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Papa Leão XIV “libera” sexo não procriativo no casamento. E os métodos contraceptivos?

 

Se a relação sexual não tem, por natureza, a obrigação de ser generativa, torna-se coerente liberar o uso de métodos contraceptivos para a regulação da fecundidade

Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

O Papa Leão XIV deu um passo decisivo para rever um dogma que há décadas afasta jovens e causa prejuízos significativos à Igreja Católica. Em documento publicado na última semana de novembro, o Vaticano reconhece que existe uma “finalidade unitiva da sexualidade”, destacando que os atos sexuais “não se restringem à garantia da procriação, mas também contribuem para enriquecer e fortalecer a união exclusiva do casal e o sentimento de pertencimento mútuo”.

Matéria da BBC (Veiga, 04/12/2025) mostra que o Dicastério para a Doutrina da Fé, divulgou um documento defendendo a união monogâmica entre homem e mulher, mas com o entendimento de que o ato sexual tem uma função além da geração de descendentes. O documento diz que uma “visão integral da caridade conjugal” é aquela que “não nega a sua fecundidade”. Mas que “a união sexual, como forma de expressão da caridade conjugal”, ainda que “deva naturalmente permanecer aberta à comunicação da vida”, não precisa ter nesse fim o “objetivo explícito de cada ato sexual”.

A nova orientação do Vaticano representa um esforço para revisar as concepções conservadoras e pronatalistas que dominaram os últimos 57 anos. Publicada em 25 de julho de 1968, a encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, consolidou uma visão tradicionalista da sexualidade ao proibir o uso de métodos contraceptivos modernos e a regulação da fecundidade, desconsiderando um direito humano fundamental de indivíduos e casais. Esse posicionamento contribuiu para o afastamento de muitos jovens e para a perda gradual de fiéis católicos ao longo das décadas seguintes.

A encíclica Humanae Vitae estabeleceu uma visão agostiniana restritiva do desejo carnal, entendendo o sexo como um vício e uma prática má – responsável pelo Pecado Original e a perda do Paraíso – que só deveria ser aceito quando acompanhado de uma finalidade procriativa, reforçando a cultura cristã tradicional contra os prazeres da carne e a culpa individual diante da atração física.

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A encíclica Humanae Vitae afirma que o matrimônio (“instituição sapiente do Criador”) é um sacramento indissolúvel realizado com finalidade generativa: “O amor conjugal exprime a sua verdadeira natureza e nobreza, quando se considera na sua fonte suprema, Deus que é Amor, ‘o Pai, do qual toda a paternidade nos céus e na terra toma o nome’. O matrimônio não é, portanto, fruto do acaso, ou produto de forças naturais inconscientes: é uma instituição sapiente do Criador, para realizar na humanidade o seu desígnio de amor. Mediante a doação pessoal recíproca, que lhes é própria e exclusiva, os esposos tendem para a comunhão dos seus seres, em vista de um aperfeiçoamento mútuo pessoal, para colaborarem com Deus na geração e educação de novas vidas” (p.3).

De maneira concisa, a encíclica de Paulo VI estabelece normas rigorosas sobre a conduta sexual e reprodutiva. Ela defende a castidade pré-matrimonial, a união exclusivamente heterossexual, a fidelidade absoluta entre os cônjuges e a indissolubilidade do matrimônio, além de restringir o ato sexual à sua finalidade procriativa. O casamento católico é apresentado como exclusivo e indivisível e a Igreja rejeita relações abertas, arranjos poliamorosos ou qualquer forma de relação que envolva terceiros. A doutrina também condena a masturbação e não admite práticas sexuais como o sexo oral ou anal.

Neste arcabouço doutrinário, de fato, não faz sentido usar métodos contraceptivos para adiar ou espaçar os nascimentos e nem o uso de preservativos para a pratica do sexo seguro para evitar doenças sexualmente transmissíveis. Todavia, poucos católicos seguem a norma de casar virgem, apenas ter um parceiro sexual ao longo da vida, não divorciar, etc. Evidentemente, o modelo exigido pela Humanae Vitae estava totalmente em dissonância com o seu tempo e com o avanço da revolução sexual da década de 1960, a democratização dos novos tipos de arranjos familiares e a nova dinâmica da demografia global.

Cabe ainda lembrar que a encíclica foi fruto de uma “manobra conservadora” estabelecida dentro da Igreja Católica. O jornalista Robert McClory, no livro “Turning Point: The Inside Story of the Papal Birth Control Commission, and how Humanae Vitae Changed the Life of Patty Crowley and the Future of the Church” (1995), mostra que a “Comissão Papal do controle da natalidade” (com cerca de 70 membros), criada por iniciativa do Concílio Vaticano II, após longo debate, concluiu que o sexo não procriativo e a contracepção artificial deveria ser considerada moralmente aceitável para os casais. No final dos trabalhos, após uma votação por 52 votos a 4, encaminhou um relatório com a posição da maioria para o Papa Paulo VI recomendando a aceitação dos métodos contraceptivos artificiais.

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Porém, o pequeno número de membros da Comissão que se opunha a essa mudança, em conjunto com funcionários conservadores do Vaticano, construiu um relatório minoritário contra as mudanças no dogma da Igreja sobre contracepção. Este relatório minoritário constituiu a base da encíclica Humanae Vitae.

Existem diversos analistas dentro da própria Igreja Católica que consideram que a recusa em aceitar o fato de os fiéis usarem métodos contraceptivos e praticarem o sexo sem finalidade procriativa provocou um grande êxodo da Igreja Católica, em especial, entre a juventude. A encíclica contribuiu também para o descrédito do ensino hierárquico oficial, pois todos sabem que a maioria dos católicos usam métodos contraceptivos e praticam sexo não procriativo, mesmo com todas as proibições da Humanae Vitae.

Diante desse cenário complexo, a iniciativa do Papa Leão XIV de enfatizar a “finalidade unitiva da sexualidade”, em vez de priorizar exclusivamente sua “finalidade procriativa”, sinaliza o início de uma revisão histórica e necessária da Humanae Vitae — algo que o Papa Francisco não conseguiu concretizar.

No entanto, novos avanços ainda são indispensáveis. Se a relação sexual não tem, por natureza, a obrigação de ser generativa, torna-se coerente liberar o uso de métodos contraceptivos para a regulação da fecundidade e os preservativos para garantir o sexo seguro. Harmonizar a doutrina da Igreja Católica com as concepções humanistas dos Direitos Sexuais e Reprodutivos representaria um importante avanço civilizatório.

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

ALVES, JED. CAVENAGHI, S. Igreja Católica, Direitos Reprodutivos e Direitos Ambientais, Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 736-769, jul./set. 2017

http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2017v15n47p736

ALVES, JED. A revisão da encíclica Humanae Vitae e os direitos sexuais e reprodutivos, Ecodebate, 16/10/2017 https://www.ecodebate.com.br/2017/10/16/revisao-da-enciclica-humanae-vitae-e-os-direitos-sexuais-e-reprodutivos-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

ALVES, JED. 50 anos da encíclica Humanae Vitae: sexo e reprodução no século XXI, Ecodebate, 18/07/18

https://www.ecodebate.com.br/2018/07/18/50-anos-da-enciclica-humanae-vitae-sexo-e-reproducao-no-seculo-xxi-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

CONSCIENCE. Humanae Vitae. The Story Behind the Ban on Contraception, Conscience, 29/04/2018 http://consciencemag.org/2018/04/29/humanae-vitae/

HUMANAE VITAE, Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo Vi sobre a Regulação da Natalidade

http://w2.vatican.va/content/paul-vi/it/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_25071968_humanae-vitae.html

McCLORY, Robert. Turning Point: The Inside Story of the Papal Birth Control Commission, and how Humanae Vitae Changed the Life of Patty Crowley and the Future of the Church. New York: The Crossroad Publishing Company, 1995.

Edison Veiga A nova orientação do papa sobre sexo no casamento, BBC, 04/12/2025

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqlk2w2x1l6o

 

Citação
EcoDebate, . (2025). Papa Leão XIV “libera” sexo não procriativo no casamento. E os métodos contraceptivos?. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/12/08/papa-leao-xiv-libera-sexo-nao-procriativo-no-casamento-e-os-metodos-contraceptivos/ (Acessado em dezembro 8, 2025 at 12:57)

 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

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