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Artigo

Os quatro bônus demográficos e a nova dinâmica populacional global

 

“Crescimento pelo crescimento é a ideologia da célula cancerosa”

Edward Abbey (1927-1989)

A primeira tarefa para concretizar o dividendo da longevidade é desmistificar os mitos negativos sobre o envelhecimento e superar preconceitos etários

Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

No Livro do Gênesis (1:28), Deus abençoa Adão e Eva dizendo: “Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”. Durante milênios, a frase foi tomada como um mandamento literal, incentivando famílias numerosas como forma de cumprir a vontade divina. Líderes religiosos e políticos usaram esse princípio para justificar políticas pronatalistas, associando população abundante a força e prestígio. De fato, em um mundo pouco povoado e em sociedades agrícolas e patriarcais, filhos eram riqueza e segurança na velhice. O crescimento populacional era visto como um sinal de prosperidade e bênção divina.

Hoje, em um mundo com mais de 8 bilhões de habitantes e pressões ambientais graves, muitos teólogos e pensadores reinterpretam esse trecho não mais como uma obrigação de reprodução infinita, mas como chamado à responsabilidade de cuidar da vida e da Terra. “Multiplicar” pode significar multiplicar saberes, justiça, solidariedade, e não apenas descendência biológica. Portanto, o mandamento de “encher a terra” já está cumprido; o desafio atual é preservar a criação e garantir qualidade de vida para todas as espécies. Não mais multiplicar corpos, mas multiplicar bem-estar, conhecimento e sustentabilidade.

A população mundial cresceu enormemente nos últimos 12 mil anos, tendo um aumento exponencial nos últimos 250 anos. O gráfico abaixo, do site Our World in Data, mostra que a população mundial era de 4 milhões de habitantes há 12 mil anos (3 vezes menos do que a cidade de São Paulo atualmente), atingiu cerca de 1 bilhão de habitantes em 1800, alcançou 4 bilhões em 1974 e 8 bilhões em 2022, devendo chegara 10 bilhões por volta de 2080 e, em seguida, iniciando uma tendência de decrescimento.

o crescimento da população global em 12 mil anos

Mas o crescimento exponencial da população mundial já está com os dias contados. A maior taxa de crescimento (2,1% ao ano) ocorreu na década de 1960, atualmente está em 0,8% ao ano e o crescimento zero deve ocorrer em 2083, conforme projeções da Divisão de População da ONU. As últimas 2 décadas do século XXI serão de ligeiro decrescimento populacional global.

Desta forma, o mundo está passando pela maior mudança de comportamento de massa da trajetória da humanidade. A queda das taxas de mortalidade e natalidade trazem ganhos inestimáveis para os seres humanos. Sem dúvida, a transição demográfica é a vitória histórica sobre as inexpugnáveis barreiras do passado que aprisionavam o destino dos seres humanos às altas taxas de mortalidade e de natalidade.

Sem dúvida, durante mais de 200 mil anos, desde o surgimento do Homo sapiens, as taxas de mortalidade e natalidade permaneceram elevadas e o padrão de vida da população mundial era extremamente reduzido. Até o início do século XIX, a maioria dos nascimentos resultava em mortes prematuras, muitas vezes antes que os indivíduos atingissem a idade adulta. Em um contexto de saúde precária e de pobreza generalizada, a expectativa de vida ao nascer estava em torno de 25 anos.

No entanto, com o avanço do ideário iluminista e com a produção em massa de bens e serviços, especialmente após a Revolução Industrial e Energética, a dinâmica demográfica e econômica começou a se transformar. A urbanização e o desenvolvimento econômico promoveram melhorias nas condições de saúde, educação e moradia, além de elevar o padrão de consumo.

A queda da mortalidade não só aumentou a longevidade, como viabilizou a redução das taxas de natalidade. A menor quantidade de filhos nas famílias impulsionou o investimento na qualidade de vida de um número menor de crianças. Os casais passaram a dedicar menos tempo às tarefas domésticas. As mulheres com maior autonomia reprodutiva apresentam níveis mais elevados de escolaridade, maior inserção no mercado de trabalho, maiores rendimentos e maior mobilidade social ascendente.

Desta forma, o desenvolvimento urbano-industrial possibilitou a transição demográfica, que, por sua vez, impulsionou ainda mais o processo de desenvolvimento. Esses dois fenômenos ocorreram de forma sincrônica e constituem características essenciais da modernidade, alimentando-se mutuamente em um ciclo virtuoso de progresso. A expectativa de vida global se aproxima de 75 anos, cerca de 3 vezes mais do que os 25 anos de 200 anos atrás.

Adicionalmente, a transição demográfica provoca, de forma determinística, uma mudança na estrutura etária, caracterizada pelo estreitamento da base da pirâmide populacional e pelo aumento da proporção de pessoas em idade produtiva — fase conhecida como primeiro bônus demográfico. Todos os países que hoje apresentam elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) vivenciaram e souberam capitalizar esse primeiro bônus, um fenômeno temporário que se inicia com a redução da proporção de crianças e se encerra com o crescimento da população idosa.

Concomitantemente à mudança etária, emerge um segundo bônus, associado ao aumento da produtividade. Este decorre da elevação dos níveis de escolaridade, do investimento em máquinas, equipamentos e infraestrutura e da incorporação de novas tecnologias ao processo de produção, resultando em uma força de trabalho mais eficiente e produtiva.

O aumento da proporção de idosos com uma vida mais longeva possibilita o surgimento de um terceiro bônus demográfico: o bônus da longevidade. O envelhecimento saudável e ativo impulsiona o crescimento das chamadas gerações prateadas, compostas por pessoas que vivem mais e melhor. Neste sentido, o envelhecimento populacional – fruto da transição demográfica – não deve ser visto como uma ameaça, mas sim como uma conquista civilizacional.

A mudança da estrutura etária é simplesmente uma nova realidade demográfica que não é intrinsecamente negativa nem positiva. A forma como as nações respondem a essa mudança, por meio de suas instituições sociais e políticas e a maneira de implementação das diversas ações é que determinará se elas prosperarão ou não. Mas se as oportunidades do envelhecimento forem bem aproveitadas é possível aproveitar um 3º bônus demográfico ou bônus da longevidade.

Mas cabe afirmar que não há país rico e com alto padrão de vida que mantenha uma elevada proporção de crianças e adolescentes em sua população. O enriquecimento e o envelhecimento são processos simultâneos e sinérgicos. Promover atitudes e práticas favoráveis aos idosos e contra as discriminações é uma condição essencial para superar as armadilhas da pobreza e da renda média.

Assim, a “economia prateada” representa um momento estratégico para aproveitar o terceiro bônus demográfico. A primeira tarefa para concretizar o dividendo da longevidade é desmistificar os mitos negativos sobre o envelhecimento e superar preconceitos etários. A longevidade saudável, ativa e colaborativa pode se tornar uma eterna fonte de integração intergeracional e de bem-estar social do país.

O artigo “Ageing and population shrinking: implications for sustainability in the urban century” (Jarzebski, et al, 2021) mostra que a mudança da estrutura etária e a diminuição do número de habitantes pode gerar um “dividendo demográfico do decrescimento”, tanto na área social, quanto na área ambiental.

dividendo do decrescimento populacional

Os autores mostram que o envelhecimento populacional e o decrescimento do número de habitantes são totalmente compatíveis com a Agenda 2030 da ONU e as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mas, em especial, é uma situação que favorece a redução da Pegada Ecológica e a defesa do meio ambiente. Eles chamam de “dividendo do despovoamento” a situação favorável à restauração ecológica.

Adicionalmente, os autores mostram que uma política pronatalista para se contrapor ao decrescimento populacional pode dificultar o enfrentamento das questões sociais e ambientais. O lado esquerdo da figura abaixo, representa um 4º bônus demográfico, ou “dividendo do decrescimento”, enquanto o lado direito representa a “ampulheta vulnerável”, que é uma situação de aumento da razão de dependência demográfica, com baixa proporção de pessoas em idade ativa e alta proporção de dependentes, jovens e idosos.

São várias as oportunidades do decrescimento populacional: a) Menos pressão sobre recursos naturais, uso do solo, água e energia; b) redução das emissões de gases de efeito estufa; c) O envelhecimento abre espaço para novas indústrias e serviços voltados à saúde, bem-estar, lazer, turismo e tecnologia assistiva; d) Setores ligados a longevidade podem se tornar motores de inovação e emprego; e) a escassez de mão-de-obra pode ser superada com o uso da robótica e a Inteligência Artificial.

Além disto, com menos crianças e jovens, famílias e governos podem investir mais na educação e qualificação de cada indivíduo. Isso pode elevar a produtividade e compensar parte da redução do número de trabalhadores. Áreas urbanas podem se tornar mais habitáveis, com menos congestionamentos e maior qualidade de vida. Espaços abandonados podem ser convertidos em áreas verdes ou habitação social. Mudanças nos valores sociais podem fortalecer solidariedade intergeracional e novas redes de apoio.

O decrescimento populacional pode ajudar a mitigar a crise climática e ambiental e pode facilitar a adaptação diante da aceleração do aquecimento global e da 6ª extinção em massa das espécies, abrindo espaço para a restauração ecológica.

Menor densidade populacional em áreas de risco (zonas costeiras, regiões áridas) pode reduzir o impacto de eventos extremos. Facilita políticas de relocação e adaptação urbana. Com menor demanda, é possível investir em sistemas mais sustentáveis de transporte, saneamento e habitação, adaptados à realidade do aquecimento global. Em um mundo de escassez hídrica e alimentar, menores populações poderão reduzir conflitos por água, terras férteis e energia.

Em síntese, o decrescimento populacional é um desafio estrutural inevitável, mas não precisa significar estagnação ou declínio do bem-estar. Se houver políticas adequadas em educação, inovação tecnológica e adaptação dos sistemas de proteção social haverá a possibilidade de construir uma sociedade mais equilibrada, sustentável e centrada no bem-estar humano, com respeito a todas as formas de vida da Terra.

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

ALVES, JED. População e avanços científicos e tecnológicos, Ecodebate, 16/05/2022

https://www.ecodebate.com.br/2022/05/16/populacao-e-avancos-cientificos-e-tecnologicos/

ALVES, JED. Podemos ter um mundo com menos habitantes e melhor qualidade de vida social e ambiental, Ecodebate, 03/06/2024

https://www.ecodebate.com.br/2024/06/03/podemos-ter-um-mundo-com-menos-habitantes-e-melhor-qualidade-de-vida-social-e-ambiental/

ALVES, JED. Os 50 anos do livro “O mito do desenvolvimento econômico” de Celso Furtado, Ecodebate, 24/04/2024 https://www.ecodebate.com.br/2024/04/24/os-50-anos-do-livro-o-mito-do-desenvolvimento-economico-de-celso-furtado/

Jarzebski, M.P., Elmqvist, T., Gasparatos, A. et al. Ageing and population shrinking: implications for sustainability in the urban century. npj Urban Sustain 1, 17 (2021).

https://doi.org/10.1038/s42949-021-00023-z

 

Citação
EcoDebate, . (2025). Os quatro bônus demográficos e a nova dinâmica populacional global. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/10/01/os-quatro-bonus-demograficos-e-a-nova-dinamica-populacional-global/ (Acessado em outubro 1, 2025 at 02:55)

 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

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