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O que é mesmo a morte? E a vida? artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Numa série de ensaios de personalidades do mundo científico, a revista New Scientist (13/10/2007) levanta alguns temas perturbadores. Primeiro, partindo do fato de que os êxitos da medicina estão eliminando infecções que são das causas mais freqüentes de mortes – e com isso alongam a vida média das pessoas -, coloca-se esta questão: a contrapartida da vida mais longa costuma ser a convivência com doenças crônicas, degenerativas e/ou desabilitantes; e como é mais lucrativo para a indústria farmacêutica fabricar drogas que mantêm vivos os pacientes, mas não curados, do que curar a doença e perder o consumidor, quase não se avança em produtos para combater as doenças da velhice. Na Grã-Bretanha, por exemplo, entre 1991 e 2001, a vida média dos homens passou de 72,5 para 75,5 anos e a das mulheres, de 78,5 para 80,5 anos. Mas a vida média sadia masculina passou de 66,5 para apenas 67,5 anos e a feminina, de 68 para 68,5 anos.

Um segundo tema é o de que novas tecnologias médicas, capazes de reabilitar partes lesadas do cérebro ou substituí-las, começam a pôr em questão o próprio conceito do que é a morte. E gerar questões complexas a respeito das relações humanas. Exemplo: uma pessoa cujas funções cerebrais, inclusive a memória, foram quase totalmente substituídas graças a tecnologias, deve ou não ser considerado casada com outra com quem conviveu durante décadas, mas não tem mais a mesma importância afetiva, nem sequer a memória do relacionamento?

Um terceiro ângulo: com as novas tecnologias, está crescendo o tempo médio de vida das pessoas – e, com isso, a população idosa -, mas esse progresso contribuirá para a superpopulação no planeta. Essa questão traria à cena interrogações sobre, por exemplo, quantos filhos uma pessoa pode ter. Deve-se chegar ao modelo chinês implantado na época de Mão Tsé-tung, de um filho apenas por casal (punindo por vários caminhos os transgressores)? Deve-se estimular a eutanásia ou o suicídio?, pergunta A. C. Grayling, professor de Filosofia na Universidade de Londres.

Está correto, pergunta o antropólogo e teólogo Douglas Davies, da Universidade de Durham, combater a cremação de cadáveres, porque polui a atmosfera, emite carbono, consome energia? Deve-se continuar permitindo, como nos EUA, que algumas pessoas decidam, ainda vivas, manter congelado seu cérebro ou seu corpo, na esperança de que no futuro se possa reverter uma doença terminal e elas consigam voltar a viver ou ter um novo corpo para o cérebro ainda em condições?

Nada disso é mera fantasia – tanto assim que em maio será realizado em Cuba um Seminário Internacional sobre Definição da Morte. Porque há muitas coisas perturbadoras acontecendo. Progressos da nanotecnologia e da miniaturização de equipamentos já permitem reparar funções cerebrais. Já há tecnologias para chips que “falam” com o cérebro, permitem, por exemplo, a um surdo “ouvir” e a cegos “ver”, da mesma forma que pessoas com paralisias já conseguem controlar computadores com o pensamento.

Diante disso tudo, diz James Hughes, professor de Bioética e Sociologia no Trinity College (EUA), é preciso pensar: nossa capacidade de reconstruir cérebros pode exigir que tenhamos de estabelecer novos parâmetros para definir o que é a morte. Ou a vida. Será a mesma pessoa alguém que tenha tido praticamente todo o cérebro reconstituído, modificado?

Talvez a questão mais inquietante seja a levantada pela própria revista, quanto ao desinteresse da indústria farmacêutica em desenvolver medicamentos para doenças degenerativas da velhice, para não perder o mercado. É mais um ângulo que vem somar-se a outros questionamentos em relação a esse setor. Ainda recentemente (2/12/2007) o próprio ministro da Saúde do Brasil disse que a política mundial de patentes “é o principal entrave à luta contra a aids no País” – mesmo depois que, enfrentando enorme resistência, o governo brasileiro quebrou a patente do medicamento Efavirenz, para que possa ser produzido aqui como genérico, a preços muito menores. Caso da mesma órbita foi decidido recentemente no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que negou a prorrogação do prazo de patenteamento do medicamento Plavix, para trombose arterial. Com o genérico, o custo anual de tratamento com esse medicamento cai 67%.

O mercado anual de medicamentos genéricos no Brasil já chega a R$ 1,2 bilhão e cresceu mais de 50% entre 2005 e 2006. Nos EUA já está em US$ 18 bilhões anuais. Na União Européia, US$ 11 bilhões. A previsão é de que até 2050 o mercado mundial de genéricos chegue a US$ 80 bilhões, ou 14% do total.

Pelo ângulo ético, são muitos questionamentos. Segundo a New Scientist (20/10/2007), nos EUA a indústria farmacêutica tem relações financeiras com dois terços dos chefes de departamentos de 140 escolas de medicina e hospitais universitários. Outros estudos mostram (Estado, 18/1) que ali só 14% dos resultados negativos ou problemáticos de pesquisas são divulgados, enquanto 94% dos positivos o são. A indústria farmacêutica norte-americana gasta muito mais em propaganda (US$ 57,5 bilhões em 2004) do que em pesquisas (US$ 31,5 bilhões).

Nada, entretanto, parece mais dramático que o novo problema comentado pela Organização Mundial de Saúde: a Indonésia recusa-se a repassar-lhe vírus colhidos em vítimas humanas da gripe aviária, para que sejam entregues a empresas que pesquisam vacinas contra essa gripe, que ameaça gerar uma pandemia. Diz a Indonésia que só os repassará com a garantia de receber vacinas gratuitamente e ter o direito de fabricá-las sem pagar royalties às empresas. Mas estas não aceitam nenhuma restrição ao uso do vírus, só restrições ao uso de suas tecnologias.

É, mais uma vez, a lógica apenas financeira se sobrepondo a qualquer outra benéfica à humanidade. Nesse campo agora tão controverso da morte e da vida.

Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 01/02/2008