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As dúvidas amazônicas relegadas ao silêncio, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Pena que o alarido deflagrado pela crise político-institucional tenha levado a comunicação a relegar a segundo plano questões como a discussão em torno do projeto do governo federal, já aprovado pela Câmara dos Deputados, de colocar em regime de concessão a empresas privadas 130 mil quilômetros quadrados (mais de seis territórios como o de Sergipe) de florestas amazônicas em terras públicas, pelo prazo de 40 anos, para um “manejo sustentável”. São rumos com os quais não se conforma grande parte da comunidade científica e que continuam a suscitar numerosas manifestações, inclusive de leitores inconformados.

“É uma ameaça de catástrofe para as regiões amazônicas”, tem dito e repetido o professor Aziz Ab’Saber, da USP, um dos estudiosos que mais conhece a Amazônia. Ele não tem dúvida de que as concessões levarão a “desastre ambiental” semelhante ao que já aconteceu com esse rumo no Sudeste da Ásia, na África Equatorial, na Austrália e em países latino-americanos. Todos os países que por aí seguiram ficaram sem as florestas e sem as vantagens econômicas e sociais que esperavam.

Outro especialista com pensamento semelhante é o engenheiro agrônomo Ciro F. Siqueira, que já trabalhou na Amazônia. Ele acha que qualquer planejamento de manejo florestal na região só terá êxito se conseguir aproximar os custos (operação, impostos, trabalhistas, etc.) aos da madeira ilegal, que são muito baixos (terras griladas ou invadidas, custo aviltado da mão-de-obra, sonegação de impostos), mas determinam o valor de mercado do produto. Diz ele que nos planos de manejo com concessão de terras públicas na Malásia, como os preços não conseguiam aproximar-se das cotações da madeira ilegal, os concessionários enveredaram pela superexploração predatória das áreas e as empobreceram rapidamente. Teme ele que processo semelhante ocorra aqui, enquanto o escasso debate “passa ao largo dessa questão”.

Ponto de vista semelhante tem sido manifestado pelo professor Niso Higuchi, do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em estudo que assina juntamente com o escritor Thiago de Mello, já mencionado aqui. Eles acham ainda temerário falar em manejo sustentável num ecossistema em que árvores levam de 200 a 1.400 anos para se desenvolver.

Já o professor Luiz Kulchetscki, do Paraná, que trabalhou nessa área também no Canadá, afirma que em mais de 35 anos de vida profissional tem acompanhado numerosas tentativas de manejo florestal na Amazônia, “mas todas inconsistentes e de aplicação prática limitada, destrutivas do rico ecossistema e circunscritas apenas à defesa de idéias de governos, pressões de grupos econômicos ou teses acadêmicas”. A seu ver, “a floresta amazônica apresenta diversificação muito grande de espécies florestais por hectare, tornando a exploração madeireira muito limitada, sem contar com os desastres ecológicos que se fazem na tentativa de sua exploração”. Além do mais, tradicionalmente não se consegue montar sistemas de monitoramento e fiscalização eficazes. Entende ele que a maior vocação da Amazônia é o “desenvolvimento científico”, aliado ao ecoturismo. E sem esquecer as possibilidades que se abrem para projetos no âmbito do Mecanismo do Desenvolvimento Limpo, do Protocolo de Kyoto.

Na recente reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Recife, outro pesquisador do Inpa, Adalberto Luís Val, mostrou o quanto é fundamental o caminho proposto pela entidade nacional de cientistas, de moratória para o desmatamento na Amazônia e investimento maciço em ciência naquela região. Relatou ele que em quatro meses deste ano foram publicados 452 artigos científicos sobre a Amazônia brasileira; mas em apenas 100 houve participação de cientistas brasileiros; 78% das pesquisas foram produzidas por estudiosos de outros países. “Isso é perda de soberania”, disse ele, “pois não temos o domínio das informações produzidas com base em material científico coletado no território brasileiro.” Não é acaso. Apenas 75 dos 2.850 cursos de pós-graduação no Brasil estão na Região Norte, que tem mil doutores, enquanto na Região Sudeste são 30 mil.

Também não é acaso de que não se consiga montar sistemas de fiscalização eficientes que impeçam a predação da Amazônia. O Ministério do Meio Ambiente tem cerca de 0,5% do orçamento da União e ainda vê boa parte de seus recursos contingenciados. Levantamento recente mostrou que de janeiro de 2003 a maio de 2005 esse ministério contou com recursos da ordem de R$ 2,2 bilhões para todo o País, enquanto o Ministério de Minas e Energia teve R$ 21,5 bilhões. Os planos de monitoramento e fiscalização pouco conseguem avançar, por falta de recursos. E com isso cresce o desmatamento. Ainda esta semana a televisão mostrou a derrubada e queima de 9 mil hectares de uma área amazônica há pouco decretada como de preservação permanente; 9 mil hectares significam uma área de 10 quilômetros de extensão por 9 de largura. Mas se levaram seis meses para detectar o problema.

Não estranha, assim, que, em lugar de se discutirem estratégias para a Amazônia, se siga no velho rumo de continuar exportando dali quase somente produtos primários ou de pouco valor agregado, para países que controlam os mecanismos de preços e os aviltam. Nem que o Congresso aprove por decreto legislativo a implantação da usina de Belo Monte, no Rio Xingu, destinada a fornecer energia (provavelmente subsidiada) a novas indústrias voltadas para a exportação de eletrointensivos. Antes mesmo que seja licenciada. E com o País arcando – além do mais, sem compensação – com todos os custos sociais e ambientais.

Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

in O ESTADO DE SÃO PAULO, 29/7/2005