EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

Afinal, quem é cidadão? entrevista com Jailson de Souza

A divulgação na grande imprensa da presença de um prédio de 11 andares construído ilegalmente na favela carioca da Rocinha foi o que bastou para trazer à tona, mais uma vez, o debate sobre a remoção de favelas. Vereadores e deputados começaram imediatamente a considerar a possibilidade de levar a população que hoje habita as inúmeras favelas do Rio de Janeiro para outras áreas. As discussões sobre essa prática começaram no início do século passado, e uma política de remoção foi fortemente implantada no Rio de Janeiro na década de 60. As favelas de Cidade de Deus e Vila Kennedy são dois exemplos disso: foram formadas em áreas distantes do Centro da cidade justamente por pessoas removidas de outras áreas e levadas para lá pelo poder público.

Além de esbarrar em entraves materiais, logísticos e políticos, o debate sobre a remoção de favelas toca em dois outros pontos que merecem ser aprofundados: a lógica que legitima essa proposta e a liberdade de escolha de quem mora nas favelas. É sobre isso que conversa com a Rets Jailson de Souza e Silva, coordenador da organização não-governamental Observatório de Favelas e professor da Universidade Federal Fluminense. Segundo ele, a proposta, além de ser uma violência moral, provoca uma discussão ideológica, política e ética. “Afinal”, questiona, “quem é cidadão?”.

Rets – A que você atribui a volta, neste momento, do debate sobre a remoção de favelas, que remonta ao governo Lacerda?
Jailson de Souza – Na verdade, ela foi implantada no governo Lacerda, mas a discussão sobre a remoção de favelas é anterior a isso, já vem norteando alguns debates desde o início do século XX. A própria destruição do Cabeça de Porco, um cortiço grande que havia no Rio de Janeiro, está inserida dentro dessa lógica autoritária. Para a construção da Avenida Central, que depois virou Avenida Rio Branco, também no Centro do Rio de Janeiro, mais de três mil pessoas foram removidas. A política direcionada aos moradores pobres sempre incluiu ao menos o debate sobre a remoção.

A idéia que prevalece é de que a favela é o espaço da pobreza e é preciso apartá-la. O governo populista de Getúlio Vargas rompe com essa idéia. Implantada no governo Lacerda [Carlos Lacerda, que governou o Rio de Janeiro, então chamado de estado da Guanabara, de 1960 a 1965], a política de remoção foi aprofundada na gestão de Negrão de Lima [que governou o Rio de Janeiro logo depois de Carlos Lacerda, de 1965 a 1971]. Mais tarde, a ditadura a fortalece.

A política de urbanização no Rio de Janeiro começa nos anos 80, com o governo Brizola, culminando com projeto Favela-Bairro, em um processo de afirmação do direito à urbanização. Porém a idéia de remoção sempre existe, sempre é discutida. O que realmente seria necessário é vontade política para enfrentar isso.

Rets – Como você classifica essa proposta?
Jailson de Souza- Ela parte do pressuposto de que a sensação de insegurança de uns justifica a intolerância com outros. A moradia é um direito constitucional. Mas a política de remoção se vale da sensação de que a favela é a não-cidade, é o intruso, o exótico, o não formal, não legítimo. Mas só não é legítimo porque o Estado nunca teve interesse em legitimar, por serem espaços pouco valorizados, entre outros diversos motivos.

Há grupos armados controlando muitas das favelas, o que acentua a noção da relação entre violência e pobreza e a de que a favela conjuga degradação urbana, de segurança e ambiental. O conjunto do discurso conservador quer colocar a favela como a não-cidade.

As pessoas que moram nas favelas são vistas como a população civil do território inimigo, que deve ser combatida; são pensadas como o “outro”. Para o poder público, que vê a favela como fruto e resultado de uma lógica de pobreza e violência, o único jeito é remover. A idéia é antiga. O que mudou foi a sensibilidade das classes dominantes a ela. Seria muito mais fácil haver uma ação de inteligência e infiltração para desarmar os bandidos e não deixar a arma entrar. Mas não: a polícia prefere enfrentar o problema entrando nas favelas, onde normalmente os bandidos estão instalados, aterrorizando, prontos apenas para atirar. Aqui no Rio utiliza-se muito o Caveirão [veículo blindado utilizado pela polícia carioca em missões em favelas. Como ostenta uma grande caveira desenhada na carroceria, foi apelidado assim pelos moradores]para entrar nas favelas, principalmente à noite. É impossível prender alguém com o Caveirão, pois é um carro blindado com doze homens dentro, muito armados. Ou seja, com isso o poder público somente exacerba o grau de tensão.

A cidade é definida pela lógica de consumir. O cidadão tem de ser consumidor, só existe se tiver. Quem tem mais é considerado mais cidadão, com mais direitos humanos que os pobres. Isso se vê sempre. Por exemplo, no Rio de Janeiro houve quatro grandes chacinas: a de Acari, a de Vigário Geral, a da Candelária e a de março, em Nova Iguaçu e Queimados. O Lula não decretou sequer um dia de luto por essa chacina. Decretou sete pelo Papa. E se a chacina fosse no Leblon [bairro de classe média-alta da Zona Sul do Rio de Janeiro]?

Então o direito de alguns é respeitado em detrimento do de outros. A moradia é um direito constitucional. No entanto, se a pessoa vai e faz sua casa numa área sem ter o titulo daquele espaço, pois a cidade não lhe oferece meios para fazer de outra forma, o direito à propriedade é sobreposto ao direito à moradia. Um paralelo disso é o casamento legal e o concubinato. Antigamente, a pessoa que não fosse casada legalmente não teria os mesmos direitos. Aos olhos da lei, o casamento legal valia mais do que o concubinato, mesmo os dois sendo iguais na prática. Atualmente, a legislação mudou e união legal ou concubinato acarretam os mesmos direitos e deveres. O mesmo deveria valer para o conflito propriedade-moradia. O que vem acontecendo é que quem define se a pessoa está certa não é o direito, mas um papel, o título de propriedade. É a reificação do papel, do registro formal, quando isso na verdade deveria ser reflexo da prática e do exercício do direito.

Rets – E, mesmo assim, no caso de quem mora em favelas, há várias pessoas com a posse do terreno…
Jailson de Souza- Sim. E, além disso, em várias favelas, há moradores com título de propriedade. Na [favela da] Maré existem 16 conjuntos habitacionais, dos quais nove foram construídos pelo poder público. Ou seja, são legais. A situação se repete na Vila Aliança, na Vila Kennedy, na Cidade de Deus – a qual, esquecem eles, já foi formada fruto de remoção de populações pobres de outras áreas da cidade do Rio. Ou seja, quem enviou aquelas pessoas para lá foi o próprio poder público. A discussão mais importante aí, então, não é sobre a legalidade do ato (pois se vê que muitas favelas têm, sim, imóveis e conjuntos legais). A discussão é ideológica, política e ética: afinal, quem é cidadão?

Rets – A proposta parece querer solucionar um problema de desordem urbana que envolve desde inércia do Estado e falta de uma política habitacional até o fato de as pessoas realmente construírem ilegalmente, inclusive em locais de risco. Assim, como mudar esse cenário de “ilegalidade tolerada”?
Jailson de Souza- O direito à vida tem que ser respeitado, mais do que o direito à propriedade. Não existem políticas habitacionais voltadas para a população de zero a três salários mínimos. Essas pessoas moram, então, onde podem. Além disso, tirar para onde? Mais do que isso, e antes disso, é preciso criar condições de habitabilidade.

Rets – Às vésperas de um ano eleitoral, você vê alguma possibilidade de que essa idéia siga adiante?
Jailson de Souza- O pressuposto da remoção é de que há ausência de direitos daquelas pessoas a serem removidas, que são vistas como problema. Essa população é desumanizada, “descidadanizada” para ser objeto de remoção. E esse discurso é um discurso desesperado, pois não há a menor condição de remoção de favelas. Nem as pequenas. Para se ter uma idéia, em 1977 não conseguiram remover o Vidigal [favela localizada na Zona Sul carioca, entre os bairros de Leblon e São Conrado, que começou a se formar na década de 40]. O Cesar Maia, prefeito do Rio, sabe que não conseguiria fazer a remoção. Porém ele não pode dizer isso*, pois, de um lado, perde votos da classe conservadora, que gostaria que aquelas favelas fossem removidas; de outro, perde votos de quem mora nas favelas, pois admite que, se pudesse, faria a remoção. Os governantes sabem que é impossível politicamente, por aspectos de segurança, por aspectos logísticos.

Rets – E, mesmo que houvesse todas essas condições, seria possível fazer isso contra a vontade das pessoas? Há pessoas que estão lá há décadas. Na sua opinião, a maioria aceitaria ser removida para outra área?
Jailson de Souza- Existem moradores que estão nas suas casas há 30, 40 anos. Tem gente que, entre várias outras coisas, está ali porque gosta da vista, por exemplo. Existe nessas pessoas um sentimento de satisfação, elas fizeram a escolha por estar ali. E retirar delas isso é uma violência moral. Como já disse, não tem condições políticas ou materiais. Então não é a remoção que me preocupa. O que me preocupa é a forma como a discussão sobre isso ajuda a aumentar a intolerância, a sensação de insegurança e o preconceito com relação às favelas.
Maria Eduarda Mattar. Colaboraram Luísa Gockel e Fausto Rêgo.

N.R.: a remoção de favelas é vetada pela Lei Orgânica Municipal. Em entrevista ao jornal O Globo, o prefeito Cesar Maia afirmou inicialmente que tentara alterar a lei por diversas vezes, sem sucesso, pois a decisão dependia dos vereadores. Mas em declarações publicadas durante a semana em jornais e no site da Prefeitura do Rio de Janeiro, Maia mudou o tom e se disse radicalmente contra as remoções. “Seria uma barbaridade”, admitiu. Ainda segundo ele, a prefeitura procura evitar excessos e abusos, mas as remoções, quando necessárias, são feitas com o consenso da comunidade. “Não se pode criar na classe média uma expectativa de remoção de favelas, porque ela não existe”.

(in Portal EcoDebate, www.ecodebate.com.br ) Publicado originalmente em Revista do Terceiro Setor – RETS
in http://arruda.rits.org.br/notitia1/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=10&dataDoJornal=atual