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O criado-mudo é seu ídolo, artigo de Daniel Clemente

 

opinião

 

[EcoDebate] Os oitentistas do século XX assistiram com entusiasmo diversos desenhos animados dos mais variados temas propostos, entre os quais “Os Jetsons”, projetando olhares infantis e desejos adultos a uma nova organização social mediada pela alta tecnologia robótica, onde o enfado proporcionado pelas tarefas diárias seria sucumbido pela possibilidade do sedentarismo sem culpa. As calçadas seriam uma espécie de esteira rolante onde caminhar soaria obsoleto, os carros voariam dispensando os arcaicos pneus e rotas terrestres, a comodidade vinculada à informática enterraria todas as relações sociais baseadas na força braçal. As ambições visionárias estavam focadas na empregada doméstica “Rosie”, um robô programado a atender e executar os afazeres domésticos com total resiliência, uma promessa futura à manutenção com vínculos serviçais do passado.

A origem da palavra robô vem da derivação de “robot”, que por sua vez encontra o seu significado em “robota”, palavra de origem eslava remetendo a trabalho forçado ou escravidão. Na obra de ficção “A Fábrica de Robôs” criada pelo dramaturgo checo Karel Capek, um determinado cientista desenvolve uma substância capaz de originar “humanoides”, robôs obedientes e dispostos a realizar trabalhos físicos. Sem abandonar o estereótipo patriarcal no conjunto da formação familiar ocidental, o robô Rosie da Família Jetsons identificado com denominação feminina, simbolizava a concepção de conforto sustentado pela opressão.

Desde a antiguidade clássica os filósofos gregos encontravam harmonia entre homens livres e escravos, creditando a relação existencial aos seus valores naturais, isto é, ao nascer, todos já possuem as características definidoras de sua posição social, portanto, os mais aptos regem os apequenados de habilidades cognitivas. Com a expansão do cristianismo desaparece a percepção de qualidades inerentes do ser como classificação social, mas logo surge o conceito de propriedade privada determinando novas relações sociais, subjugando os sem-terra aos detentores de posses. A modernidade traz a luz o homem livre e mantém na escuridão a relação opressor e oprimido, o dono do capital passa a comprar dos desprovidos dos meios de produção o seu tempo de vida em troca da menor parte do que ele mesmo produz, ou seja, o salário. Seja escravo, servo, trabalhador ou humanoide, o entendimento sobre comodidade e distanciamento do trabalho braçal pressupõe julgamento de valores, demarcando aptos e inaptos na divisão social do trabalho.

Cotidianamente a relação serviçal é revestida de humanidade e valorizada por todas as camadas sociais. Após adquirir pacote de viagem e desfrutar sete dias em paraíso artificial, o indivíduo exalta durante os 358 dias restantes do ano as maravilhas do luxo proporcionado pelo trabalho alheio, uma semana sem arrumar a cama e o quarto, sem preparar o almoço ou o jantar, tempo vivido na intensidade sedentária. O criado-mudo, aquele móvel localizado quase obrigatoriamente ao lado da cama, é o elo entre o escravo coisificado do passado e o robô humanizado do futuro, pronto para servir a todo momento, portando seus objetos mais íntimos sem questionamentos. Atualmente, a empregada doméstica, a “criada-que-fala”, constitui a última categoria social no Brasil a obter direitos trabalhistas, ou seja, deixou de ser humanoide oficialmente.

A perfeição da relação mantenedora do opressor e oprimido está no desejo do humanoide, não de liquidar a classificação social que lhe deram, mas de objetivar um dia ter o controle do robô em mãos, para reproduzir o que lhe foi proporcionado.

Daniel Clemente
Professor de Historia
Colégio Adventista de Santos
Pós Graduação em História Sociedade e Cultural PUC-SP
Pós Graduação Docência Universitária UNASP

 

in EcoDebate, 29/07/2016

[cite]

 

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