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Artigo

O interesse social versus o ambiental, por Ladislau Dowbor

[Gazeta Mercantil] O consumo predatório no pólo rico do mundo gera uma pressão insustentável. A dimensão dos desafios está se tornando clara. Um dos resultados indiretos das tecnologias da informação e da comunicação, aliadas à expansão das pesquisas em todos os níveis, é que emerge com clareza o tamanho dos impasses. Não se trata de discursos acadêmicos ou de empolamentos políticos. São dados, nus e crus, e já bastante confiáveis, sobre processos que nos atingem a todos. Gradualmente, aquela atitude de lermos no jornal as desgraças do mundo e suspirar sobre coisas tristes, mas distantes, vai sendo substituída pela compreensão de que se trata de nós mesmos, dos nossos filhos, e que a responsabilidade é de cada um de nós. Uma amostra dos relatórios internacionais mais recentes deixa as coisas claras.

O aquecimento global está na ordem do dia. Não há dúvidas que a mídia freqüentemente se apropria das notícias científicas para um alarmismo mais centrado na venda da notícia e da publicidade do que propriamente para informar o cidadão. Mas indo diretamente à fonte, vemos no IV Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas que “o aquecimento do sistema climático é inequívoco, como se tornou agora evidente a partir de observações do aumento das temperaturas médias globais do ar e dos oceanos, derretimento generalizado da neve e do gelo e da elevação global do nível médio do mar”.

As contas do Relatório Stern, encomendado pelo governo britânico, referem-se por sua vez às implicações econômicas da mudança climática. A análise dos dados, segundo Stern, “leva a uma conclusão simples: os benefícios de uma ação forte e precoce ultrapassam consideravelmente os custos. As nossas ações nas próximas décadas poderiam criar riscos de ampla desarticulação da atividade econômica e social, mais tarde neste século e no próximo, numa escala semelhante à que está associada com as grandes guerras e a depressão econômica da primeira metade do século 20. E será difícil ou impossível reverter estas mudanças”.

Os mecanismos de mercado são simplesmente insuficientes, pois, em termos de mercado, sai mais barato gastar o petróleo que já está pronto no subsolo, queimar a cana no campo, encher as nossas cidades de carros. E os dois principais prejudicados do processo, a natureza e as próximas gerações, são interlocutores silenciosos. A visão sistêmica e de longo prazo se impõe, e isto implica mecanismos de decisão e de gestão que vão além do interesse microeconômico imediato. Neste ponto, Stern é direto nas suas afirmações: “A mudança climática apresenta um desafio único à ciência econômica: trata-se da maior e mais abrangente falência do mercado já vista”. É uma declaração forte, que marca a evolução geral das opiniões sobre os nossos processos decisórios por parte de especialistas que pertencem ao próprio sistema, e não mais apenas de críticos externos.
Um outro eixo dramático de transformação está na realidade social que enfrentamos. A ONU realizou, dez anos após o “Social Summit” de Copenhague, um balanço da situação no planeta. O Relatório mostra que no conjunto “o ‘gap’ de renda entre os países mais ricos e os mais pobres aumentou nas décadas recentes”. Em termos internos, o relatório foca o Brasil: “O fosso mais profundo situa-se no Brasil, onde a renda per capita dos 10% mais ricos da população é 32 vezes a dos 40% mais pobres”. (Pág.50.)

O Instituto Mundial de Pesquisa sobre a Economia do Desenvolvimento, da Universidade das Nações Unidas, apresenta outro tipo de dado, que não tínhamos: a concentração do patrimônio acumulado familiar (“household wealth”): “Nossos resultados mostram que o decil superior de riqueza era dono de 85% da riqueza global no ano 2000. Os 2% de adultos mais ricos do mundo tinham mais da metade da riqueza global, e o 1% mais ricos detinha 40% de toda a riqueza familiar. Em contraste, a metade de baixo da população adulta mundial detinha meramente 1% da riqueza global. O valor Gini para a riqueza global foi estimado em 89, sendo que o mesmo valor Gini seria obtido se US$ 100 fossem distribuídos entre 100 pessoas de tal maneira que uma pessoa recebesse US$ 90 e os 99 restantes 10 centavos cada”. Assim, a propriedade é ainda mais concentrada que a renda, o que é compreensível, pois os ricos compram imóveis e ações, enquanto os pobres cobrem apenas as necessidades imediatas.

O Banco Mundial, por sua vez, lamenta a perda de oportunidades empresariais que representa a marginalização econômica de 4 bilhões de pessoas, algo como dois terços da população mundial. Segundo o relatório, “os segmentos de base da pirâmide da população na sua maior parte não estão integrados na economia de mercado global e dela não tiram proveito”. Aparentemente, a ironia do fato de se qualificar 4 bilhões de pessoas de “segmentos da população” escapou aos analistas do banco.

A prosperidade artificial e o consumo predatório que a concentração de renda e de riqueza familiar permite no pólo rico do planeta gera uma pressão mundial por consumo e estilo de vida semelhantes, convergindo assim para uma pressão insustentável sobre o meio ambiente. Pensar de maneira inovadora sobre os processos decisórios que regem o planeta e o nosso cotidiano não é mais uma questão de estar à esquerda e protestando, ou à direita e satisfeito: é uma questão de bom senso e de elementar inteligência humana.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Gazeta Mercantil – 10/07/2007