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Nuclearização na América Latina: uma ameaça real, artigo de Zoraide Vilasboas

radiação

[EcoDebate] A oficina sobre Nuclearização na América Latina – A volta de um velho fantasma? promovida pela Fundação Heinrich Böll no Fórum Social Mundial, em Belém do Pará (29/01/09), evidenciou que, desde 2005, a indústria nuclear intensificou seu agressivo lobby em diversos países da região, com forte influência nos setores legislativos e da política energética, tentando impor a implantação de usinas, sob o falso argumento de que a energia nuclear é uma fonte “limpa”, segura e concorre para combater o aquecimento global.

A Heinrich Böll é uma fundação alemã, sem fins lucrativos, ligada à coalizão partidária Aliança 90/O Verdes, que atua em 60 países incentivando o exercício da democracia, da cidadania e o diálogo internacional. Instalada pelo diretor do escritório da Heinrich Böll no Brasil, Thomas Fatheuer, a oficina, realizada em parceria com o Greenpeace, reuniu organizações da sociedade civil em mais um esforço da Fundação para impulsionar a reorganização do movimento antinuclear em torno de uma estratégia comum de enfrentamento da política energética sinalizada pelos governos da América do Sul.

Indústria “suja” e insegura

O ambientalista Sérgio Dialetachi, representante da Fundação Böll, apresentou um panorama abrangente do jogo pesado da indústria nuclear para avançar em vários países do Continente Sulamericano, especialmente no Brasil, onde é crescente a preocupação com a ameaça da expansão da exploração de urânio, a implantação de usinas de enriquecimento e de novos reatores, além da construção de submarinos nucleares. É uma indústria extremante cara e, apesar de já ter consumido muito dinheiro (cerca de 40 bilhões de dólares), não consegue evitar a incompetência técnicooperacional, nem a insegurança do setor.
“Além de ineficiente para responder à demanda de energia no Brasil, é “suja”, não só por causa da produção de lixo atômico, para o qual nenhum país do mundo encontrou solução, mas sobretudo do ponto de vista dos interesses envolvidos, em especial os militares. Não há no mundo um projeto bélico que não tenha começado numa usina nuclear, ou num projeto de produção de energia. Na Universidade de Chicago, em l942, onde funcionou o primeiro reator para geração de eletricidade, projetado para fins pacíficos, foram feitos os ensaios para a bomba de Hiroshima, de 1945. Então a ligação entre interesses militares, bélicos, está na origem do setor nuclear,” ressaltou Sérgio, demonstrando a intrínseca ligação entre os setores bélico e nuclear.

O programa nuclear paralelo desenvolvido no Brasil registrou diversos episódios ilegais, como “o do reator experimental dentro do IPEN, na USP, de onde foi contrabandeado urânio enriquecido para o Iraque, de Sadam Hussein, em 1981. Depois, a Aeronáutica construiu um poço estratégico para testes, no Porto da Serra do Cachimbo, no Sul do Pará, onde pousou o Legacy, que chocou com o avião da Gol. O poço só foi fechado em 1992, ferindo por 4 anos a Constituição Brasileira que proíbe a fabricação de artefato nuclear no país. A Marinha, por sua vez, tem um minireator teoricamente desenvolvido para um submarino, que o presidente Hugo Chavez propôs colocar na Amazônia Venezuelana, afirmando que poderá ser usado para a defesa em áreas remotas. A França se destaca no mundo como grande lobista nuclear. O presidente Sarkozy aqui esteve e vai ajudar a Marinha a terminar o submarino, que, há anos, não passa de uma maquete, enquanto o ministro da Defesa, Nelson Jobim, acha que não precisamos de um só submarino, mas de uma frota para defender o pré-sal frente aos EUA”, ironizou.

Comentando a série de fatos que expõem os dilemas do Programa Nuclear Brasileiro, Sérgio mencionou os problemas em unidades industriais, que tiveram que refazer projetos de engenharia, depois das obras iniciadas ou em funcionamento, como Angra 1 e a usina da INB, na Bahia; a insegurança em instalações e em processos produtivos, que resultam em contaminação do lençol freático, como em Caetité e em Interlagos, em São Paulo; os acidentes operacionais, ou com operários; o lixo atômico e descargas de rejeito radioativo, a céu aberto, como em Itu, e contaminação do solo pela usina de Santo Amaro, ambas em São Paulo.

Degradação social e ambiental

Avaliando a experiência nuclear na Argentina, o engenheiro Pablo Bertinat, do Cone Sul Sustentável, revelou que em seu país, a indústria nuclear deixa um passivo monumental, tendo acumulado milhares de toneladas de resíduo radioativo, especialmente em Córdoba, Mendoza e Salta. É uma dramática realidade que reforça “nossos argumentos de que a energia nuclear é desnecessária e temos alternativas de grande potencial e menos impactantes para resolver a problemática energética”. Até o momento, a indústria nuclear deixou danos ambientais catastróficos, e a Comissão Nacional de Energia da Argentina reconhece que as minas são irreparáveis e os prejuízos irrecuperáveis. O Centro Atômico Ezeiza, na província de Buenos Aires, por exemplo, está na mira da Justiça pelos elevados índices de urânio encontrados nas águas subterrâneas das proximidades. Pablo informou que a maior resistência contra essa fonte de eletricidade está nos setores diretamente ligados à atividade uranífera, nos movimentos que lutam contra a privatização da água e nos produtores de vinhos, de frutas, comerciantes dos mais afetados pela contaminação de mananciais.

Mesmo neste cenário de degradação ambiental e social, a ameaça de nuclearização da América Latina é real, com o Brasil dividindo com a Argentina a liderança nessa corrida. Ambos têm jazidas de urânio significativas, processo de enriquecimento em curso, usinas e minireatores. O Brasil já tem acordo de cooperação com a Venezuela, que firmou acordo com a Rússia para cooperação na produção de equipamentos. Outros países da América do Sul estão discutindo a fonte nuclear como alternativa para suas demandas de energia, como a Bolívia, Equador e Uruguai. O Peru e o Chile planejam construir usinas.

Angra 3: um projeto inviável

O descrédito na tecnologia nuclear foi analisado pelo engenheiro elétrico Ricardo Baitelo, ao explicar por que o Greenpeace atua contra o Programa Nuclear Brasileiro e comentar os estudos técnicocientíficos produzidos, a partir de 2007, com o intuito de esclarecer a opinião pública que Angra 3 é um projeto inviável do ponto de vista técnico, econômico e ambiental. “Existem alternativas mais baratas, eficientes e seguras para suprir a demanda de eletricidade e proporcionar o desenvolvimento econômico e social do país, a partir de uma matriz mais limpa, com participação maior das energias renováveis, sem a necessidade de eletricidade nuclear ou termoelétricas”, disse.

O Relatório “Cortina de Fumaça: Emissões de CO2 e outros impactos da energia nuclear” comprova que a produção de energia nuclear não evita emissões de gases do efeito estufa, não ajudando no combate das mudanças climáticas. Coordenador da Campanha de Energia Renovável do Greenpeace, Baitelo revelou que desde o anúncio da construção de Angra 3, “rebatemos todos os argumentos de que essa energia é “limpa” e não emite gás. A usina não emite na operação, mas a cadeia de produção gera emissões mais altas do que as energias renováveis, como a solar e eólica. A parte da mineração tem emissões bastante elevadas, o enriquecimento, o transporte também, sendo grande o custo ambiental, tendo ainda o encerramento da atividade, raramente computado”. Já o “Elefante Branco: os verdadeiros custos da energia nuclear” expõe a inviabilidade econômica de Angra 3, que custará de R$9 a 11 bilhões, bem além dos R$ 7,2 bilhões anunciados pelo governo. Este investimento daria para construir um parque eólico com o dobro da capacidade dessa usina, que é de apenas 1350 MW, sem gerar lixo e sem risco de acidentes.

Com o “Ciclo do Perigo – Impactos da Produção de Combustível Nuclear no Brasil”, o Greenpeace apresentou um quadro dos impactos sócioambientais e dos riscos da energia nuclear na Bahia, onde começa a produção do combustível que alimenta a Central Nuclear de Angra dos Reis. A organização denunciou contaminação radioativa em amostras de água usada para consumo humano, na área de influência direta da mineração da INB em Caetité, revelando uma presença de urânio maior que o índice permitido pela Organização Mundial de Saúde em dois, de 11 poços pesquisados.

Impactos da mineração baiana

Os relatos de organizações e movimentos sociais, que convivem com os problemas gerados do inicio ao fim da cadeia de produção da energia atômica, reafirmaram as análises críticas dos especialistas Sérgio Dialetachi e Ricardo Baitelo ao Programa Nuclear Brasileiro. O Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania, que acompanha as comunidades impactadas pela única unidade de produção de urânio em atividade no país, situada entre os municípios de Caetité e Lagoa Real, falou sobre a gravidade da situação. Em Caetité, município de 46 mil habitantes, localizado no Polígono das Secas, a 754 Km de Salvador, capital da Bahia, o urânio é extraído do minério, purificado e concentrado em forma de sal amarelo, indo para o Canadá, dali saindo para ser enriquecido na Alemanha, Holanda e Reino Unido, de onde volta para a Fábrica de Rezende (RJ), onde se conclui a geração do combustível.

“A INB, que é controlada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, começou a minerar em 2000, sem a Licença de Operação do IBAMA, só concedida em 2002. A empresa opera sem a licença definitiva da CNEN e descumpre condicionantes fixadas pelo IBAMA, não fazendo o controle da saúde da população e dos trabalhadores. Seus estudos hidrogeólogicos estão sendo questionados pelo Instituto de Águas da Bahia. São 9 anos de ilegalidades, com mais de 10 episódios, entre acidentes e incidentes, nas instalações, ou com operários”, disse a representante do Movimento Paulo Jackson.

A empresa foi acusada de imperícia e negligência pela CNEN, responsável ao mesmo tempo pelo fomento e fiscalização das atividades nucleares e radioativas no Brasil. A mesma CNEN que, contrariando suas próprias normas de segurança, renovou por mais de seis vezes a Autorização de Operação Inicial, porque a INB não consegue se enquadrar nas normas de segurança e radioproteção, que só admite a renovação dessa Autorização duas vezes. A empresa tem problemas técnicooperacionais, trabalhistas e também com o transporte do urânio, que atravessa cerca de 4O municípios e povoados até o porto de Salvador, onde é embarcado para o Canadá. Mas o conflito maior tem com os moradores do entorno da mina, que formam o setor mais atingido, não só por usarem água imprópria para consumo humano e animal, como pelo agravamento da disputa pela água, produto escasso na região e muito consumido pela INB.

Desde 2001, foi pedida ao Ministério Público Federal uma auditoria independente para avaliar o real impacto dos acidentes e de todos os aspectos relativos ao funcionamento da INB. Esta inspeção, finalmente, será realizada, conforme anunciou o Ministério Público Federal em Audiência Pública em Caetité, em novembro passado, atendendo histórica reivindicação das populações de Caetité e Lagoa Real.

Desrespeito aos Direitos Humanos

A oficina, mais uma vez, evidenciou que em todo mundo, o ciclo produtivo da energia nuclear, fonte de eletricidade insegura, cara, perigosa e poluente desde a sua origem, representa uma ameaça à vida, pelos riscos graves que são inerentes à atividade atômica. Demonstrou também que o drama vivenciado por populações da América Latina, que convivem com alguma das fases de produção da energia nuclear, é semelhante. Os problemas trazidos ao Rio de Janeiro, pela Eletronuclear, no processo de construção das usinas Angra 1 e 2, são mesmo similares àqueles decorrentes da implantação da indústria de beneficiamento de urânio em Caetité, onde as promessas de muito emprego e progresso não se concretizaram. Em compensação, os problemas sócio-ambientais nos dois estados se avolumam e os direitos humanos à saúde, à segurança no meio ambiente do trabalho, à informação, são desrespeitados impunemente.

“No início, a população não tinha idéia dos perigos que representavam aqueles empreendimentos. A Central Nuclear acabou com Angra. A sociedade civil não tem controle sobre o que acontece lá dentro. Nos inúmeros problemas ocorridos nas usinas, mandam relatórios para o prefeito, para a Defesa Civil, mas não explicam direito o que acontece. Usam termos técnicos e dizem que tudo está resolvido, que fazem o monitoramento, mas não temos acesso a nada.” afirmou Nádia Valverde, da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica, Sapê. Já o plano de emergência é falho. Se acontecer algum evento que precise evacuar a população, não vai funcionar. Eles não têm estrutura médica e nem abrigos apropriados. Anualmente fazem uma simulação e cada ano sai pior, embora digam que estão melhorando o plano”, completou.

O coordenador da Sapê, Rafael Ribeiro, considera a decisão do governo de construir Angra 3, um modelo tecnológico projetado há cerca de 50 anos, como um dos piores equívocos da política energética brasileira, que, ignorando todos os argumentos técnicocientificos contrários, insiste em adotar essa ultrapassada energia, sustentando um polêmico e arrastado licenciamento, que acabará, ao arrepio das leis, permitindo a instalação da usina, mesmo sabendo que ao longo da construção não haverá solução para o lixo radioativo.

Rafael apontou a necessidade de ampliação da campanha antinuclear, particularmente no Nordeste, onde a Bahia, Sergipe, Pernambuco e Alagoas disputam uma das quatro usinas já anunciadas pelo governo. Ali, a Eletronuclear tem feito discussões em Legislativos, com os Executivos, “tentando minimizar a desconfiança que existe sobre sua competência tecnológica, como as questões ligadas à insegurança do funcionamento dos reatores e ao gerenciamento dos rejeitos, para vender a idéia de que a usina vai levar progresso. Precisamos reagir a essa estratégia da conversa doce, com o bolso cheio de dinheiro para os políticos e outro cheio de mazelas para a população,” enfatizou.

Catecismo de Santa Quitéria

Outro temor, comum às populações que vivem em locais onde se desenvolvem atividades do ciclo produtivo da energia nuclear, ocorre na área da saúde. Em Caetité, os casos de câncer são crescentes. Em Angra, o índice é alarmante, sendo o maior do Rio de Janeiro. Já no Ceará, a realidade de quem vive onde fica a segunda jazida de urânio a ser minerada no Brasil, é bem parecida com a baiana. Em Madalena, um dos municípios a ser impactado pela exploração do urânio de Itataia (CE), o padre Richard Cornwall tem uma lista de mais de 600 pessoas que morreram de câncer desde 1958. “Câncer é só um dos problemas de saúde causado pela radiação ionizante produzido pela fissão nuclear – e no nosso caso fusão nuclear, também – do teste nuclear. A contaminação da radiação ionizante é produzida pelo nuclearismo desde a mineração até a disposição final do lixo atômico. É incomparavelmente pior que qualquer outra contaminação que poderíamos encontrar. É invisivel e vai afetando a vida biológica hoje e por gerações futuras de formas imprevisíveis”, disse.

Padre Richard passou a pesquisar o nuclearismo desde 1999, quando soube de um teste nuclear atmosférico clandestino perto de Madalena, em 6 de agosto de 1957. Aparentemente houve 16 destes testes clandestinos no Brasil entre julho de 1957 e junho de 1958. E em resposta ao “Projeto Santa Quitéria”, que pretende explorar fosfato e urânio no Sertão Central a partir de Itataia, perto de Madalena, ele escreveu “O Catecismo de Santa Quitéria”. Ressaltando que fosfato e urânio, são altamente contaminantes, explicou que “o fluor emitido no processamento de fosfato é um gás, que contribui para o efeito estufa, uma das causas do aquecimento global. Por onde o vento leva este gás, tem menos safra agrícola e problemas de fluorose nos animais domésticos que resulta em juntas inchadas, perda de dentes, dor nos ossos, perda de peso, inanição e morte. Para cada tonelada de fosfato produzido, a indústria cria cinco toneladas de gípso radioativo”.

Segundo ele, o processamento de urânio só consegue tirar l5% do urânio destes rejeitos do processamento de fosfato. Todos os rejeitos radioativos desta mineração e o processamento vão produzindo gás radônio, radioativo por dezenas de milênios. O vento e a chuva espalha este material radioativo, contaminando o meio ambiente. Com o tempo, chega a contaminar qualquer água subterrânea. Por onde passa o gás radônio, os índices de câncer são mais altos. “Além do mais, o material produzido no Sertão cearense não vai ficar aqui, deve ir para China e India, através de bancos norteamericanos. A mineração de urânio em grande escala serve principalmente para armamentos nucleares e usinas nucleares. O mundo não precisa de toda esta contaminação”, concluiu.

Radiação sem controle

“A insegurança, a intranqüilidade, o medo, mas também a disposição de lutar contra o programa nuclear brasileiro identificam as vítimas do setor nuclear, caracterizado pela imposição de um sigilo estratégico, pela falta de informação, de transparência e de controle social”, disse Odesson Alves, da Associação das Vítimas do Césio-137, ao falar do maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo, ocorrido fora das usinas nucleares, símbolo maior do desleixo e da incompetência do poder público.

Falando sobre o drama das 1.600 pessoas que, em 1987, tiveram suas vidas totalmente transtornadas, perderam seu passado, sua identidade, Odesson ressaltou que “até hoje essas famílias sofrem com a falta de assistência do estado e o preconceito. A tragédia de Goiânia exibiu a irresponsabilidade da CNEN com as pessoas atingidas e o descaso com as fontes radiológicas existentes no Brasil, onde, segundo a Associação de Fiscais em Radioproteção Nuclear, existem mais de 30 mil fontes sem controle pelo governo federal,” concluiu.

* Zoraide Vilasboas, da Coordenação de Comunicação da Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania, é colaboradora e articulista do EcoDebate.

[EcoDebate, 14/03/2009]

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