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Artigo

A queda da fecundidade não é uma trajetória irreversível

 

O ajuste demográfico deve ocorrer no longo prazo e o “apocalipse populacional” parece ser apenas um mito que não corresponde à realidade global

Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

Durante mais de 200 mil anos, desde o surgimento do Homo sapiens, as taxas de mortalidade e natalidade eram elevadas e a humanidade não tinha os meios para controlar os efeitos indesejados da mortalidade precoce. Para sobreviver, uma alta natalidade era a arma para enfrentar a alta mortalidade.

Porém, no século XIX, após a Revolução Industrial e Energética, houve avanços na produção e distribuição dos meios de subsistência e aperfeiçoamentos na medicina e no saneamento básico que possibilitaram a redução progressiva das taxas de mortalidade. Com a confirmação da maior sobrevivência das crianças, após um período de aceleração do crescimento vegetativo da população, as taxas de natalidade também começaram a cair e mantiveram um longo período de redução do número de crianças nas famílias.

A transição demográfica desarmou a chamada “bomba populacional” e reduziu o ritmo de crescimento da população mundial. O gráfico abaixo mostra a queda da fecundidade no mundo e nos continentes. Observa-se que a Taxa de Fecundidade Total (TFT) do mundo estava em torno de 5 filhos em meados do século passado e caiu para 2,25 filhos por mulher em 2023.

A Europa e a América do Norte tinham TFT por volta de 3 filhos por mulher em 1950, passando para taxas abaixo do nível de reposição. A Ásia e a América Latina tinha TFT perto de 6 filhos por mulher e já apresentam patamares abaixo do nível de reposição. Somente a África apresenta, atualmente, taxas elevadas (4 filhos por mulher), embora represente uma queda do patamar de 6,5 filhos que havia em 1950.

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Hoje em dia já existem dezenas de países com taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição e muitos destes países já apresentam decrescimento populacional. Como escrevi no artigo “Mitos e realidade da dinâmica populacional”, publicado no 12º Encontro da ABEP (Alves, 2000), a transição demográfica tendia a se aprofundar no século XXI e o mito da “explosão populacional” seria substituído pelo mito da “implosão demográfica”.

O bilionário Elon Musk é um dos principais defensores da necessidade de aumento das taxas de fecundidade. Ele considera que “o declínio populacional deve levar ao colapso da civilização”. O presidente Donald Trump, que está promovendo severas políticas anti-imigratórias, prometeu ser “o presidente da fertilização”. Juntamente com os setores conservadores e da extrema-direita, Trump tem promovido uma agenda pronatalista e chegou a propor um “bônus de bebê” em dinheiro de US$ 5.000 a cada mãe americana após o parto.

Por traz da ideia de colapso populacional está a concepção de que a transição da fecundidade, na ausência de uma intervenção externa, é um processo unilateral e basicamente irreversível. Desta forma, o decrescimento populacional é visto como um “apocalipse demográfico” que resultaria no despovoamento dos países. Mas seria esse processo realmente um fato inexorável?

O gráfico abaixo mostra o exemplo de 5 países que apresentam taxas de fecundidade em ascensão nos anos 2000. O Cazaquistão e a Mongólia tinham elevadas taxas de natalidade, passaram pela transição demográfica e apresentaram taxas de fecundidade total (TFT) abaixo do nível de reposição na virada do milênio. Porém, nos últimos 20 anos os dois países apresentaram uma recuperação da taxa de fecundidade.

No Cazaquistão a TFT chegou a 1,9 filho por mulher em 2000 e subiu para 3,1 filhos por mulher em 2022. Na Mongólia, a TFT chegou a 1,98 em 2004 e subiu para 3 filhos em 2015 e estava em 2,7 filhos por mulher em 2023. Outro país que apresentou recuperação da fecundidade é o Uzbequistão, que tinha TFT de 2,7 filhos por mulher em 2000, caiu para 2,3 filhos em 2012 e subiu para 3,5 filhos por mulher em 2023.

251124b taxa total de fertilidade por mulher em número de nascimentos

A Romênia e a Bulgária tinham TFT de 1,3 filho por mulher em 2000 e passaram para níveis acima de 1,7 filho por mulher em 2023. A fecundidade nestes dois países do Leste Europeu continua abaixo do nível de reposição, mas está longe de gerar pânico por falta de bebês.

O fato é que existem diversos exemplos de países onde o declínio da TFT desmente o mito da irreversibilidade da queda do número de filhos. Ao longo das décadas as populações vão se adaptando à dinâmica demográfica. Um decrescimento demográfico moderado e gradual pode trazer muitas oportunidades para o avanço social e ambiental.

Como mostrou Adair Turner no artigo “The Case for Gradual Population Decline” (PS, 03/10/2025), ao contrário da sabedoria convencional, o rápido crescimento populacional raramente gera dividendos demográficos, enquanto baixas taxas de fecundidade não levam necessariamente à estagnação. Nos últimos 50 anos, as economias de crescimento mais rápido do mundo – Coreia do Sul, China, Taiwan e Singapura – registraram as menores taxas de fecundidade, variando entre 0,8 e 1,2 filho por mulher. Em contraste, as maiores taxas de fecundidade são encontradas onde a pobreza permanece arraigada ou os direitos das mulheres são severamente restringidos, como na África Subsaariana (4,26) e no Afeganistão (4,76).

Desta forma, taxas de fecundidade na faixa de 1,5 a 1,9 filhos por mulher pode trazer muitos ganhos. Em vez de ser temida, a taxa de fecundidade abaixo do nível de reposição deve ser celebrada como uma marca registrada de uma sociedade próspera, onde as pessoas são livres para decidir como viver suas vidas.

O ajuste demográfico deve ocorrer no longo prazo e o “apocalipse populacional” parece ser apenas um mito que não corresponde à realidade global.

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

ALVES, J. E. D. Mitos e realidade da dinâmica populacional. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 12, Caxambu, MG, 2000. Anais… Belo Horizonte: Cedeplar, 2000

https://pt.scribd.com/document/493115086/MITOS-E-REALIDADE-DA-DINAMICA-POPULACIONAL

ALVES, JED. Decrescimento populacional com prosperidade social na Coreia do Sul, Ecodebate, 06/10/2025 https://www.ecodebate.com.br/2025/10/06/decrescimento-populacional-com-prosperidade-social-na-coreia-do-sul/

TURNER, Adair. The Case for Gradual Population Decline, Project Syndicate, 03/10/2025

https://www.project-syndicate.org/onpoint/economic-and-social-benefits-of-declining-fertility-rates-by-adair-turner-2025-10

 

Citação
EcoDebate, . (2025). A queda da fecundidade não é uma trajetória irreversível. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/11/24/a-queda-da-fecundidade-nao-e-uma-trajetoria-irreversivel/ (Acessado em novembro 24, 2025 at 10:10)

 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

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