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Artigo

Ecologia dos Saberes segundo Boaventura Santos, Parte 1/4, artigo de Roberto Naime

 

artigo

Resenha de “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, de Boaventura Santos, por Roberto Naime

[EcoDebate] SANTOS (2007) sistematiza que as linhas cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem, no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas nas relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo.

A injustiça social global estaria associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”.

SANTOS (2007) assinala que o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas últimas fundamentam as primeiras.

As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos, o “deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”.

A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece como realidade, torna-se inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer modo de ser relevante ou compreensível.

Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção de inclusão considera como o “outro”.

A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. O universo “deste lado da linha” só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética.

Se caracteriza a modernidade ocidental como um paradigma fundado na tensão entre a regulação e a emancipação sociais. Essa distinção visível fundamenta todos os conflitos modernos, tanto em termos de fatos substantivos como de procedimentos.

Mas a distinção subjaz uma outra, na qual a anterior se funda, a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. De fato, a dicotomia entre “regulação ou emancipação” se aplica apenas a sociedades metropolitanas.

SANTOS (2007) assevera que seria impensável aplicar esta concepção aos territórios coloniais, aos quais se aplica a dicotomia “apropriação ou violência”, por sua vez inconcebível de aplicar a este lado da linha. Contudo, a inaplicabilidade do paradigma “regulação ou emancipação” aos territórios coloniais não comprometeu sua universalidade.

O pensamento abissal moderno se destaca pela capacidade de produzir e radicalizar distinções. Por mais radicais que sejam essas distinções e por mais dramáticas que possam ser as consequências de estar em um ou outro de seus lados, elas pertencem a este lado da linha e se combinam para tornar invisível a linha abissal na qual estão fundadas.

As distinções intensamente visíveis que estruturam a realidade social deste lado da linha se baseiam na invisibilidade das distinções entre este e o outro lado da linha.

O conhecimento e o direito modernos representam as manifestações mais cabais do pensamento abissal. Dão conta das duas principais linhas abissais globais dos tempos modernos, as quais, embora distintas e operando de modo diferenciado, são interdependentes.

Cada uma cria um subsistema de distinções visíveis e invisíveis de tal modo que as últimas se tornam o fundamento das primeiras. No campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concessão do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso à ciência, em detrimento de conhecimentos alternativos que são a filosofia e a teologia.

Esse monopólio está no âmago da disputa epistemológica moderna entre as formas de verdade científicas e não-científicas. Já que a validade universal da verdade científica sempre é muito relativa, pois só pode ser estabelecida em relação a certos tipos de objetos em determinadas circunstâncias e segundo determinados métodos.

Essas tensões entre a ciência, de um lado, e a filosofia e a teologia, de outro, vieram a se tornar altamente visíveis, mas todas elas, como defendo, têm lugar deste lado da linha. Sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de conhecimento que não se encaixam em nenhuma dessas modalidades.

São os conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado da linha, que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso.

É inimaginável aplicar nos mesmos a distinção científica entre verdadeiro e falso, e também as verdades inverificáveis da filosofia e da teologia, que constituem o outro conhecimento aceitável deste lado da linha.

SANTOS (2007) assinala que do outro lado não há conhecimento considerado como real. Existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que na melhor das hipóteses podem se tornar objeto ou matéria-prima de investigações científicas.

Logo, a linha visível que separa a ciência de seus “outros” modernos está assentada na linha abissal invisível que separa, de um lado, ciência, filosofia e teologia e, de outro, conhecimentos tornados incomensuráveis e incompreensíveis, por não obedecerem nem aos critérios científicos, dentro da atual concepção de ciência.

E no campo do direito moderno, este lado da linha é determinado por aquilo que se reputa como legal ou ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou o direito internacional.

Distinguidos como as duas únicas formas de existência relevantes perante a lei, o legal e o ilegal acabam por constituir-se numa distinção universal. Tal distinção central deixa de fora todo um território social onde essa dicotomia seria impensável como princípio organizador.

SANTOS (2007) assinala que a linha abissal invisível que separa o domínio do direito do domínio do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha organiza o domínio do direito.

SANTOS (2007) prossegue assinalando que em cada um dos dois grandes domínios, as ciências e o direito, apresentam divisões abissais no sentido de que eliminam definitivamente quaisquer realidades que se encontrem do outro lado da linha ou fora do domínio da metodologia hegemônica.

Essa negação radical fundamenta a afirmação da diferença radical que separa o verdadeiro do falso, o legal e o ilegal. O outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiências desperdiçadas, tornadas invisíveis, assim como seus autores, e sem uma localização territorial fixa.

Na verdade existiu originalmente uma localização territorial, a qual coincidiu historicamente com um território social específico, a zona colonial.
Tudo o que não pudesse ser pensado em termos de verdadeiro ou falso, de legal ou ilegal, ocorria na zona colonial.

SANTOS (2007) assinala que a este respeito, o direito moderno parece ter alguma precedência histórica sobre a ciência na criação do pensamento abissal. De fato, foi a linha global que separava o Velho Mundo do Novo Mundo que tornou possível a emergência, deste lado da linha, do direito moderno e em particular do direito internacional moderno.

A primeira linha literal e concreta global moderna, foi provavelmente a do Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha (1494), mas as verdadeiras linhas abissais emergem em meados do século XVI com as “amity lines” (linhas de amizade).

Seu caráter abissal se manifesta no elaborado trabalho cartográfico investido em sua definição, na extrema precisão exigida a cartógrafos, fabricantes de globos terrestres e pilotos, no policiamento vigilante e nas duras punições às violações.

Na sua constituição moderna, o colonial representa não o legal ou o ilegal, mas o sem lei. Uma máxima que então se populariza, “Não há pecados ao sul do Equador”, ecoa na famosa passagem dos “Pensamentos” de Pascal, escritos em meados do século XVII. “Três graus de latitude subvertem toda a jurisprudência. Um meridiano determina a verdade. Singular justiça que um rio delimita! Verdade aquém dos Pirineus, errado além”.

SANTOS (2007) destaca que de meados do século XVI em diante, o debate jurídico e político entre os Estados europeus acerca do Novo Mundo concentra-se na linha global, na determinação do colonial, e não na ordenação interna do colonial.

O colonial é o estado de natureza, onde as instituições da sociedade civil não têm lugar. Hobbes refere-se explicitamente aos “povos selvagens em muitos lugares da América” como exemplares do estado de natureza, e Locke pensa da mesma forma ao escrever em “Sobre o governo civil”, “no princípio todo o mundo foi América”.

O colonial constitui o grau zero a partir do qual são construídas as concepções modernas de conhecimento e direito. As teorias do contrato social dos séculos XVII e XVIII são tão importantes por aquilo que dizem como por aquilo que silenciam.

A mesma cartografia abissal é constitutiva do conhecimento moderno. Mais uma vez, a zona colonial é por excelência o universo das crenças e dos chamados procedimentos incompreensíveis, que de forma alguma podem ser avaliados como científicos e considerados como conhecimento. Por isso estão para além do verdadeiro e do falso.

O outro lado da linha alberga apenas práticas mágicas ou idolátricas, cuja completa estranheza conduziu à própria negação da natureza humana de seus agentes.

Com base nas suas refinadas concepções de humanidade e de dignidade humana, os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os selvagens eram subumanos.

A questão era se os índios têm alma. Quando o papa Paulo III respondeu afirmativamente em sua bula “Sublimis Deus”, de 1537, concebeu a alma dos povos selvagens como um receptáculo vazio, uma “anima nullius”, muito semelhante à “terra nullius”, o conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e a ocupação dos territórios indígenas.

Com base nessas concepções abissais de epistemologia e legalidade, a universalidade da tensão entre regulação e emancipação, aplicada a este lado da linha, não entra em contradição com a tensão entre apropriação e violência, aplicada ao outro lado da linha, conforma propõe neste texto clássico SANTOS (2007).

A apropriação e a violência assumem formas diferentes nas linhas abissais jurídica e epistemológica, mas em geral a apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física, material, cultural e humana.

SANTOS (2007) indica que na prática, é profunda a ligação entre a apropriação e a violência. No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias e de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão.

Até a pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, ao passo que a violência é exercida mediante a proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos e a adoção forçada de nomes cristãos.

E a conversão e destruição de símbolos e lugares de culto e a prática de todo tipo de discriminação cultural e racial. Existe então uma cartografia moderna e dual no âmbito epistemológico.

A profunda dualidade do pensamento abissal e a incomensurabilidade entre os termos da dualidade foram implementadas por meio das poderosas bases institucionais como universidades, centros de pesquisa, escolas de direito e das sofisticadas linguagens técnicas da ciência ou até mesmo na jurisprudência.

O outro lado da linha abissal é um universo que se estende para além da legalidade e da ilegalidade e para além do verdade e da falsidade. Juntas, essas formas de negação radical produzem uma ausência radical, a ausência de humanidade, a subumanidade moderna.

A exclusão se torna simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres subumanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social.

A humanidade moderna não se concebe sem uma subumanidade moderna. A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para que a outra parte da humanidade se afirme como universal.

O argumento é que essa realidade é tão verdadeira hoje quanto era no período colonial. O pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que separam o mundo humano do mundo subumano, de tal modo que princípios de humanidade não são postos em causa por práticas desumanas.

As colônias representam um modelo de exclusão radical que permanece no pensamento e nas práticas modernas ocidentais tal como no ciclo colonial. Hoje, como então, a criação e a negação do outro lado da linha fazem parte de princípios e práticas hegemônicos.

Guantánamo em Cuba, representa uma das manifestações mais grotescas do pensamento jurídico abissal, da criação do outro lado da fratura como um não-território em termos jurídicos e políticos, um espaço impensável para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia.

Contudo, seria um erro considerá-la exceção. Existem muitas Guantánamos, desde o Iraque até a Palestina. Mais do que isso, existem milhões de Guantánamos nas discriminações sexuais e raciais, quer na esfera pública, quer na privada.

Existem zonas selvagens nas megacidades, controladas por outras hegemônias como tráfico de drogas. E também nos guetos, nas prisões, nas novas formas de escravidão, no comércio ilegal de órgãos humanos, no trabalho infantil e na exploração da prostituição.

A tensão entre regulação e emancipação continua a coexistir com a tensão entre apropriação e violência, de tal maneira que a universalidade da primeira tensão não é questionada pela existência da segunda.

Se sustenta que as linhas abissais ainda estruturam o conhecimento e o direito modernos e são constitutivas das relações e interações políticas e culturais que o Ocidente protagoniza no interior do sistema do arranjo de equilíbrio do mundo atual.

A cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia literal das linhas que separavam o Velho do Novo Mundo, segundo SANTOS (2007).

Um outro mundo é possível, mesmo dentro da livre iniciativa. Nada é contra a livre-iniciativa. Que sem dúvida sempre foi e parece que sempre será o sistema que melhor recepciona a liberdade e a democracia. Mas uma nova autopoiese sistêmica para o arranjo social, é imprescindível.

 

Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Aposentado do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

Sugestão de leitura: Civilização Instantânea ou Felicidade Efervescente numa Gôndola ou na Tela de um Tablet [EBook Kindle], por Roberto Naime, na Amazon.

 

Referência:

SANTOS, Boaventura de Sousa, Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes, Novos estud. – CEBRAP n. 79 São Paulo nov. 2007, http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 02/09/2019

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One thought on “Ecologia dos Saberes segundo Boaventura Santos, Parte 1/4, artigo de Roberto Naime

  • Valdeci Pedro da Silva

    SISTEMA DE LIVRE INICIATIVA OU CAPITALISTA, AUSÊNCIA DE LIBERDADE E DE DEMOCRACIA.
    O capitalismo só produz destruição; um outro mundo não é possível sob o jugo do capitalismo.
    No sistema de livre-iniciativa, ou capitalista, só existe liberdade para o capital, e democracia, no sistema de livre-iniciativa ou capitalista, só existe enquanto sonho de minoria dos oprimidos que ainda é capaz de sonhar.
    Não é Roberto Naime?

Fechado para comentários.