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Artigo

Ditadura da Beleza e transtornos alimentares, por Claudine Aune

Eu estava folheando a Veja Rio há uns meses atrás e na capa estava a bela modelo Daniela Sarahyba na capa, seu belo par de pernas torneadas e bronzeadas, esbanjando graciosidade, saúde, riqueza (num iate em Angra!) e claro, felicidade. Essa é a mesma (e sempre) maravilhosa Sarahyba que há um ano atrás foi à Nova York para solidificar sua carreira de modelo e, para tanto, precisou emagrecer “uns quilinhos” a fim de ficar dentro dos padrões exigidos pelas melhores agências de modelo do mundo. Ela emagreceu bastante e, mesmo assim, ainda irradia uma hipnotizante beleza, sem nenhum traço de alguma doença ou distúrbio alimentar.

Nesta mesma revista, outras modelos estavam lá, numa matéria sobre o Fashion Rio. Rhaisa, 15 anos, 1.77 metros e 49 quilos, participará de todos os desfiles. Vanessa Michels, 16 anos, 1.76 metros e 49 quilos – vencedora da Elite Models em outubro passado. E Flavia Oliveira, 21 anos, 1.80 metros e 50 quilos, que participará dos 29 desfiles do evento. Muito altas, muito magras.

Elas são saudáveis? Parecem ser. Lindas elas são. Bem, a verdade é que não sabemos o que acontece por detrás das câmeras, dentro do espaço íntimo de cada uma. Mas é nítido que a cada ano ou década que passa, as modelos estão ficando cada vez mais magras. Paralelamente, pesquisas evidenciam o aparecimento, em idades cada vez mais precoces, de distúrbios alimentares em adolescentes, ou melhor, pré-adolescentes, como bulimia e anorexia, ou mesmo a combinação de ambos os transtornos.

Uma pesquisa feita pela Unifesp buscava determinar se as modelos “são culpadas” pelo fato de muitas adolescentes sucumbirem aos transtornos da anorexia e bulimia. A conclusão foi que a grande maioria das modelos (88%) não sofria de desnutrição e tinha um percentual normal de gordura corporal e apenas 12% estavam em risco real de desnutrição. Parecem, portanto, que a maioria tem uma constituição genética que favorece a magreza. Embora essa pesquisa pareça comprovar que a grande maioria das modelos tem um corpo saudável, não chegou a avaliar o comportamento dessas mulheres, a fim de averiguar o risco potencial de bulimia ou até mesmo de anorexia. Também não avaliou o impacto que essas mesmas modelos poderiam ter nas meninas adolescentes que assistiam aos desfiles e compravam as revistas nas quais essas modelos estavam expostas.

O grande perigo é que essas modelos magérrimas, saudáveis ou não, veiculam na mídia a sua magreza atrelada ao glamour e ao sucesso, atingindo, assim, um grande percentual de meninas e adolescentes que as têm como verdadeiro padrão de beleza e de estilo de vida. Para tanto, ignoram sua própria constituição biológica a qualquer custo e passam até a odiar seus próprios corpos, seus próprios “eus”. Afinal suas pernas não tão longelíenas, seus corpos não tão esguios e sequinhos quanto aquelas beldades ali nas revistas ou na TV. Acabam por projetar nelas todas as suas fantasias inatingíveis e irreais: quanta felicidade, quanta aceitação e amor teriam se “só” tivessem aqueles cabelos, aquelas longas e esquias pernas, aquela costelinha aparecendo, aquela saboneteira… Sem falar daquela calça tamanho 32/34 que obviamente só caberia naquele corpo magro, totalmente sem gordura e de poucas curvas, como aquele ali estampado na revista. O que resta depois de projetar tanta coisa boa naquelas lindas, magras e ricas modelos? Não muita coisa. Um vazio, um buraco, um “não sei o quê”, um nada. É literalmente um nada, já que quase não se come por horas a fio para alcançar aquela magreza tão desejada e não se pensa mais em outro assunto.

Uma ameaça ainda maior contra a almejada magreza se instala quando a menina começa a sentir as transformações da puberdade: botões doloridos (que um dia serão seios), a cintura acentuada pelo contraste com os quadris que insinuam suas primeiras curvas. Curvas estas, delineadas pela gordura, pelo depósito de estrogênio que toda mulher precisa ter, principalmente para ser fértil.

CURVAS?? NÃO! “Preciso comer menos. Aí! E o chocolatinho das 16hs? Tenho que malhar pra gastar. Quantos km preciso correr pra gastar aquelas calorias? Vou a academia… Ai que fraqueza, não agüento ir. Cadê o laxante pra eu “me livrar” do chocolate? Ainda dá tempo de botar o dedo na goela. Melhor vomitar. Ufa! Botei pra fora! O vazio está de volta… É melhor não comparecer ao jantar, vão querer que eu coma. Nem no café da manhã, melhor dormir até tarde. E a festa da Carla? Não! Vai ter salgadinho e depois o jantar!!! Não, melhor não ir. Ainda nem alcancei meu objetivo: é preciso ficar mais magra. Mais bonita, me vestir melhor, ser mais aceita, ser mais amada. Mas por enquanto, o melhor é ficar por aqui mesmo, no meu quarto. Sem comida e sem gente. Sem tentação. Sem vida. Ai que solidão. Ai, que vazio…”

Os transtornos alimentares são silenciosos, mas podem ser fatais. A bulimia é mais crônica e a anorexia, mais aguda e rápida. Às vezes a família não percebe a tempo de promover ajuda. Costumam se instalar em jovens e mulheres (principalmente) extremamente inseguras e insatisfeitas, que exigem muito de si e dos outros. Acabam fugindo das relações familiares, sociais e afetivas. Buscam incessantemente outras coisas que as preencham: academia, beleza, status, trabalho, dinheiro, etc. Não se sentem amadas o suficiente e costumam ter muita dificuldade com o corpo feminino. Os motivos são os mais diversos, pois cada pessoa é singular e faz parte de um sistema particular. O importante é manter-se atento aos principais sintomas: rápido emagrecimento sem causa aparente e sem estranhamento da própria condição, hábitos alimentares pouco comuns (colocar pouca coisa no prato e espalhar sem comer quase nada, por exemplo), ir ao banheiro sempre e logo depois de comer, o afastamento dos amigos, família e de qualquer convívio social são os principais sintomas.

O tratamento costuma ser eficaz se o distúrbio for detectado a tempo. Dependendo da gravidade, internação se faz necessária, com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, composta de psicólogo, psiquiatria, endocrinologista e clínico geral. Numa fase posterior, uma psicoterapia é imperativa para o progresso em direção à saúde e manutenção do equilíbrio adquirido, sem recaídas.

Claudine Aune
Psicóloga, pós graduada em Neurociência e Psicanálise e em Terapia Cognitiva Comportamental. Membro do Instituto Ori-Aperê Psicossomática Psicanalítica, formada pela PUC-RJ em Psicologia e Administração.

publicado no EcoDebate.com.br – 16/06/2006