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Notícia

Como esconder milhões de toneladas de trigo

A Oncca (Oficina Nacional de Controle Comercial Agropecuário) procura branquear quatro milhões de toneladas de trigo, uma quarta parte da última colheita argentina que não foi declarada. É um reflexo do manejo irregular do mercado de grãos e do porquê os pequenos produtores não conseguem aceder às compensações. Segue a íntegra do artigo de Raúl Dallatorre publicado no Página/12, 17-05-2008. A tradução é do Cepat.

Quando, no dia 31 de março, o então ministro de Economia, Martín Lousteau, anunciou as compensações para os pequenos produtores de grãos por diferenças nas retenções e frete, a suposição lógica era que o conflito se encaminhava a uma solução. No entanto, o benefício foi recusado pelas entidades rurais, sem muitas explicações sobre as razões da insatisfação, quando aparentemente 80% dos produtores ficariam em melhores posições que antes das retenções móveis.

A autêntica razão da insuficiência da medida é que, para receber compensações, os produtores devem constar no padrão tributário e registrar suas operações. Apenas uma minoria cumpre o requisito. A atual controvérsia entre os exportadores de trigo e o organismo responsável pela autorização do registro de operações de venda ao exterior, a Oncca, passa justamente por esse plano: a diferença entre uns e outros sobre o grão disponível para exportação é de nada menos que quatro milhões de toneladas, 25% da colheita total estimada. Seria a proporção da produção não declarada que, quase como uma extorsão, só se “branqueia” no caso de autorização para sua exportação. Se forem para o mercado interno, permaneceriam no “circuito negro”, até sua venda ao consumidor em forma de pão, fatura, farinha ou massas.

Estima-se que haja em torno de 50 mil produtores de trigo na Argentina. No entanto, no ano passado, o registro da Oncca daqueles que se apresentaram para pedir alguma compensação não chegava a 10% desse universo. A justificativa era que, segundo os dirigentes agropecuários, os trâmites para se credenciar para receber as compensações eram “muito complexos” e inatingíveis para o pequeno produtor. Mas se escamoteava, prudentemente, o fato de que uma ampla maioria não está registrada como contribuinte.

“A produção de cereais constitui um setor muito grande da economia argentina, mas uma porcentagem bem significativa do mesmo é administrada de maneira irregular”, advertiu Ricardo Echegaray, diretor da Oncca, em conversa com Página/12. “As compensações, conceitualmente, continuam sendo a ferramenta para otimizar o desacoplamento entre os preços internacionais em alta e o valor da matéria-prima para o mercado interno. Mas o produtor deve saber que, para compensar, o requisito principal não é preencher um formulário ou fazer um trâmite, mas estar em dia com o sistema tributário”.

A avaliação de Echegaray vai perfeitamente ao encontro do que acontece no mercado do trigo. Tanto as estimativas privadas como a da própria Secretaria da Agricultura coincidem em que a última colheita (2007-2008) atingiu a produção de 16,2 milhões de toneladas. “Quando nós assumimos a Oncca, no começo de abril, tínhamos a informação de que dessa colheita haviam sido exportados seis milhões”, relata o titular do organismo. “Como a demanda interna para moagem e elaboração de produtos de panificação e de massas está calculada em pouco mais de seis milhões de toneladas, os exportadores reclamavam a autorização para exportar as quatro milhões de toneladas restantes”.

O problema é que essa quantidade de trigo, supostamente “disponível”, não aparece nas listas declaradas pelos diferentes operadores do setor. Somando o que os moinhos e grandes compradores dizem ter em suas próprias instalações ou já comprado mas ainda no campo do produtor, não passam de 5,1 milhões de toneladas. Como ainda se necessita de 4,7 milhões de toneladas para a moagem destinada ao mercado interno até a entrada da nova colheita, restariam disponíveis apenas 400 mil toneladas para exportação. Prudentemente, só foi autorizada a abertura do registro de exportadores para 100 mil: 2,5% dos quatro milhões que os exportadores pretendem vender.

Logicamente, a suposição que todos – autoridades e analistas privados – fazem é que não se trata de um erro tão grosseiro de estimativa da colheita, mas que existe trigo não declarado em vários pontos da cadeia comercial. Este poderia estar em mãos de produtores que ainda não o venderam, de compradores que não o declararam, em mãos de outros intermediários e inclusive de moinhos que não informaram a sua existência.

Tentando decifrar sua localização, a Oncca obrigará os produtores a declarar a quantidade de trigo armazenada. Seguramente não será uma solução definitiva, posto que grande parte dos produtores não está registrada e, portanto, continuará na informalidade. Eles e seu trigo. O passo seguinte seria a inspeção física de campos, especialmente os próximos a moinhos, em busca do trigo perdido.

Enquanto o trigo não for declarado, a decisão da Oncca é manter fechada a exportação. Ainda que com isso se corra o risco de que o trigo não registrado entre num “circuito negro”: passe pelo moinho sem ser declarado, seja transformado em farinha e vendido à indústria panificadora ou de massas sem ser declarado. A pressão dos exportadores é que só com a abertura de registros se pode garantir o seu “branqueamento”, e só em sua última etapa. Mas se se habilitar sua exportação e descobrir que o estoque disponível não existe antes que a nova safra de trigo entre se produziria uma situação de desabastecimento e salto nos preços internos.

A existência de uma importante parcela de produção de cereais “no negro” foi uma alavanca que, em última instância, sempre foi funcional para o interesse dos exportadores. E na conjuntura atual, um paredão que impede a aplicação de políticas de Estado através das compensações. A Oncca vai ao resgate do instrumento.

(www.ecodebate.com.br) publicado pelo IHU On-line, 22/05/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]