EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Floresta precisa de espaço, por Marcelo Gonçalves de Lima

[O Eco] No programa Espaço Aberto da Globo News neste dia 19 passado, a jornalista Miriam Leitão perguntou à ministra Marina Silva sobre a condicionante da Licença Prévia das usinas do rio Madeira que pede uma Área de Preservação Permanente (APP) mínima de 500 metros, a qual tem causado apreensão entre empreendedores. A ministra respondeu que foi informada que houve um “erro de redação” e que na verdade a lei estipula a APP entre 100 e 500 m. Como consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para o licenciamento da parte de fauna e áreas protegidas neste processo, fiz sugestões de condicionantes, entre elas, a que propõe a APP de 500 m. Abaixo coloco os argumentos técnicos e jurídicos para isto. Entendo, entretanto, que cabe em última instância à direção do IBAMA estabelecer quais são as condicionantes finais que serão colocadas nas licenças.

Como argumentação técnica, a proposta visa possibilitar o que chamamos de “desenho da paisagem” e também de “planejamento para a conservação” para a região do rio Madeira que será impactada com os reservatórios. Neste sentido, busca-se manter através de corredores, trampolins ecológicos (stepping stones) e outros elementos, a conectividade, funcional e estrutural, dentro da paisagem.

A conectividade funcional leva em conta o tipo de organismo que está se utilizando da paisagem para “transversá-la”, ou “percololá-la”(semelhante a percolação de fluidos em solos), e as suas características biológicas. A Onça Pintada (Panthera onça), por exemplo, é mais exigente no tipo de ambiente que utiliza para se locomover e reproduzir. Precisa de ambientes mais pristinos, florestais, pouco impactados. Outras espécies, como o passarinho Maria-do-Madeira (Poecilotriccus senex), são restritas às áreas de campinarana, ambientes com solos arenososo, mais abertos, como os encontrados na margem direita da região dos empreendimentos. Portanto, é preciso capturar as diversas variações de fitofisionomias para preservar a grande biodiversidade na área em questão.

Já a conectividade estrutural, leva em conta as condições físicas, topográficas, espaciais dos elementos que propiciam o trânsito de determinadas espécies pela paisagem. Podem ser matas-de-galeria ou ciliares, arbustos, ilhotas de vegetação, cercas vivas, reservas legais, unidades de conservação e áreas de proteção permanente. Nestes casos, é extremamente importante notar os aspectos estruturais destes elementos: forma, tamanho, largura, comprimento,complexidade e heterogeneidade espaciais, diversidade de fitofisionomias, tipo de matriz, dimensão e geometria fractal das manchas (patches), entre outros.

Corredores de biodiversidade

Explorei vários destes aspectos no meu mestrado e doutorado em ecologia no Instituto de Pesquisas da Amazônia e na Universidade de Brasília, respectivamente. No caso do mestrado explorei a possibilidade do uso de remanescentes lineares na Amazônia como corredores de biodiversidade. Estes remanescentes são exatamente as áreas de proteção permanente dos igarapés dentro das propriedades. O trabalho final resultou, além da dissertação, no primeiro artigo científico em periódico internacional sobre corredores de fauna no Brasil e o primeiro sobre corredores na Amazônia, sendo feito em parceria com o Dr. Claude Gascon, na época diretor do Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais (PDBFF) .

No doutorado , pesquisei o uso de reservas legais para aumentar a complexidades estrutural junto as matas-de-galeria que serviriam de elementos de conectividade em ambientes agropastoris, isto no contexto do Projeto Corredor Cerrado Pantanal, iniciativa da Conservação Internacional, da qual fui pesquisador associado na época. Com as conclusões desta pesquisa fiz recomendações para o desenho na paisagem, com a implementação das reservas legais ao longo dos cursos d’água. Estas recomendações podem servir para a elaboração de políticas públicas, não só para o Cerrado, mas também para outros biomas. Estas experiências e mais dezenas de outros estudos me levaram a sugerir a APP de no mínimo 500 m ao redor dos reservatórios das usinas planejadas para o rio Madeira. Por um lado, podem ser garantidos os processos ecológicos de reprodução, fluxo gênico e de estrutura metapopulacional de várias espécies, animais e vegetais aumentando a permeabilidade entre as áreas ainda pristinas. Por outro lado, as próprias APPs podem ter um valor de conservação, servindo de áreas viáveis para a sobrevivência de várias espécies.

Em ambos os casos, é necessário observar algumas lições aprendidas em vários estudos, entre eles no projeto de fragmentação acima citado, na Amazônia. Após mais de 25 anos o PDBFF tem mostrado, juntamente com outros estudos em nível mundial, que existem processos como temperatura, pressão, umidade, incidência de luz, vento, chuva, entre outros, que são alterados por pressões antrópicas: construção de estradas, usinas e linhões, formação de pastos e áreas agrícolas, só para citar alguns , . Estas modificações na paisagem formam bordas entre o preservado e o alterado. Com a criação abrupta destas bordas, os chamados efeitos de borda são acentuados, e muitos deles adentram as florestas por dezenas a centenas de metros.

Fragmentos de 5 hectares (ha), por exemplo, são basicamente bordas na sua totalidade, não tendo nenhum ambiente de interior de mata. Isto prejudica tanto a fauna quanto a flora: animais de interior não tem o seu habitat, e fogem ou são extintos localmente e plantas sofrem com as alterações das condições fisiológicas e climáticas, além de perder seus polinizadores e dispersores. O resultado é o colapso destas florestas e a continuada perda da biodiversidade local. Uma APP de no mínimo 500 metros poderia atenuar estes efeitos de borda, preservando as áreas ao redor dos reservatórios, mantendo os serviços ambientais, dos quais nos beneficiamos (e.g. manutenção do clima, controle de erosão e sedimentação dos reservatórios) e contribuindo para conservar a biodiversidade local, inclusive aquela que pode ser prospectada, de forma sustentável, pelas populações ribeirinhas.

Não tem mínimo

A motivação legal é duplamente embasada. Apesar de não ser advogado, tenho tido bastante contato com a legislação ambiental no licenciamento e também por ter sido conselheiro no CONAMA, onde acompanhei inclusive a discussão sobre uso das APPs, em 2005. Ao contrário do que tem sido comentado, a resolução CONAMA 302 de 2 de março de 2002, não estipula um mínimo de 100 m e um máximo de 500 m para a APP no atual caso, como veremos a seguir.

Primeiramente, nota-se que a resolução define no seu Artigo 2º, inciso II a Área de Preservação Permanente como sendo: “a área marginal ao redor do reservatório artificial e suas ilhas, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas”. As argumentações técnicas acima citadas estão de acordo com a legislação. Continuando no Artigo 3o que diz que “Constitui Área de Preservação Permanente a área com largura mínima, em projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artificiais, medida a partir do nível máximo normal de:

I – trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e cem metros para áreas rurais.” Por fim, o parágrafo 1o deste artigo estabelece que “Os limites da Área de Preservação Permanente, previstos no inciso I, poderão ser ampliados ou reduzidos , observando-se o patamar mínimo de 30 metros, conforme estabelecido no licenciamento ambiental e no plano de recursos hídricos da bacia onde o reservatório se insere, se houver”.

Ou seja, é possível, caso o licenciamento ambiental assim o decida, que a APP seja ampliada, sem haver restrição de largura.

A outra argumentação legal é baseada na característica dos reservatórios onde, de acordo com o EIA, a cota de inundação manteria o nível natural das áreas de inundações em sua maior parte. Portanto os reservatórios seriam o próprio rio, inclusive na visão noticiada dos empreendedores interessados e Ministério de Minas e Energia como uma das vantagens do projeto.

Neste caso pode se remeter à Lei 4.771 de 15 de setembro de 1965, o conhecido Código Florestal Brasileiro. Começando com o Artigo 1o, Parágrafo 2o, Inciso II, define-se APP como sendo “área protegida nos termos dos arts. 2o e 3o, desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas.”.E ainda, de acordo com Artigo 2º, “Considera-se de preservação permanente, pelo efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:

a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja: …

…5) de 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros.”

Desenho da paisagem

Usando a ferramenta de medir do Google Earth, é possível perceber que não existe um trecho com largura inferior a 600 metros entre Porto Velho e a fronteira com a Bolívia, inclusive percebendo que algumas das imagens de satélite são de épocas mais secas, ou seja, a área de inundação das várzeas não estão aparecendo. Sendo assim, as áreas onde ficariam os reservatórios já teriam que ter uma Área de Preservação Permanente de no mínimo 500 metros. Mais uma vez as argumentações técnicas apresentadas estão em sintonia com a legislação brasileira.

Como dito anteriormente, a condicionante é colocada como um ponto mínimo de discussão para dar margem (sem trocadilho) ao desenho da paisagem e o planejamento para a conservação da biodiversidade. É óbvio ululante que não se pretende causar mais transtornos para as populações ribeirinhas, como é o caso dos pescadores dos douradas (Brachyplatystoma rousseauxii). Ao contrário, pretende-se manter os serviços ambientais para assegurar o bem estas destas populações humanas, como preconizam as leis citadas, e, ao mesmo tempo, manter os processos ecológicos existentes, garantindo a sobrevivência da rica biodiversidade da região. Trata-se portanto de uma oportunidade de planejamento do crescimento regional com respeito à natureza e com desenvolvimento sustentável para a região. No frigir dos ovos, são recomendações que têm uma relação custo/benéfício excepcional. Comparado com o montante a ser investido, conservar as áreas ao redor dos reservatórios/rios é insiginificante e altamente benéfico, até para a imagem dos empreendedores.

Nesta época de aquecimento global e preocupação mundial com seus efeitos, inclusive no PIB dos países, investir no meio ambiente é uma decisão racional, como foi argumentado claramente no Stern Report sobre a economia das mudanças climáticas . Exposto isto, espero que as condicionantes que sugeri sejam consideradas como uma grande oportunidade de aplicar os conhecimentos técnicos e a legislação ambiental de forma concatenada e pioneira para a região, buscando o real desenvolvimento sustentável da Amazônia.

* Marcelo Gonçalves de Lima é biólogo e doutor pela Universidade de Brasília, membro da Society for Conservation Biology e segundo secretário da seção brasileira da International Association for Landscape Ecology.

1 de Lima, M. G. & Gascon. C. 1999. The conservation value of linear forest remnants in Central Amazonia. Biological Conservation, 91(241-247).

2 de Lima, M. G. 2003. Ecologia da paisagem e cenários para a conservação da avifauna na região do Paque Nacional das Emas. GO. Tese. Programa de Pós Graduação em Ecologia, Universidade de Brasília. Orientador Prof. Dr. Roberto Brandão Cavalcanti.

3 Bierregaard, R; Gascon, C; Lovejoy, T; Mesquita, R. C G. Lessons from Amazonia. New Haven, Connecticut: Yale University Press, 2001.

4 Laurance, W. F. & Bierregaard, R. O. 1997. Tropical forest remnants ecology, management and conservation. Chicago, University of Chicago Press

5 Stern Review: the Economics of Climate Change.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo sítio O Eco – 26.07.2007
enviado pelo Fórum Carajás