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Artigo

O bagre transversal, por Marcelo Leite

Ambiente ainda tem imagem de barricada contra desenvolvimento

[Folha de S.Paulo] A dourada (Brachyplatystoma rousseauxii), um bagre que pode alcançar mais de dois metros de comprimento, virou celebridade.

O presidente Lula revoltou-se por ter de engolir esse peixe barbudo – quer dizer, dotado dos devidos barbilhões – do rio Madeira e vê-lo engasgar suas desejadas hidrelétricas Jirau e Santo Antônio.

Quem fisgou a dourada, fonte de proteínas para milhares de ribeirinhos da região amazônica, foi o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Sua sobrevivência é um dos vários problemas detectados no estudo de impacto ambiental dos empreiteiros, que a agência rejeitou. Lula tem razão de inquietar-se com o bagrão ambientalista.

Há motivos para crer que, sem Jirau e Santo Antônio, seu segundo governo pode acabar nas barbas de um novo apagão elétrico.

Os 6.450 megawatts das duas usinas vitaminam as contas de chegar do Ministério de Minas e Energia (MME) para impedir que o PAC vá para o ralo por falta de energia.

Silas Rondeau (MME) disparou um ultimato contra Marina Silva: ou o licenciamento ambiental no Madeira sai até o mês que vem, ou receberá como troco a construção de Angra-3 e mais termelétricas a óleo e carvão.

Acredita-se que o titular do MME conte com o apoio de outra famigerada ministra, Dilma Rousseff (Casa Civil, ex-MME). Lula não sabe o que quer.

Quer manter Marina Silva e usufruir de sua reputação internacional. Ao mesmo tempo, quer que ela se curve aos imperativos dos grandes negócios, das grandes obras e dos grandes financiadores de campanhas eleitorais.

Ou seja, quer que a ministra do Meio Ambiente atropele seu dever de ofício e arranque do Ibama sinal de verde para toda obra que o Planalto considerar inadiável. (Em outras palavras, quer porque quer que ela destrua a reputação da qual ele não quer abrir mão.)

Esse, aliás, é o propósito de um esquisito projeto que o presidente da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), Jerson Kelman, levou ao Congresso “em caráter pessoal” (?): para todos os efeitos, transferir o licenciamento ambiental de empreendimentos estratégicos do Ibama para a Presidência da República.

Só de pensar que Kelman era um dos nomes comentados para substituir Marina Silva quando ainda tentavam derrubá-la… Seria como designar o operador da cadeira elétrica para capelão do corredor da morte.

Não que o Ibama mereça defesa incondicional. Por má vontade, burocracia ou manobras obstrucionistas de um Ministério Público militante, o processo de licenciamento termina condenado por parte da opinião pública como excessivamente moroso.

Essa reprovação não é boa para o país nem para o Ibama.

Marina Silva mudou algumas coisas no instituto. Não deu a devida atenção, porém, à necessidade de demolir sua imagem de barricada contra o desenvolvimento, o progresso e todas essas grandes palavras com que se camuflam interesses poderosos.

Palavras manejadas com desenvoltura por aqueles que defendem as decisões “científicas” da CTNBio (aquela comissão de biossegurança que é técnica antes de ser nacional), mas pedem decisões políticas, não “técnicas”, do Ibama.

De todo esse bafafá sobre as mudanças no Ibama e no MMA há uma lição a extrair: fracassou o objetivo central de Marina Silva ao integrar o governo.

A saber, conferir “transversalidade” à questão ambiental, integrando-a ao cerne das decisões nacionais. Por ora, permanece um bagre atravessado na garganta de Lula.

Marcelo Leite (cienciaemdia@uol.com.br) é autor do livro “Promessas do Genoma” (Ed. da Unesp, 2007) e responde pelo blog Ciência em Dia (http://www.cienciaemdia.zip.net).

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Folha de S.Paulo, Caderno Mais – 29/04/2007