lança mão do fato de que a energia solar recebida pela Terra é milhares de vezes maior que o total de energia utilizada pelas atividades humanas.

A física de sistemas complexos -e o sistema climático global é um sistema complexo- nos ensina que não é necessário movimentar energias comparáveis àquelas utilizadas nos fenômenos climáticos para alterá-los. Basta que a perturbação atinja um ponto sensível desse sistema.

Esse “ponto sensível” é a mudança na composição da atmosfera, com a injeção maciça de gases de efeito estufa -numa velocidade maior do que a atmosfera pode dispor dos gases, resultando na acumulação atmosférica destes-, que aquecem a superfície e a baixa atmosfera. É, no mínimo, incomum um bom físico não reconhecer isso, conhecimento bastante básico em física e em outras ciências.

Azevedo se utiliza da falácia “non sequitur”, em que a conclusão não segue das premissas, para confundir. Argumenta que, se modelos demográficos não foram bons para prever a população da Terra nas últimas décadas, então modelos climáticos não o são para prever a temperatura do planeta nos próximos 50 anos. É confundir alhos com bugalhos.

Modelos de crescimento populacional buscam quantificar tendências futuras em função de taxas de natalidade e mortalidade presentes e estimadas para o futuro imediato. É sabido que sistemas sociais não seguem leis universais e seria quase impossível prever, há 30 anos -para citar um exemplo demográfico brasileiro-, a vertiginosa queda da fecundidade da mulher brasileira.

As ferramentas utilizadas para chegar às projeções das mudanças climáticas são modelos matemáticos do sistema climático que utilizam as leis universais da física. Por exemplo, as taxas de absorção da radiação térmica pelos gases de efeito estufa -que explicam a física elementar deste efeito e do aquecimento global- são muito bem conhecidas e não mudam de década para década. Aliás, são constantes da física quântica que não se alteraram desde o surgimento desses gases nos primórdios do universo, há mais de 13 bilhões de anos.

O ex-reitor da UnB (Universidade de Brasília) se utiliza de outra falácia: “argumentum ad hominem”, o ataque ao argumentador. Segundo ele, os dirigentes envolvidos com as mudanças climáticas sofrem de poluição mental e escolhem lugares aprazíveis para realizar suas reuniões (Rio, Viena, Kyoto, Bali) e, portanto, não podem ser levados a sério e não necessitamos prestar atenção ao que dizem.

Na realidade, os relatórios do IPCC avaliam amplamente, a cada cinco a seis anos, o avanço do conhecimento científico sobre as mudanças climáticas e representam os consensos dos milhares de cientistas que deles participam, em que se documenta meticulosamente o que é sabido e também as incertezas sobre as mudanças climáticas que já estão ocorrendo e sobre as projeções para o futuro. No momento em que a ciência aponta riscos e perigos da continuidade da trajetória atual de emissões, cabe à classe política estabelecer políticas públicas de enfrentamento às ameaças potenciais.

A Convenção do Clima da ONU e seus desdobramentos são ações políticas em resposta a um desafio de proporções globais, motivado por consensos e projeções de cientistas, algo raro de acontecer no concerto das nações. Como disse recentemente o presidente da Convenção do Clima, Yvo de Boer, é criminalmente irresponsável não atuar imediatamente para reduzir o risco futuro representado pelas mudanças climáticas. No entanto, há ainda aqueles que preferem continuar dormindo em berço esplêndido e viver em feliz ignorância.

CARLOS A. NOBRE, doutor em meteorologia pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), é pesquisador titular do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), presidente do IGBP (International Geosphere-Biosphere Programme) e participante como autor do quarto relatório de avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, na sigla em inglês), de 2007.

(EcoDebate) artigo originalmente publicado pela Folha de S. Paulo, 13/12/2007