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Retrocesso na agenda socioambiental: O ‘Brasil Grande’ que pensa pequeno

 

A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das “Notícias do Dia’ publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, com sede em Curitiba-PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.

Sumário:

Brasil Grande?
Retrocessos na agenda social
Agenda nova. Velhas visões
Triunfalismo esvazia agenda social
(Des)razões do retrocesso

Eis a análise.

Desde os dois governos Lula, particularmente a partir do segundo mandato [2006], o Brasil vive certo clima de ufanismo. O país voltou a crescer, distribuir renda, tornou-se a 6ª maior economia do mundo e de nação subdesenvolvida passou a nação emergente e potência no cenário internacional em suas expressões política e de mercado.

Economia estabilizada, distribuição de renda via programas sociais, aumento real do salário mínimo, sociedade do quase pleno emprego e faxina na política compõe o quadro que dá a Dilma Rousseff, assim como foi com Lula, altos índices de popularidade e em todas as classes sociais. Renovou-se o sentimento do “Brasil Grande” similar àquele da época dos militares em que se dizia que ‘ninguém segura esse país’.

Esse sentimento de pujança, vigor e ufanismo contrasta, entretanto, com retrocessos na agenda social, na agenda de reformas estruturais e, pior ainda, no recuo de conquistas efetivadas no que se denominou de Constituição Cidadã [1988], resultante das lutas sociais do final dos anos 70 e anos 80. A regulamentação de muitos dessas conquistas caminham para trás e a elas se somam outros ataques aos direitos sociais.

Um paradoxo surge, estamos diante de uma agenda conservadora num governo de esquerda.

Retrocessos na agenda socioambiental, agrária e do trabalho

Os casos de retrocesso na agenda social, ambiental e do mundo do trabalho não são poucos e, entre tantos, podemos citar:

– PEC 215: Projeto de emenda constitucional que propõe transferir do Poder Executivo para o Congresso Nacional a demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas, além de rever os territórios com processo fundiário e antropológico encerrado e publicado. Caso aprovado significa o fim da demarcação das terras indígenas e quilombolas que se arrastam há mais de uma década. Segundo a Constituição de 1988, o processo de demarcação das terras indígenas no país deveria ter sido terminado em 1993. Nas últimas semanas travou-se intensa batalha no Congresso contra a medida.

– ADI 3239: Somado a PEC 215 Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 3239, foi proposta pelo Partido dos Democratas (DEM) contra o Decreto Federal 4887/2003 que regulamentou o processo de titulação das terras dos remanescentes das comunidades de quilombos criando mecanismos que facilitam o processo de identificação e posterior titulação de comunidades. Caso aprovada a representação do DEM, os direitos de populações que historicamente foram discriminadas e jogadas à margem da sociedade ficariam nulos. Mais de 120 anos após o fim da escravidão, a regularização das áreas remanescentes de quilombos ainda enfrenta resistências. Para a CNBB, “a garantia da propriedade das terras secularmente ocupadas pelos quilombolas é dever constitucional e compromisso ético-moral”.

– PEC 483: Segundo a proposta da PEC 483, as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do país onde forem localizadas produção de drogas ou a exploração de trabalho escravo serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário. A proposta tramita há dez anos na Câmara dos Deputados e nunca foi votada. A bancada ruralista impede a votação e o governo nunca se empenhou decisivamente por sua aprovação. Há promessas de que a PEC irá à votação nesse ano.

– Mineração em terras indígenas: O governo está propondo um novo código de mineração que permitirá a exploração de terras indígenas por empresas mineradoras. O argumento do governo é que a regulamentação é necessária para que se estabeleçam regras e controle sobre a exploração das terras indígenas, que hoje ocorre de forma desordenada por garimpeiros, causando grande impacto ambiental e social – e, muitas vezes, provocando conflitos. Além disso, o Estado deixa de arrecadar tributos sobre a exploração dos recursos nacionais. Especialistas, entretanto, alertam que empreendimentos para exploração mineral instalados em terras indígenas podem causar impactos tão grandes nos povos que podem mesmo levá-los à extinção.

– Código Florestal: De todos os temas em pauta, o Código Florestal é visto como o dos mais graves exatamente por simbolizar retrocessos sem precedentes na agenda socioambiental. Segundo organizações ambientalistas a iminente votação de uma proposta de novo Código Florestal é o ponto paradigmático do processo de degradação da agenda socioambiental que flexibiliza a legislação de proteção às florestas, concede anistia ampla para desmatamentos, institui a impunidade e estimulará o aumento do desmatamento, além de reduzir as reservas legais e Áreas de Proteção Permanente – APPs – em todo o País. As organizações alertam ainda que “a versão em fase final de votação afronta estudos técnicos de muitos dos melhores cientistas brasileiros, que se manifestam chocados com o desprezo pelos alertas feitos sobre os erros grosseiros e desmandos evidentes das propostas de lei oriundas da Câmara Federal e do Senado”.

– Matriz energética: Faz poucos dias, a presidente Dilma Rousseff afirmou que não se pode discutir “fantasias” na área energética. O recado da presidenta foi dado aos movimentos sociais que criticam a proliferação de hidrelétricas, principalmente as grandes, em construção ou projetadas para os rios Madeira, Xingu, Tapajós, Teles Pires e Araguaia na região da grande Amazônia. A presidente desqualificou as energias alternativas no exato momento em que pesquisas e estudos apontam para o seu crescimento no mundo todo, particularmente no Brasil, e na sua viabilidade.

– Reforma Agrária: O acesso e a democratização da terra pouco avançou no primeiro ano do governo de Dilma Rousseff. Dados oficiais do Incra revelam que a presidenta conquistou em 2011 a pior marca dos últimos dezessete anos, contrariando a expectativa dos movimentos sociais do campo. Em 2011 foram assentadas apenas 22.021 famílias. Para o MST, os números de 2011 são vergonhosos. João Pedro Stédile, cita entre as razões da paralisia da Reforma Agrária, o descaso do governo que “não compreendeu ainda a importância e a necessidade da reforma agrária como um programa social, de produção de alimentos sadios, para resolver o problema da pobreza no meio rural”.

– Terceirização e precarização do trabalho: Tramita no Congresso o projeto de Lei 4.330 que pretende regularizar o mecanismo da terceirização. Na opinião dos sindicatos, particularmente da CUT, a terceirização precariza as condições de trabalho, aumenta número de acidentes e adoecimentos, reduz salários, amplia a jornada de trabalho, aumenta a rotatividade e desrespeita direitos trabalhistas. Destacam ainda que os trabalhadores terceirizados sofrem com os empecilhos à criação de identidades coletivas nos locais de trabalho. Movimento contra a regulamentação da terceirização lançou um Manifesto em defesa dos direitos dos trabalhadores ameaçados pela Terceirização e um abaixo-assinado.

Agenda nova. Velhas visões

Paralelamente a esse processo de retrocesso em legislações já em vigor ou derrogação de direitos em regulamentações a serem efetivadas, assiste-se a outras iniciativas que fazem coro ao discurso do “Brasil Grande” e sobre as quais há desconhecimento, pouco debate ou até mesmo a tentativa de desqualificação das forças sociais que procuram contestá-las. Destacam-se aqui o debate da Rio+20 e as obras da Copa do Mundo, entre outras.

Rio+20. O debate da superexploração dos recursos naturais planetário e os seus limites se dá no contexto da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento, a Rio+20 e não há muito otimismo com o que vem pela frente. A contribuição brasileira à Conferência tem sido tímida. Pergunta o economista Ricardo Abramovay: “se o país que vai abrigar a conferência não ousa apontar horizontes inovadores em suas posições, como esperar que a própria reunião desperte entusiasmo proporcional ao que deveria ser a sua importância?” A sensação que se tem é que o Brasil dá mais atenção a forma do que ao conteúdo na preparação da Rio+20 e estaria preocupado em passar boa imagem – daí todos os cuidados com a votação do Código Florestal e até seu possível adiamento para após o evento. O país, apesar de todas as condições de assumir a vanguarda nesse debate, estaria declinando dessa postura. Até já se fala em fiasco do evento. O diretor-executivo do Pnuma, Achim Steiner, pede que “o Brasil, como país anfitrião, não deixe que a cúpula apenas reafirme os compromissos de 1992. Isso será um fracasso”.

Copa do Mundo. Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa tem denunciado reiteradamente casos de impactos e violações de direitos humanos nas obras e transformações urbanas empreendidas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil. Os problemas acontecem nas áreas da moradia, trabalho, meio-ambiente, mobilidade, segurança pública, entre outros. Para além desses problemas, outros se somam, como os excessivos gastos brasileiros em estádios que sequer se pagarão num futuro próximo, a subserviência do Estado brasileiro diante da Fifa como na aprovação do texto básico da Lei da Copa e o autoritarismo com que o governo toca o projeto sem espaço para a participação da sociedade civil organizada.

Triunfalismo esvazia agenda social

O que se vê, portanto, é que o clima do “Brasil Grande” eclipsa retrocessos na agenda social, ambiental, agrária e do trabalho. A ascensão social via mercado de consumo esconde problemas estruturais não resolvidos como nas áreas da saúde, educação, moradia, saneamento, sistema prisional entre outros. O inegável crescimento econômico brasileiro, a melhoria de renda do conjunto da população e os programas sociais têm servido de forte argumento de esvaziamento do debate sobre os problemas que persistem na sociedade brasileira e até mesmo dos recuos na agenda socioambiental, agrária e do trabalho.

O triunfalismo com o “Brasil Grande” negligencia a dívida social para os indígenas, negros e os pobres do campo. Os grandes projetos elevados a totens do Brasil potência e a transformação do país em exportador de commodities passaram a justificar retrocessos sociais. Sem terras, indígenas, populações ribeirinhas e quilombolas tornaram-se em muitos casos estorvos. Acrescente-se a isso tudo e decorrente dessa lógica o aumento da violência no mundo rural.

A agenda no Congresso que procura retardar e impedir a demarcação das terras indígenas, a interrupção de legalização dos territórios quilombolas, a tolerância para com o trabalho escravo, a flexibilização do Código Florestal, associados ao projeto do governo de retomada do projeto de mineração, da inoperância na reforma agrária,da insistência de uma matriz energética centrada em megaobras com impactos devastadores revelam que o “Brasil Grande” não permite espaço à contestação e desqualifica as vozes dissonantes.

Sobre essa retomada do espírito do “Brasil Grande”, comenta a jornalista Eliane Brum: “Entre os desafios que um futuro biógrafo enfrentará ao contar a vida e a obra de Dilma Rousseff está o seguinte paradoxo: como uma mulher que entrou na clandestinidade, pegou em armas para lutar contra o autoritarismo e pagou pela sua coerência o preço altíssimo de ter sido torturada vira uma ministra, primeiro, uma presidente depois, que, em se tratando de políticas para a Amazônia e o meio ambiente, incorpora – e o pior, implanta – a mesma visão da ditadura militar que combateu”.

“De novo, – continua a jornalista – estamos de volta ao Brasil Grande que pensa pequeno – mas em plena democracia e numa imprensa sem censura oficial. Acho o paradoxo fascinante do ponto de vista humano, mas um desastre para o país”. Mais: “Talvez, hoje, a presidente Dilma Rousseff passasse um pito na guerrilheira Dilma Rousseff: ‘Não há espaço para a fantasia’”.

(Des)razões do retrocesso

Quais seriam as razões do retrocesso na agenda social mesmo num governo de esquerda? O porquê das enormes dificuldades em se pautar os temas citados anteriormente na sociedade? Quais as razões do isolamento da agenda social? Como explicar a debilidade do movimento social e o descenso das lutas sociais mesmo quando direitos conquistados são atacados?

As respostas não são simples. O próprio enunciado das questões pode ser questionado. Não deixa, entretanto, de ser um paradoxo o fato de que num governo de esquerda a agenda se apresente tão conservadora.

Na opinião de João Pedro Stédile, “estamos num período histórico de descenso do movimento de massas e da falta de mudanças estruturais. E é isso que afeta as mobilizações no campo, e também na cidade” e, segundo ele, agravando essa situação tem-se um governo tecnocrata e um partido de esquerda, o maior deles, sem entusiasmo com reformas estruturais. Na opinião da liderança do MST, “o governo da presidente Dilma Rousseff foi tomado por uma burocracia de segundo escalão que não entende nada de povo” (…) e “o PT virou um partido chapa-branca, que se preocupa mais com cargos e em puxar o saco do governo, deixando de cumprir seu papel de partido político”.

Outra razão para o freio de mão com que o governo lida com a agenda social seria a sua condição de refém das forças conservadoras que lhe dão sustentação. Essa hipótese dá conta de que o pretenso Brasil moderno necessita do Brasil atrasado para continuar em frente. A denominada tese da realpolitik que defende que é preciso muitas vezes recuar para paradoxalmente avançar. As concessões à bancada ruralista, evangélica, ao lobby empresarial, entre outros, explicar-se-iam por essa lógica.

Os problemas enfrentados por sem terras, indígenas, quilombolas, povos ribeirinhos, populações da periferia que devem ser removidas em função de megaprojetos deve-se também a opções políticas. No caso do governo brasileiro ao que se tem denominado de modelo (neo)desenvolvimentista, um modelo que prioriza o crescimento econômico como varinha de condão de resolução de todos os demais problemas. É a partir desse modelo que se justificam e se legitimam as grandes obras: hidrelétricas, estádios, transposição de S. Francisco… Na equação do desenvolvimentismo o meio ambiente se torna secundário, daí a dificuldade do governo lidar com a agenda ambiental (Código Florestal, Rio+20).

Há ainda outras possíveis razões do enfraquecimento da agenda social e mesmo do seu recuo. Vozes fortes que estiveram do lado do movimento social, encontram-se agora do lado oposto, no governo. Essas mesmas vozes e articulações que auxiliaram na construção do movimento social, agora, muitas vezes, o desqualificam. Entre os casos, recentes, têm-se a postura autoritária da ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário que na polêmica do relatório que envolve a hidrelétrica de Belo Monte tentou censurar e desqualificar as posições do movimento social. Outro caso recente envolve o ministro da Casa Civil Gilberto Carvalho que procurou desqualificar o movimento grevista dos canteiros da hidrelétrica de Jirau e Belo Monte utilizando-se dos mesmos argumentos que o patronato costuma utilizar.

Somam-se aos ministros de Estado, parlamentares, milhares de assessores em cargos de confiança que precisam defender as posições do governo e que já não depositam suas energias na agenda do movimento social, muitas vezes, aliás, estão na trincheira oposta.

O recuo da agenda social por outro lado, relaciona-se ao crescente conservadorismo da sociedade que mobiliza-se fortemente em torno de temais morais, mas não necessariamente sociais.

(Ecodebate, 25/04/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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One thought on “Retrocesso na agenda socioambiental: O ‘Brasil Grande’ que pensa pequeno

  • Não é verdade que Dilma faz uma “faxina na política”, antes o contrário, o Brasil é dos mais corruptos do mundo, vergonhosamente, acirradamente, corrupção e tráfico de poder dos grossos, com milhares de cargos comissionados como nunca, marionetes do PT, do federal aos municipais. E tem mais: é o único país de ex-ditadura que não puniu e nem pune os torturadores, Dilma, ex-militante? Dá licença…

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